Causalidade e auto-organização

Carlos Cirne-Lima (Unisinos)

A Teoria de Sistemas, também chamada de Teoria de Auto-Organização, foi criada em nosso século por Ludwig von Bertalanffy, que em 1945 a publicou em alemão, em 1950, em inglês. A Teoria de Sistemas, inicialmente uma teoria nos quadros da Biologia, apresentada logo após a segunda grande guerra mundial por um jovem cientista austríaco, transformou-se, no decorrer da segunda metade do século XX, numa das mais importantes e instigantes teorias de toda a ciência. A Teoria de Sistemas, nestes cinquenta anos, saiu dos limites da Biologia e deu nascença à Cibernética (Norbert Wiener) e à Ecologia (Uexküll, Weiszäcker), foi introduzida com imenso sucesso na Sociologia e no Direito (Niklas Luhmann), na Psicologia (Buckley), na Neurofisiologia do Conhecimento (Maturana, Varella), na Medicina, na Psiquiatria (Gray, Duhl, Rizzo), nas Teorias de Administração, na Economia Política e, para surpresa de muitos, nas ciências duras, ou seja, na Química (Prigogine) e na Física (Lee Smolin). Em nossos dias, há até quem afirme, que a Grande Teoria Unificada pode ser construída através da Teoria de Sistemas. O sonho científico de todos os grandes físicos, até hoje não concretizado, de formular uma teoria universalíssima do Universo, na qual estejam conciliadas tanto a teoria da relatividade com a mecânica quântica, este sonho, diz o físico Lee Smolin, pode vir a ser realizado pela Teoria de Sistemas. Smolin possivelmente tem razão, afirma Murray Gell-Man, um dos mais respeitados físicos contemporâneos.
Da fonte inicial, em seu começo tão singela, originou-se um fio d’água que se transformou em rio caudaloso que atravessa, hoje, quase todas as ciências, engendrando, por onde passa, um húmus rico, prenhe de promessas de novos avanços científicos e de novas e revolucionárias soluções. Os defensores da Teoria de Sistemas, os adeptos da Teoria de Auto-Organização estão hoje bem cientes de que formam, no panorama da ciência, uma das pesquisas de ponta que mais frutos promete. Estão, eles, entretanto, completamente enganados no que toca ao conhecimento do horizonte filosófico em que se situam e – por que não dizê-lo? – no que toca ao reconhecimento de suas origens. Niklas Luhmann, em seu livro Die Wissenschaft der Gesellschaft, escreve que a Teoria de Sistemas nasce no século XX com Ludwig von Bertalanffy, sendo, assim, fruto ainda em fase de formação do pensamento contemporâneo. Quando de sua longa estadia em Porto Alegre, anos atrás, muito discuti com Luhmann a esse respeito. Tentei mostrar-lhe que a estrutura subjacente à Teoria de Sistemas dos cientistas contemporâneos era exatamente a mesma que constituía o núcleo duro da teoria sobre causa sui dos filósofos neoplatônicos, de Plotino e também de Nicolaus Cusanus, Espinosa, Goethe, Schelling e Hegel. Luhmann percebeu, é evidente, as semelhanças estruturais existentes entre auto-organização e causa sui, mas nunca consegui convencê-lo de que houvesse uma ligação histórica entre ambas as doutrinas, de que as teorias sobre auto-organização eram uma continuação orgânica das teorias neoplatônicas sobre causa sui. Poucos anos depois, Humberto Maturana, provocado a este respeito por Myriam Graciano, respondeu de maneira igualmente negativa. Myriam, que antes de ir estagiar com Maturana em Santiago do Chile, passara um semestre em meu seminário, em Porto Alegre, e de mim ouvira que a Teoria de Sistemas era a figuração contemporânea da antiga e veneranda doutrina neoplatônica sobre a causa sui, Myriam Graciano, indo de Porto Alegre para Santiago do Chile, perguntou a Maturana de forma clara e direta, qual a origem da Teoria de Sistemas. Maturana asseverou-lhe que se tratava de uma teoria contemporânea, criada por Bertalanffy, e que qualquer ligação com teorias filosóficas do passado deveria ser desconsiderada.
Errado, muito errado. Auto-organização é a forma contemporânea de pensar e dizer o que a tradição chamava de causa sui e, em época posterior, de autodeterminação. A Teoria de sistemas e de auto-organização é a roupagem sob a qual se esconde, em nossos dias, a ontologia do neoplatonismo. E é por isso que a Teoria de Sistemas é tão rica e tão prenhe de soluções: ela é a herdeira intelectual de Platão, Plotino, Proclo e Agostinho, de Nicolaus Cusanus e de Guiordano Bruno, de Espinosa, Fichte, Schelling e Hegel. Por isso a Teoria de Sistemas é, ao mesmo tempo, tão misteriosa e tão esclarecedora, tão luminosa que chega a ofuscar. Hoje tenho a prova, clara e convincente, que me faltou à época em que discutia sobre isso com Luhmann. Se Luhmann ainda fosse vivo, bastaria, para dirimir a questão, mostrar-lhe a dedicatória que Bertalanffy pôs no começo da Teoria Geral de Sistemas. Claro que eu a havia lido quando, pela primeira vez, bem jovem ainda, lera o livro de Bertalanffy. Mas qual jovem dá importância a dedicatórias? Dedicatórias são, via de regra, para a esposa, para os filhos, para os pais. Mesmo quando a dedicatória é solene, mesmo quando é em latim, o leitor jovem costuma passar por cima, sem a ler. Foi o que fiz, foi o que me impediu de mostrar a Luhmann a prova inegável de que a Teoria de Sistemas vem do seio da tradição neoplatônica. Bertalanffy dedica a Teoria Geral de Sistemas do seguinte modo: Manibus Nicolai de Cusa Cardinalis, Gottfriedi Guglielmi Leibnitii, Joannis Wolgangi de Goethe Aldique Huxleyi, necnon de Bertalanffy Pauli, S.J., antecessoris, cosmographi. Ludwig von Bertalanffy, nesta dedicatória solene, oferece seu livro àqueles que o inspiraram, a autores da tradição neoplatônica: ao Cardeal Nicolaus Cusanus, sobre quem ele, em 1928, escrevera e publicara um livro, a Leibniz, a Goethe, a Aldous Huxley e a seu antepassado, o cosmógrafo Paulus von Bertalanffy. Cusanus, Leibniz e Goethe, aqui citados, são os autores neoplatônicos que influíram direta e explicitamente em Bertalanffy; por trás dos nominados está, implícita, toda a tradição que vem de Platão, Plotino e Proclo, passa pelo Cusanus e por Giordani Bruno, e tem seu apogeu filosófico em Espinosa, Fichte, Schelling e Hegel.
Procurarei mostrar, neste trabalho, como a reflexão sobre as origens neoplatônicas da Teoria de Sistemas não só permite a inserção do problema da auto-organização no contexto da grande tradição filosófica, como ilumina a discussão contemporânea, abrindo novas perspectivas nas mais diversas ciências. Na primeira parte, trato da questão contemporânea: O que é auto-organização? Na segunda parte, mostro como o conceito de auto-organização nos vem de Platão e Plotino, tornando-se um conceito central em Schelling e Hegel. Na terceira parte, à guisa de conclusão, procuro mostrar que a junção teórica da Teoria da Evolução com as Teorias de Autocausação e de Auto-Organização nos fornece uma Ontologia, que é velha porque vem de Platão, de Schelling e de Hegel, e que é nova, novíssima, porque responde a questões prementes da Filosofia e das Ciências do século XXI.

1. Auto-organização


Aristóteles explica os seres vivos mediante o conceito de enteléquia, os pensadores medievais nos falam de anima vegetativa e de anima sensibilis, a alma que é própria da vida vegetativa das plantas e a alma que caracteriza e possibilita a vida animal. O homem teria, segundo os pensadores clássicos da Idade Média, uma alma intelectual ou espiritual; esta alma intelectual conteria, dentro de si, além da força vegetativa e da força animal, uma força capacitante mais alta e mais nobre, que daria origem a nossas atividades intelectuais e volitivas. As almas dos seres vivos vegetais e animais, de acordo com a maioria dos medievais, se reproduziriam automaticamente à medida que os corpos respectivos se reproduzissem; a alma espiritual do homem, entretanto, seria criada, cada uma, individualmente, pelo próprio Deus Criador do Universo. Daí a dignidade do homem e a posição central que o homem ocupa no cosmo.
Nos séculos XVI e XVII, ocorre a Revolução Científica, que começa com Copérnico e Galileu, passa por Descartes e Bacon e atinge na Física de Newton e no mecanicismo seu apogeu. A noção dualista de um ser vivo composto de corpo e alma é substituída pela idéia de máquina. Todos os seres vivos, sim, todo o Universo têm que ser pensados como máquinas construídas e governadas por leis matemáticas exatas. O dualismo antigo, que distinguia corpo e alma e atribuía à alma a tarefa e a capacidade de organizar o corpo em si e de per si inanimado e informe, ou seja, a tarefa de transformar o corpo anorgânico em um ser vivo, este dualismo foi gradativamente abandonado. O mecanicismo, iniciado por Galileu, festeja seu grande triunfo na mecânica clássica, inaugurada por Newton, pois esta explica as coisas do Universo, inclusive os seres vivos, melhor e de maneira mais simples. O mecanicismo monista substitui o dualismo de corpo e alma, defendido pelos antigos, por ser uma teoria mais enxuta, mais sóbria, mais científica, que explica todas as coisas a partir de princípios gerais extremamente simples, a saber, as leis da mecânica. Deus, nesta concepção, tem que ser pensado como o relojoeiro que construiu o grande relógio do mundo, inclusive os seres vivos e, assim, o homem.
O triunfo da mecânica de Newton, no século XVII, dá início a uma radical transformação na maneira como a ciência passa a trabalhar. O dualismo de corpo e alma é abandonado pelos cientistas e continua existir tão somente na Filosofia e na Teologia. O dualismo, desacreditado por aqueles que trabalham e pesquisam como cientistas, passa a ser uma doutrina de filósofos e de teólogos que, cegos para os progressos da ciência, continuam a cultivar conceitos e teorias que os cientistas consideram totalmente ultrapassados. Almas, se alguém quiser nelas acreditar, tudo bem; almas podem, talvez, ser objeto de crença religiosa; na ciência, almas são inadmissíveis.
A explicação mecanicista, aplicada por William Harvey à circulação do sangue, festeja, então, mais um sucesso e abre o caminho para a explicação materialista do homem. Surge, assim, no século XVIII, Lavoisier, o pai da química moderna, que consegue interligar o anorgânico e o orgânico, demonstrando que aquilo que os antigos pensavam ser atividade típica e exclusiva da alma, a respiração, não passa de uma reação química: a respiração dos seres vivos não tem nada a ver com alma, com espírito; respiração é apenas uma forma especial do fenômeno químico de oxidação. A vida não se explica pela ação de uma entidade misteriosa, a alma, e sim pelas mesmas leis da Física e da Química que regem o mundo anorgânico, sustenta Lavoisier. Assim cai a última barreira, assim desaparece, para os cientistas, o dualismo de corpo e alma. E a alma? A alma não morreu; a alma nunca existiu. A alma era apenas uma palavra que encobria nosso déficit de conhecimento sobre o funcionamento da máquina que é o núcleo dos seres vivos. Descoberta a estrutura da máquina, compreendida a doutrina da mecânica clássica, a alma tem que ser relegada à categoria de centauros e quimeras, entidades que não existem e nunca existiram. Se filósofos e teólogos, no entanto, continuam a falar de alma, o problema e a responsabilidade é deles; os cientistas sabem que não existe alma. Assim começa a grande cisão que vai separar e afastar, cada vez mais, a Ciência, por um lado, e Filosofia, Teologia e Religião, pelo outro lado.
Somam-se ao quadro acima descrito a elaboração, por Charles Darwin, da Teoria da Evolução, a descoberta das leis da Genética por Mendel, a descoberta da dupla hélice por Crick e Watson, a identificação e descrição química do DNA e, em nossos dias, a seqüenciação do genoma. A Ciência, de Galileu para cá, fez avanços fantásticos e mudou completamente nossa concepção sobre o que é o ser vivo, sobre o que é o Universo. A Teologia, entrementes, sofre dolorosa estagnação e a Filosofia, para não passar maiores vexames, abandona sua pretensão de universalidade, abandona por completo a tarefa de fazer uma Filosofia da Natureza, e passa a tratar apenas da Lógica, da Linguagem e da Ética. Apel e Habermas afirmam, hoje, que há na História da Filosofia três paradigmas: o paradigma do ser, na Antigüidade e na Idade Média, o paradigma do sujeito, na Modernidade, e o paradigma da linguagem, que é o paradigma da Filosofia Contemporânea. Os paradigmas, segundo eles, se sucedem historicamente. Passou, para nunca mais voltar, afirmam eles, a época em que filósofos discutiam sobre o ser e o sujeito como sendo o núcleo na Filosofia; hoje, o objeto da Filosofia é a linguagem e só a linguagem. Da análise da linguagem deduzem Apel e Habermas, então, uma Ética Geral. E com isso acabou a Filosofia. Análise da linguagem e Ética, eis tudo o que sobrou da Filosofia. Filosofia deixa de ser, assim, a raínha das ciências, deixa de ser a ciência universalíssima e omniabrangente, deixa de ser uma disciplina universal, para tornar-se apenas mais um acesso à verdade, lado a lado com a Lingüística, com a Sociologia, com a Psicologia, com a Física e a Química, com as outras ciências particulares. Esta é a tese defendida por Jürgen Habermas. Eu, não Habermas, acrescento agora: Cavete, philosophi, a Filosofia e os filósofos que se cuidem, pois, se as coisas continuarem assim, a Lingüística lhes vai tirar das mãos a Análise da Linguagem e a Etologia lhes arrebatará a Ética. Cavete, philosophi! Filósofos, tenham cuidado, pois no ritmo e na direção que as coisas vão, Filosofia deixará de existir como ciência e sobreviverá apenas como um tipo subdesenvolvido e ruim de poesia, ou, pior ainda, como um tipo retrógrado de literatura de auto-ajuda.
É claro que houve, no decorrer da evolução acima descrita, alguns retrocessos. O mecanicismo não conseguia, por exemplo, explicar com suficiente exatidão os fenômenos observados na diferenciação celular; não conseguia explicar especialmente o fenômeno biológico de regeneração. Na regeneração, o organismo mutilado, às vezes severamente mutilado, consegue reconstituir-se em sua totalidade. Assim a planaria alpina, cortada ao meio, cortada em pequenos pedaços, sempre de novo se recompõe em sua totalidade. Como explicar, somente a partir das partes mutiladas, sim, a partir das poucas partes que sobraram do processo destrutivo, a reconstituição do organismo como um todo? Esta e outras perguntas ficaram, à época, sem resposta e este déficit explicativo na doutrina mecanicista deu ensejo, no século XIX, à introdução na Biologia do vitalismo. O vitalismo não retorna à doutrina da composição dos seres vivos de corpo e alma, mas cria um tipo específico de dualismo. Além das estruturas mecânicas, afirmam os vitalistas, como Hans Driesch, há que se admitir uma entidade separada, a vida, que atua sobre a máquina do corpo, sem entretanto fazer parte dela. Só assim se poderia explicar que um ouriço-do-mar, cortado pela metade, se possa regenerar e desenvolver, voltando a formar um ouriço-do-mar completo, embora de menor tamanho. Os mecanicistas, porém, contra Driesch e os vitalistas, continuaram afirmando, como que num dogma, que as leis da mecânica clássica eram fundamento bastante para explicar o fenômeno da vida.
A evolução da ciência no século XX traz a grande reviravolta. Einstein elabora a Teoria da Relatividade e nos obriga a abandonar as noções tradicionais de espaço e de tempo expostas por Newton na Mecânica Clássica. Tudo aquilo que pensávamos ser as leis universalíssimas da Física entra em colapso: a Mecânica Clássica de Newton não consegue explicar com exatidão o mundo das estrelas e galáxias, a Teoria da Relatividade, porém, o consegue. No mundo do átomo, a Mecânica Quântica elaborada por Niels Bohr, Max Plank, Schrödinger, Heisenberg e tantos outros faz outra revolução científica: no mundo das partículas subatômicas não vigem as leis da Mecânica Clássica e sim outras leis, completamente diversas, leis à primeira vista desconcertantes e contra o senso comum, as leis da Mecânica Quântica.
É neste contexto histórico que a Mecânica Clássica é tirada de seu pedestal de ciência universalíssima e é posta como uma doutrina válida apenas para algumas áreas ou regiões do Universo; é neste contexto que o mecanicismo como dogma inabalável e indiscutível de todas as ciências definha, se enfraquece e morre como que de morte natural. Surge, então, a Teoria de Sistemas.
Os biólogos Ross Harrison, Lawrence Henderson, Joseph Woodger e Joseph Needham, nas primeiras quatro décadas do século XX, apontam para o fato inegável de que não são as partes como partes que constituem aquilo que chamamos de vida. Nâo são as partes, mas sim as relações existentes entre as diversas partes que constituem a unidade organizada do ser vivo. Vida é organismo, organismo é o nome que damos à harmonia hierárquica das relações existentes entre as diversas partes que constituem um ser vivo. Para além das leis da Física e da Química, há que se pensar algo mais, a saber, a organização, aquilo que ordena as relações entre as partes. E como o ser vivo, por definição, é aquilo que se reproduz, para compreender o que é a vida, temos que considerar como estrutura central aquela forma de organização que se reproduz a si mesma, ou seja, que se organiza a si mesma, que é, em si, auto-organização. Eis, já aqui, o núcleo da Teoria de Sistemas. Ludwig von Bertalanffy publica, em 1945, em alemão, a primeira versão da Teoria Geral de Sistemas, Zu einer allgemeinen Systemlehre, em 1950, em inglês, An Outline of General System Theory. Após a guerra, depois de sair da Viena destruída e refugiar-se no Canadá, Bertalanffy apresenta copiosa produção científica, forma alunos, ganha o apoio de mais e mais biólogos, etólogos, bioquímicos, neurofisiologistas, psicólogos, sociólogos, juristas etc. Bertalanffy conquista, assim, a adesão de mentes brilhantes e a Teoria Geral de Sistemas cresce, se espalha pelas diversas ciências, apresentando soluções, onde não as havia, indicando caminhos, onde só existiam becos sem saída, construindo sínteses esclarecedoras, onde reinava confusão. A Teoria Geral de Sistemas neste meio século de existência acumulou sucessos em cima de sucessos e hoje se apresenta como uma das mais fortes candidatas à posição de Grande Teoria Unificada, a Teoria Mãe, na qual Teoria da Relatividade, Mecânica Quântica e a toda a Biologia Geral com sua Teoria da Evolução estão conciliadas.
O que é a Teoria Geral de Sistemas? O que é um sistema? Não existem ainda definições de sistema que sejam aceitas por todos. Proponho, por minha conta e risco, uma definição que não sei se está completa, mas que é a melhor que posso dar: Sistema é um processo circular que, embora sob o aspecto energético seja aberto para o meio ambiente, sob o aspecto estrutural ou organizacional é fechado sobre si mesmo, que é estável, que se retrodetermina (feed back), se realimenta, se recompõe e se reorganiza de maneira plástica a partir de seu meio ambiente, que exerce seletividade em suas interações para com este, que em muitos casos se replica ou reproduz, que, quando afastado de seu ponto de equilíbrio, em muitos casos, engendra novas formas de organização e de comportamento, as quais se inserem num processo de evolução que é regido pela lei de coerência universal (seleção natural).
Passemos à análise pormenorizada dos elementos contidos nesta tentativa de definição.

O sistema de auto-organização é, primeiro, um processo circular. Desde Aristóteles, principalmente desde Tomás de Aquino, pensamos que causa e efeito constituem um processo absolutamente linear. A causa é sempre e necessariamente diferente do efeito que ela produz; a causa é lógica e ontologicamente anterior ao efeito por ela produzido. Se um efeito, uma vez efetivado, torna-se, ele mesmo, uma nova causa, então ele produz um novo e ulterior efeito, fora dele e depois dele. Se este efeito novamente se transforma em causa e produz mais um efeito, também este será algo ulterior e diferente. Assim surge a série causal linear. A causa 1 produz um efeito 1, o qual, subsistindo em si mesmo, se transforma em causa 2 e produz um ulterior efeito 2, o qual se transforma em causa 3 e produz o ulterior efeito 3, e assim por diante. A série causal linear caracteriza-se por dois elementos essenciais: 1) O efeito é diferente da causa que o produz; ele é lógica e ontologicamente diverso dela e posterior a ela. 2) Um efeito pode tornar-se causa, mas neste caso ele produz um outro efeito que é lógica e ontologicamente diverso dele e a ele posterior, constituindo, assim, uma série causal linear. Desde Aristóteles e Tomás de Aquino até a Mecânica Clássica de Newton e a Teoria da Relatividade de Einstein este conceito linear de causalidade é a concepção dominante em grande parte da tradição filosófica e em quase todas as ciências. Causa e efeito, nesta concepção, são entidades diversas, sim, separadas, pois o efeito é sempre posterior à causa.
A idéia da causalidade linear é uma teoria brilhante que, no decorrer de nossa história, mostrou que possui uma poderosa força explicativa, tendo prestado os mais relevantes serviços à ciência. Muitíssimas coisas podem e devem ser explicadas no âmbito da causalidade linear. O problema é que este tipo de causalidade não é o único, ele não explica todos os fenômenos. Se este tipo de causalidade linear fosse o único, os processos cibernéticos simplesmente não poderiam existir. O que é um processo cibernético? Desde a antigüidade conhecemos processos cibernéticos, mas foi Norbert Wiener quem, em nossos dias, num ato de coragem intelectual, formulou a teoria e afirmou que uma série causal pode flectir-se sobre si mesma e configurar-se em forma circular, de maneira que o último efeito da série, que é sempre finita, atua como causa sobre a primeira causa da série. Assim, a série causa/efeito se fecha sobre si mesma, em círculo, se retro-alimenta e se retrodetermina. Um exemplo banal de nosso dia a dia sirva de exemplo. A geladeira em nossa casa está, digamos, com a temperatura interna de 10 graus. Se abrirmos muitas vezes a porta, se introduzirmos gêneros alimentícios em temperatura ambiente, a temperatura interna da geladeira começa a subir. Ao atingir, digamos, 15 graus, o termostato reconhece a temperatura limite e liga o motor. O motor trabalha e produz frio, até que a temperatura interna da geladeira volte a seu padrão e, então, se desligue automaticamente. Tudo isso ocorre, sem que nós, homens, tenhamos que interferir, ligando ou desligando processos. A geladeira regula sua temperatura interna, mediante o termostato, num processo circular em que uma causa (temperatura de 15 graus) produz um efeito (acionar o termostato), o qual por sua vez é uma causa que produz um novo efeito (ligar o motor), o qual se transforma em causa e provoca um efeito ulterior (o frio), o qual se transforma em causa e, em determinado momento, volta a produzir um efeito, isto é, a acionar o termostato, dando, assim, continuidade ao movimento circular de auto-organização. A cadeia de causa e efeito, neste processo, abandonou a forma linear e tornou-se circular, de sorte que a série causa/efeito/causa/efeito/causa se fecha sobre si mesma. A circularidade do processo causal, eis o primeiro elemento constitutivo de um sistema de auto-organização. Isto também é chamado é de retrodeterminação, realimentação, feed back. Toda a cibernética se funda nisso.
O segundo elemento essencial em processos de auto-organização é que o sistema, embora seja fechado sob o aspecto organizacional, é aberto sob o aspecto energético. O processo de auto-organização é sempre uma série de causas e efeitos em forma de círculo; neste sentido todo sistema de auto-organização é um sistema fechado sobre si mesmo. É fechado porque e enquanto é um processo circular. Mas os sistemas, embora fechados e circulares em sua forma de organização, são abertos sob o ponto de vista energético. A segunda lei da termo-dinâmica, a lei da entropia, exige que tais sistemas sejam abertos. Se eles não fossem abertos, a energia que põe em movimento o processo circular seria algo meramente interno ao sistema, seria uma energia finita que muito logo se esgotaria, fazendo o movimento do processo parar. Para que o processo circular continue em movimento, ele precisa, de acordo com a segunda lei da termo-dinâmica, buscar energia de seu meio ambiente, de energia que esteja fora de sua estrutura circular. A geladeira, se não está ligada na tomada, pára de funcionar. – Schrödinger, em suas preleções sobre a vida na Universidade de Dublin, percebeu claramente este fenômeno, isto é, o conflito existente entre o fechamento organizacional dos seres vivos e a abertura exigida pela lei da entropia, e criou, por isso, o termo neguentropia. Os seres vivos possuiriam, segundo ele, uma força interna negando a entropia, a neguentropia. Os muitos protestos contra a neguentropia, que surgiram por parte de físicos ortodoxos, fizeram Schrödinger voltar atrás e retirar o conceito por ele proposto. Naquela época não se distinguiam clara e corretamente os dois aspectos de um sistema que é, ao mesmo tempo, fechado e aberto, fechado enquanto organizacional e aberto enquanto energético. Hoje, sem maiores dificuldades e sem objeções por parte da termo-dinâmica, afirmamos que processos de auto-organização são sistemas fechados sob o aspecto organizacional de sua estrutura, sistemas abertos sob o aspecto energético.
O terceiro elemento essencial de processos de auto-organização, intimamente ligado ao segundo, é a estabilidade conjugada com plasticidade. Sistemas de auto-organização, que se realimentam de energia vinda do meio ambiente e que se retrodeterminam a partir das irritações oriundas deste, apresentam tanto uma grande estabilidade como também uma notável plasticidade. O sistema é plástico, ou seja, ele está sujeito a perturbações, mas ele é também estável, isto é, quando perturbado em sua organização, tende a se reconstituir e se recompor. Só em casos de perturbação muito violenta é que o sistema se dissolve e se desfaz. Irritações, dentro de certos limites, são assimiladas – plasticidade – e o sistema se recompõe, se reorganiza e volta à sua situação de estabilidade. Assim, continuando no exemplo da geladeira, há um certo espaço entre a temperatura que é o limite superior e a temperatura que é o limite inferior. Esta distância existente entre os dois limites é o espaço da plasticidade. Isso fica mais claro nos seres vivos, pois a homeostase apresenta plasticidade e estabilidade bem maiores que uma máquina ciberneticamente regulada. Nas máquinas o espaço da plasticidade é rigidamente determinado, pois o sistema é simples; nos seres vivos a plasticidade se mostra em toda a sua riqueza, pois os sistemas são complexos, ou seja, não-lineares.
O quarto aspecto essencial de processos de auto-organização é a seletividade com que o sistema exerce sua interação com o meio ambiente. O fato de que o sistema seja fechado sob o aspecto organizacional tem como conseqüência a seletividade de sua interação. O sistema, por ser fechado, não permite o ingresso de toda e qualquer força ou influência. O sistema, enquanto fechado, impede o ingresso de tudo que lhe é estranho, de tudo que está fora dele, principalmente de tudo aquilo que destrói ou perturba sua estrutura organizacional. Algumas coisas, entretanto, tem que ser buscadas no meio ambiente e tem que entrar no sistema, por exemplo, energia e informação. O sistema, mesmo sendo fechado, precisa buscar energia de fora. Como a energia existe sob muitas formas – corrente elétrica, luz, alimentos etc. -, várias são as formas de interação entre os sistemas fechados e seu meio ambiente. Mas em todas elas, há uma rigorosa seletividade. A forma desta seletividade é determinada pela própria organização interna do sistema. Os sistemas de auto-organização em forma de máquinas se abastecem de energia sob formas relativamente simples, como força da queda d’água, vapor d’água, molas mecânicas, luz e, em nossos dias, na maioria dos casos, de energia elétrica. Os sistemas de auto-organização na forma de seres vivos caracterizam-se pela a complexidade que apresentam; a busca de energia do meio ambiente neles se faz de maneiras extremamente complexas, por exemplo, pela fotosíntese e pela ingestão de alimentos situados em determinados segmentos da cadeia alimentar. Além da busca de energia, a interação seletiva com o meio ambiente inclui outras características. A mais importante delas é a troca de informações, fenômeno que já existe em máquinas que se autoregulam. Sem a troca de informações com o meio ambiente, nenhum sistema de auto-organização pode subsistir. Neste sentido bem amplo, em que toda informação é uma forma primeva de cognição, todo sistema de auto-organização é um sistema cognitivo. Em máquinas autoreguladoras esta cognição não se constitui em consciência, pois os parâmetros e a estrutura do processo de informação vêm totalmente de fora do sistema. Nos seres vivos, entretanto, mesmo nos mais simples, há sempre alguma cognição (= seletividade de informação) engendrada pela própria estrutura auto-organizada. Percebe-se, aqui, que existe uma suave gradação de sistemas auto-organizados. A partir de máquinas autoreguladas, nas quais a cognição é apenas a seletividade de informações que lhes veio de fora, passando por estruturas anorgânicas complexas, nas quais a seletividade de informação já é gerada dentro do sistema, passando por seres vivos de baixa complexidade, nos quais a cognição se identifica com a própria vida, passando por seres vivos de maior complexidade, nos quais a cognição se estrutura como conhecimento vegetativo e, depois, como consciência sensível, chegamos, enfim, ao homem, no qual a autoconsciência dos processos mentais emerge tão forte que parece ser algo completamente diferente e independente da vida que encontramos na parte inferior da escala. Não é. Trata-se, como vimos, de uma gradação de formas de auto-organização.
O quinto elemento dos sistemas de auto-organização consiste no fato de que estes, pelo menos em alguns casos específicos e determinados, se replicam e se reproduzem. Este quinto elemento da auto-organização marca uma característica muito visível dos seres vivos no sentido estrito do termo; característica esta, às vezes, pouco visível em outros sistemas auto-organizados. Os seres vivos se reproduzem de acordo com o código genético contido no genoma, código este que possui a capacidade de se replicar, de fazer cópias de si mesmo. - Todos os sistemas auto-organizados, sejam eles quais forem, possuem, bem visíveis, os primeiros quatro elementos essenciais, a saber, circularidade, abertura e fechamento, estabilidade e plasticidade e seletividade de interação. Este quinto elemento, que não está presente nas máquinas autoreguladas, ou seja, em sistemas nos quais a organização lhes vem de fora, marca uma das principais características dos seres vivos. Mas ele não existe só neles, também se faz presente em cristais, em processos autocatalíticos, em processos iterativos de formação de fractais etc. Surge, aqui, a questão de saber se todos os sistemas auto-organizados possuem a capacidade de replicação, respectivamente de reprodução. Penso que sim. Se um sistema possui, oriunda de dentro de si mesmo, a estrutura de auto-organização, ou seja, se ele não é apenas uma máquina autoregulada na qual a organização foi imposta de fora do sistema, ele sempre possui também a capacidade de reprodução. Esta tese deixa de ser uma afirmação muito ousada, se e enquanto pensarmos também o mundo e as galáxias como sistemas auto-organizados, como fazem Lee Smolin, Ervin Laszlo e outros. Quem pensa nosso planeta terra como um sistema auto-organizado, como James Lovelock e Lynn Margulis na Teoria Gaia, quem pensa as galáxias como um processo de auto-organização, como Lee Smolin, não tem dificuldades em pôr na definição de auto-organização, como elemento essencial, a replicação e a reprodução. Assim, segundo Smolin, cada mundo engendra, mediante seus buracos negros, novos mundos a ele assemelhados; os mundos com muitos buracos negros têm mais probabilidades de engendrar mundos coerentes do que mundos com poucos buracos negros. Também aqui, no nível da formação das galáxias, o princípio da coerência, ou seja, a seleção natural direciona o processo. Se as galáxias são sistemas auto-organizados, como quer Smolin, os subsistemas auto-organizados nelas existentes ou são, eles mesmos, capazes de reprodução, ou são partes que participam de macroprocessos de reprodução. Nesta perspectiva, todos os sistemas de auto-organização possuem a reprodução como elemento essencial.
O sexto elemento essencial dos sistemas de auto-organização consiste no engendramento de novas formas de organização. Ilya Prigogine demonstrou que sistemas dinâmicos dissipativos de auto-organização, quando fora de seu ponto de equilíbrio, apresentam, em teoria, uma bifurcação: o sistema pode se dissipar e desaparecer ou, então, pode como que “escolher” e engendrar uma nova forma de auto-organização. Prigogine coloca, ele mesmo, a palavra “escolher” entre aspas. A teoria de Prigogine sobre o engendramento de novas e mais complexas formas de auto-organização foi amplamente confirmada. A teoria foi matematizada com exatidão e o sucesso na repetição dos experimentos práticos de laboratório deram às teses de Prigogine toda a certeza que uma ciência exata hoje pode ter. Isso significa, para nós filósofos, que está demonstrado cientificamente que sistemas dinâmicos dissipativos fora de seu ponto de equilíbrio podem engendrar novas formas de auto-organização, formas mais complexas e mais nobres do que aquelas de onde se originaram. Isso nos dá uma nova e brilhante característica da evolução e da flecha do tempo. O engendramento da diferença, isto é, a emergência do novo e do mais complexo não é apenas um postulado filosófico, mas uma doutrina científica experimentalmente comprovada. Um dos mais difíceis elementos na Teoria da Evolução, a saber, o Princípio da Diferença, que explica a emergência do novo, recebe das ciências exatas confirmação teórica e experimental. Também nossa perspectiva do tempo e do mundo sofre mudança radical. Até Prigogine era apenas a entropia que marcava a flecha do tempo e impedia que se pensasse o mundo como um sistema reversível; nesta perspectiva antiga, entretanto, a tendência da evolução deveria estar direcionada para a morte pelo frio, para uma desordem sempre maior. Isso, porém, sempre pareceu estar em conflito com a complexidade que observamos como fato. A teoria de Prigogine nos fornece, agora, um segundo elemento a direcionar a flecha do tempo, desta vez em direção a uma ordem cada vez mais rica e mais complexa. O processo da evolução inclui, em face da descoberta de Prigogine, além da tendência da ordem para a desordem, isto é, da entropia, uma tendência da desordem para a ordem. A combinação de ambas as tendências é que molda, então, o processo evolutivo.
Pergunta-se, aqui, se esta característica de engendrar organizações mais complexas é uma característica de todos os sistemas auto-organizados. A resposta só pode ser a mesma que mais acima formulamos, embora com cuidados ainda maiores. É evidente que máquinas autoreguladas, que recebem a auto-organização de fora do sistema, não conseguem engendrar novos sistemas, exceto se isso lhes foi já pré-programado em sua organização. A questão é saber se todos os sistemas naturais de auto-organização, mesmo em nível baixo de estruturação, já possuem esta característica de engendrar novos e mais complexos sistemas. As ciências exatas, a Física, a Química e a Biologia, que eu saiba, jamais responderam a uma pergunta tão específica. A tendência, nessas ciências, seria provavelmente dizer que não. Afinal, não é em toda a parte que se engendram novos e mais complexos sistemas. Mas não é esta a pergunta. A pergunta versa sobre sistemas dinâmicos dissipativos fora de seu ponto de equilíbrio; tais sistemas, todos eles, podem, em princípio, engendrar novos sistemas com maior complexidade? Eu, como filósofo, diria que sim. Se, em princípio, pode ser assim, então, esta possibilidade, em princípio, sempre existe. Isso significa que, em princípio, todos os sistemas de auto-organização, se e enquanto dinâmicos, disssipativos e fora do ponto de equilíbrio, podem engendrar novos e mais complexos sistemas de auto-organização. Isso dá, como se percebe imediatamente, à Teoria da Evolução, uma tendência para cima, para o mais complexo, para o mais nobre. Vemos aqui uma vitória da ordem sobre a desordem. A passagem da desordem para a ordem é, em princípio, tão viável quanto a passagem da ordem para a desordem. O universo não está condenado à morte pelo frio. A entropia é apenas um dos elementos que constituem a flecha do tempo; ela não nos permite antecipar o futuro e dizer que o universo está condenado à morte pelo frio; ela não nos permite dizer que a desordem tende sempre a crescer em detrimento da ordem. Schrödinger recuou onde não precisava ter recuado. Há, sim, uma neguentropia. – Como todos os processos de auto-organização se desenvolvem dentro da auto-organização das galáxias, todos, inclusive nós, homens, somos parte de um todo em movimento de auto-organização.
O sétimo elemento essencial de um sistema de auto-organização é sua inserção num processo de evolução que é regido pela lei da coerência, isto é, pela seleção natural. Esta sétima característica de todo e qualquer sistema de auto-organização diz que ele evolui segundo as conhecidas leis da Teoria da Evolução e que cada um destes processos de auto-organização está dentro de outro, maior e mais abrangente, e assim por diante, até que chegamos ao sistema mais abrangente de todos, ao Universo, um sistema de auto-organização que não tem mais nada fora dele. Como as bonecas russas, as Babuschkas, uma dentro da outra, os muitos sistemas de auto-organização estão todos contidos num sistema de auto-organização que é o último, que é o mais abrangente, que é o Universo fora do qual já não existe nada. A Lei da Coerência rege a evolução de cada sistema particular, rege também as relações de um sistema para com os outros, rege finalmente o sistema universal de auto-organização, dentro do qual tudo de encontra e se desenvolve.
A grande pergunta que surge aqui é a seguinte. Afirmamos, no começo de nossa exposição, que os sistemas de auto-organização, para poderem existir, tem que ser abertos sob o ponto de vista energético, ou seja, que eles têm que buscar energia de fora. Mas se isso é assim, de onde vem a energia no sistema universal e último de auto-organização? Se não há nada fora dele, como pode a energia vir de fora? A resposta só pode ser uma: em última instância, também a energia é engendrada internamente. Quando não há nenhuma outra alternativa de solução, quando outra solução, qualquer que seja, é impossível, então a solução, que é a única, se impõe. Logo, também energia pode ser engendrada internamente, pelo menos no último e mais abrangente sistema de auto-organização.

2. Filosofia da auto-organização

O núcleo duro da Teoria de Auto-Organização consiste na circularidade da série causal. Na série causal linear a causa está sempre e necessariamente fora e antes do efeito, tanto logica como ontologicamente; o efeito vem sempre depois da causa. Se o efeito, por sua vez, se transforma em causa e produz um novo efeito, este novo efeito está fora de sua causa e depois dela; e assim surge a série causal linear. Auto-organização, como a forma flexiva do termo já indica, consiste no fato de que a cadeia causal se flecte sobre si mesma, de sorte que o último efeito da série se torna causa determinante da primeira causa da série, da mesma série. O processo causal fica, assim, circular, pois o último efeito torna-se também causa e determina a primeira causa da série. Reduzindo a série causal linear a seu tamanho mínimo, ou seja, a dois elementos, a causa produz um efeito, que, por sua vez, produz a causa que o causou. A causa aparece, aqui, como sendo causa de si mesma: causa sui. Esta é a teoria defendida por Plotino e Proclo, por Nicolaus Cusanus, por Espinosa, Goethe, Schelling e por Hegel; esta é a teoria sem a qual não se compreende o núcleo duro dos sistemas neoplatônicos, de Plotino até Schelling e Hegel.
Schopenhauer, em seu trabalho de Livre Docência na Universidade de Berlim, com o título Die Vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grunde, é quem melhor apresentou e resumiu as objeções levantadas contra o conceito de causa sui. Causa sui, diz Schopenhauer, é uma contradictio in adjecto, é algo logica e ontologicamente impossível, é um conceito que não pode nem mesmo ser pensado. Pois, ao falar de um processo causal, estamos sempre a pressupor um efeito que está fora da causa e que vem depois dela. Se existe um efeito causado, então tem que haver uma causa causante que esteja fora do efeito e venha antes dele. Não fosse assim, a causa seria causa de si mesmo, o que é um absurdo. Absurdo por quê? Por uma razão que Schopenhauer pensa ser logicamente muito exata e rigorosa. Porque a causa é a razão suficiente do efeito; sem a causa, o efeito não pode existir. Ora, se o efeito não pode existir, ele de fato não existe. E um efeito que não existe não pode ser causa causante de nada, muito menos causa causante de si mesmo.
Esta argumentação, aparentemente rigorosa, é uma falácia. Schopenhauer pressupõe aí o Princípio de Razão Suficiente em sua forma específica e correta, que é a seguinte: Se uma coisa pode existir e não existir, mas de fato existe, então tem que haver uma razão suficiente que explique porque ela de fato existe, ao invés de não existir. Leibniz afirma, com toda a razão, que o Princípio de Não-Contradição e o Princípio de Razão Suficiente são os pilares sobre os quais repousa o arcabouço de toda a racionalidade. Toda a tradição filosófica, dos gregos até os dias de hoje, afirma o mesmo. Schopenhauer, então, tem razão? Causa sui é algo impossível? E auto-organização, uma forma específica de causa sui, é só um absurdo requentado? – Não. É evidente que o Princípio de Razão Suficiente, na formulação acima, está correto e é sempre válido. Mas isso não exclui a possibilidade da causa sui, como sabia muito bem Hegel. Hegel era Professor Titular na Universidade de Berlim e foi, à época, o orientador oficial da tese de Livre Docência de Schopenhauer. Hegel aceitou a tese de Schopenhauer, que era radicalmente contra a teoria da causa sui, como um bom trabalho de Livre Docência e deu parecer positivo à Faculdade de Filosofia, que, então, concedeu a Schopenhauer o título acadêmico por ele postulado. Quanto ao conteúdo filosófico do texto, Hegel, é claro, discordou das idéias propostas por Schopenhauer e manteve sua opinião, escrita e publicada muitos anos antes, na Ciência da Lógica. Segundo Hegel, o Princípio de Razão Suficiente afirma, de maneira corretíssima, que a existência de algo contingente exige uma razão suficiente que explique porque este algo existe, ao invés de não existir. Mas não está dito em nenhum lugar que esta razão suficiente tem que ser uma entidade externa, logica e ontologicamente anterior ao efeito. Toda a argumentação de Schopenhauer se baseia nesta falácia, a saber, que a razão suficiente tem que ser uma entidade separada e anterior. Hegel, na Lógica da Essência, havia demonstrado a tese oposta: o Absoluto, na dialética das modalidades, é tanto Necessidade Absoluta como também Contingência Absoluta. O contingente, se e enquanto ele é também necessário, possui, conciliadas no mesmo ser, ambas as características, a necessidade e a contingência, a causa e o efeito. Hegel chama isso de Wechselwirkung, termo que deveria ser traduzido como causação recíproca. Na causação recíproca o causante é, sim, algo diverso do causado, mas trata-se aqui, não da diversidade de dois seres distintos um do outro, mas sim de dois momentos internos de um único processo circular de autocausação. O causante enquanto causante não é o causado; e vice-versa. Mas também aqui tese e antítese, inicialmente opostas, podem e têm que ser conciliadas. O causante, que é tese, e o causado, que é antítese, na autocausação, que é síntese, estão conciliados em perfeita harmonia. A causa produz o efeito, que retroage e produz a causa, a qual de novo produz o efeito, e assim por diante, constituindo, desta maneira, o processo circular de autocausação.
Procuremos maior clareza. O Universo, como sabemos, contém coisas e processos contingentes, ou seja, processos que podem existir e que podem não existir, mas que de fato existem. No, entanto, o Universo não tem nada fora dele. O Universo, por definição, abrange tudo. Logo, temos que admitir que o Universo não possui uma causa causante ou razão suficiente que esteja fora dele. Por conseguinte, temos que admitir também que o Universo é, ao mesmo tempo, embora não sob o mesmo aspecto, algo causante e algo causado. O Universo, que contém contingência, é uma causa sui no sentido rigoroso do termo, é um sistema auto-organizado. Esta a doutrina neoplatônica.
Objetar-se-á, aqui, na tradição de Tomás de Aquino, que alguns seres no Universo são realmente contingentes, mas que Deus, o Criador primeiro de tudo que é contingente, não é, ele mesmo, um ser contingente, mas sim um ser necessário . E é por isso que ele é o Deus Criador. O Universo, então, pode ser pensado como um conjunto que contém tanto o Deus Criador, que tem sua razão suficiente dentro de si mesmo, e os seres criados, que são contingentes, isto é, que tem sua razão suficiente fora de si mesmos, numa causa que lhes é anterior, em última instância, numa causa incausada que é o próprio Deus Criador. – A posição tomista separa claramente o Deus Criador, que é a causa incausada de tudo o mais, e os seres contingentes, que têm sua razão suficiente em causas anteriores, em última instância, na causa incausada, que é o Deus Criador. O problema da causa sui, à primeira vista, parece ter sido resolvido satisfatoriamente: de um lado a causa, de outro lado, separado e posterior, o efeito. Mas um olhar mais atento revela que o problema foi apenas deslocado para dentro do próprio Deus Criador.
O Deus Criador, para poder ser uma causa incausada, tem que ser algo que é necessário em sua essência e sua existência, isto é, ele não pode ser contingente, ele não pode ter sua razão suficiente fora de si mesmo. Em Deus, essência e existência são a mesma coisa, uma se funda na outra, ambas se fundem na simplicidade de um ser puro que é puro existir. Se Deus não fosse necessário, se ele tivesse sua razão suficiente em algo fora dele, este algo é que seria o verdadeiro Deus e a causa última incausada. Logo, concluem os tomistas, Deus é necessário em sua simplicidade, na qual a existência se funda em sua própria essência. Até aqui, aparentemente, tudo bem. O problema começa agora. Se Deus é necessário em sua essência e sua existência, o ato livre mediante o qual Deus decide criar o mundo, em face da simplicidade de Deus, confunde-se com sua essência. Ora, a essência de Deus é necessária. Logo, o ato livre mediante o qual Deus decide criar o mundo é tão necessário quanto sua essência. Por conseguinte, a criação é necessária. Mas se a criação é necessária, os seres criados existem necessariamente e deixam, assim, de ser contingentes.
A única saída desta aporia é dizer que o ato livre mediante o qual Deus decide criar o mundo é necessário enquanto está dentro de Deus e é idêntico à sua essência, mas é contingente para fora, para com seus efeitos. Esta é, de fato, a resposta usualmente dada pelos autores que seguem Tomás de Aquino. Mas como pensar um ato livre que é, ao mesmo tempo, interno e externo a Deus? A contradição inicial de que causa não pode ser causa sui, retorna agora sob outra roupagem: um ato que é idêntico à essência simples de Deus, tem que ser simultaneamente interno e externo a ele. Este ato è idêntico à substância divina e não é idêntico a ela. O que se pretendia como solução de um problema, constitui-se em nova e potenciada contradição.
Já Plotino se debruçou sobre esta questão e também ele se viu envolto em problemas e contradições. O Livro VI das Enéades versa, todo ele, sobre este problema, como já diz seu título A vontade livre e a vontade do Uno. Plotino sabe muito bem que, para ser livre, o homem tem que ser ekousíon, tem que ser autexousíon, isto é ele tem que poder determinar-se a si mesmo, ele tem que poder dispor sobre suas ações e sobre si mesmo. Esta autodeterminação é expressa por Plotino com um termo intraduzível: tò ep’autõ. Tò ep’autõ aponta para aquilo que está em meu poder, aquilo que está dentro de minhas possibilidades e capacidades de ação. Quando o homem age segundo tò ep’autõ, ele está agindo como autexousíon, como alguém que se determina a si mesmo. Plotino parece ser pouco claro, mas o fato é que até hoje ninguém conseguiu dizer muito melhor o que significa liberdade. Liberdade consiste, dizem todos, neste agir segundo aquilo que está em meu poder, segundo minhas possibilidades, segundo minha autodeterminação.
Plotino pergunta, então, se o Uno tem liberdade e responde decididamente que sim. O Uno, que é o Bem, tem vontade livre e autodeterminação, ekousíon e autexousíon. Mas Plotino, como todos os grandes pensadores depois dele, sente o dilema na pele. Pois Plotino sabe muito bem que é impossível para uma coisa fazer a si mesma e pôr-se em existência. Se é impossível que algo se ponha a si mesmo em existência, como é que o Uno existe e decide livremente? De onde vem a existência do Uno? De onde vem sua decisão livre? Plotino luta com o problema e consigo mesmo, ele luta e reluta e acaba dizendo que o Uno não é uma coisa como as outras coisas contingentes de nosso mundo, que o Uno é algo todo especial, que o Uno é causa de si mesmo, aitíon heatõu. Aí temos, quanto sei, pela primeira vez na História da Filosofia, o termo causa sui no esplendor de seu significado pleno, isto é, como o processo circular de autocausação que explica não só a existência do Uno como também o processo circular da autodeterminação que é o núcleo duro do ato livre de decisão.
Como entender, porém, o processo de autocausação sem que surjam contradições? Não é Plotino, é Hegel quem nos responde com a clareza possível em questão tão difícil. Causante e causado, ensina Hegel, são duas faces da mesma moeda. Não se pode pensar e dizer uma delas, sem que se pense e diga simultaneamente a outra. Mais: uma não pode existir sem a outra. Causante e causado, causa e efeito, são primeira e principalmente dois aspectos opostos de uma mesma realidade. Num primeiro momento estes aspectos se opõem e se excluem logicamente; eles são tese e antítese. Mas na síntese, na primeira e na última instância, no Absoluto, no Uno, os opostos têm que estar conciliados. Como? Por quê? Estão conciliados por serem momentos complementares de um único e mesmo processo que está em movimento circular. A circularidade explica como e por que os opostos se fundem numa unidade mais alta e mais nobre. Causante e causado, fundante e fundado são as formas ativas e passivas do mesmo verbo. A síntese é expressa pela forma reflexa do verbo. Como? O momento ativo atua sobre si mesmo, engendrando dentro de si o momento passivo. Mas este momento passivo atua de volta sobre o momento anterior, de sorte que ele deixa de ser passivo e torna-se ativo. E assim, em movimento circular, o ativo torna-se passivo, o passivo torna-se ativo, e, de novo, o ativo fica passivo e o passivo se transforma de volta em ativo. Este é o núcleo duro da grande síntese dos opostos. Este é o núcleo ontológico da forma reflexa de todos os verbos que admitem tal forma. Erra quem tenta, sempre e em todos os casos, separar o ativo e o passivo, o causante e o causado, o fundante e o fundado. Quem persiste nesta separação e fica sempre a procura do fundo que seja apenas fundante, do Grund, acaba caindo no fundo do mar e se afogando, er geht zugrunde . O jogo de palavras que Hegel faz aqui, mostra de sobejo, que não se pode procurar um fundante último que não seja circular, isto é, que não seja autofundante. Quem, ao invés de subir de degrau e assumir a categoria de autofundamentação, fica procurando um fundante último que não seja autofundante e vai perder-se para sempre num fundo que nunca tem fundo. A Lógica da Essência se caracteriza exatamente por este tipo de circularidade. As categorias téticas e antitéticas da Lógica da Essência entram num processus ad infinitum, exceto se e quando se faz a flexão completa sobre si mesmo, a reflexão, e se assume o conceito em sua circularidade. As formas ativas e passivas do verbo precisam flectir-se sobre si mesmas, constituindo a forma reflexa. Em gramática isso é fácil e por todos admitido. Por que não em Lógica e Ontologia?
Um outro par de conceitos pode nos ilustrar a questão e trazer um pouco mais de luz à solução proposta. Segundo a tradição, essência é algo interno que determina o que um ser realmente é. A aparência é algo externo, é algo quase sempre enganador; as aparências enganam, diz a maioria dos filósofos. A essência é o elemento primeiro, mais nobre, mais importante, mais necessário, sim, indispensável. A aparência, pelo contrário, é algo secundário, é algo sem importância, é algo que devemos pôr de lado. Hegel não pensa assim. Para Hegel essência e aparência, enquanto se opõem linearmente, apresentam um problema insolúvel e um regressus ad infinitum, pois nunca saberemos com certeza se o que temos em mente já é uma essência ou ainda é uma mera aparência, atrás da qual se esconde a verdadeira essência, e assim por diante. Para Hegel é preciso sair da linearidade e do regressus ad infinitum e assumir decidamente o movimento circular. Essência e aparência se determinam mutuamente, uma não existe sem a outra, ambas possuem igual importância. Essência é aquilo que aparece. Aparência é a essência que se está mostrando. Como nos Vexierbilder da psicologia da Gestalt temos aqui figura e fundo que se invertem e permitem que se vejam duas coisas diferentes, por exemplo, um cálice ou dois perfís de rosto. No jogo de essência e aparência temos dois termos que se determinam mutuamente, que são duas faces da mesma moeda. O que nunca aparece, o que em princípio não aparece nunca, não é essência, não é nada sobre o que se possa falar sensatamente. Mas se a aparência é a essência que se está mostrando, e se a essência é aquilo que a aparência apresenta, então essência e aparência são apenas dois aspectos da mesma coisa. Essência e aparência, enquanto se opõem como tese e antítese, isto é, enquanto postas de maneira linear, uma contra a outra, levam a um processus ad infinitum. Essência e aparência, quando postas em circularidade, não mais se opõem como tese e antítese, mas constituem uma síntese, na qual ambas, conciliadas, subsistem como unidade, na qual cada uma delas é a contrapartida da outra. Não temos, nem em português nem em alemão, palavra que expresse essa unidade sintética entre essência e aparência, mas nem por isso podemos abrir mão dessa poderosa síntese. A unidade essência/aparência é uma tese central da Lógica de Hegel.
O mesmo ocorre com o causante e com o causado. Num primeiro momento, postos um contra o outro, de maneira linear, levam a um processus ad infinitum. Mas se tomamos causante e causado como unidade sintética; se os colocamos em movimento circular, então o causante se funde com o causado e a unidade dialética de ambos constitui o processo de autocausação. Ativo e passivo aqui se constituem mutuamente e convivem harmoniosamente numa síntese. Para a síntese de ativo e passivo não temos um termo que já esteja consagrado; mas poderíamos introduzir o termo auto-ativação. Para dizer a unidade de causante e causado, porém, temos uma bela palavra, a saber, autocausação.
A solução proposta por Plotino e pelos filósofos neoplatônicos e elaborada em pormenores por Hegel é, na minha opinião, a única possível. Todos os seres, para que existam, necessariamente têm uma razão suficiente. Esta razão suficiente em muitos casos que observamos na experiência do dia a dia está fora e antes do ser que procuramos entender; em tais casos a causa está separada do efeito e vem antes dele. Mas em outros casos, como na vida, na liberdade, no Absoluto, a razão suficiente do ser existe, sim, e tem que existir, mas ela está dentro dele. Não adianta procurarmos fora, porque não a encontraremos: ela não está fora, está dentro. A razão suficiente que está dentro de um ser faz que este ser se explique por si mesmo, que ele se determine por si mesmo, que ele seja um ser autodeterminante e auto-organizado. O Deus de Tomás de Aquino com seu ato livre de criar o mundo só pode ser pensado sem contradição, se o pensamos como um ser que é, ao mesmo tempo, causante e causado, ou seja, como autodeterminação, como causa sui. A doutrina do Aquinate sobre a causalidade, o impede de pensar causa e efeito como causalidade circular, como causa sui. Mas, sob o peso do problema, o próprio Tomás de Aquino, quando trata dos atos livres de decisão, abandona por alguns momentos sua teoria sobre a impossibilidade da causa sui e a utiliza como única solução para a questão da liberdade: Liberum est quod sui causa est. Quod ergo non est sibi causa agendi, non est liberum in agendo; Livre é somente aquele que é causa de si mesmo. O que não é causa para si mesmo, não é livre em seu agir.
Mas esta não é a solução geralmente proposta, nem por Tomás de Aquino, nem pela maioria dos pensadores da Idade Média e da Renascença. A doutrina usual é aquela que separa rigidamente causa e efeito, dizendo ser impossível que exista algo como causa sui, como auto-organização. Esta dicotomia, nunca conciliada, entre causa e efeito entra na tradição filosófica que não é neoplatônica, entra em Newton e em todas as ciências empíricas, entra na concepção de causalidade da Crítica da Razão Pura de Kant e encontra seu apogeu filósofico no livro que Schopenhauer apresenta para obter sua Livre Docência. Grande parte da Filosofia e praticamente todas as ciências, a partir do século XIII adotam uma concepção do mundo, em que a causa está sempre separada do efeito e é anterior a ele. Isso, por um lado, permitiu, sem dúvida, imensos progressos nas ciências, mas, pelo outro lado, impediu que se pensasse corretamente o que é vida, o que é liberdade, o que é democracia. Os processos em que a circularidade de causa e efeito predominam ficaram sem explicação. Por isso, os processos vitais e a liberdade como autodeterminação tornaram-se problemas sem solução. Esse estado de coisas durou séculos, até que Ludwig von Bertalanffy, que na Universidade de Viena além de Biologia estudou Filosofia, entrou em contato com a tradição clássica, leu e escreveu um livro sobre Nicolaus Cusanus, resgatou a tradição neoplatônica e reformulou, então, em linguagem contemporânea, a Teoria de Sistemas, a doutrina que a partir da autocausação explica não só a auto-organização dos seres vivos, como também a autodeterminação do ato livre de decisão. A teoria da autocausação da tradição filosófica, redescoberta e reformulada por Bertalanffy com o nome de Teoria de Sistemas, é a Ontologia neoplatônica atualizada e trazida para o a ciência de nossos dias.
A causa de si mesmo, o aitíon heatõu de Plotino e de Proclo, o movimento absoluto que é o repouso absoluto de Nicolaus Cusanus, a causa sui da primeira linha da primeira página da Ética de Espinosa, o Eu que se põe como Eu de Fichte, o processo dinâmico de autoprodução da Natureza, natura naturans e naturata naturata de Schelling, a circularidade da causação recíproca na Lógica da Essência de Hegel, eis as raízes filosóficas de onde surgem as teorias contemporâneas sobre auto-organização. A dedicatória no livro de Bertalanffy é prova disso.

2. A Natureza como processo de auto-organização


Nada melhor do que a Filosofia da Natureza de Schelling para fechar o arco entre a tradição neoplatônica da causa sui e as teorias contemporâneas de auto-organização.
Fichte partira do Eu que, depois de se pôr a si mesmo, põe o Não-Eu, isto é, põe um universo sem vida, distinto e separado do Eu e de sua produtividade. Schelling, na Filosofia da Natureza, faz o caminho inverso. Toda a vida, inclusive e principalmente a vida do Eu, foi engendrada dentro da Natureza e pela Natureza. A Natureza é a totalidade do Universo que está em movimento constante de autoprodução e de evolução. No princípio a matéria parece ser morta. Mas não é. De lá de dentro dessa matéria aparentemente morta emerge, então, a vida que se desenvolve primeiro como plantas, depois como animais e finalmente como o homem pensante.
A primeira grande característica desta concepção é que a Natureza é uma unidade, que a Natureza é o Universo inteiro. A segunda característica é que a Natureza não é estática, mas um processo dinâmico de evolução, que sempre de novo engendra novas formas de ser e existir. A terceira característica é que o homem com seu espírito pensante nasceu de dentro desse processo evolutivo e continua parte integrante dele. Vida e matéria não são princípios primeiros e irredutíveis um ao outro. Pelo contrário, espírito, vida e matéria são apenas aspectos do mesmo processo, uno e único, que é a evolução e o desdobramento do Universo a partir do ovo inicial. Ab ovo, diziam, os antigos.
A mais impressionante semelhança com as teorias contemporâneas de auto-oprganização consiste na criatividade ínsita nesse processo de evolução. Para Schelling a natureza é altamente inventiva, é poderosamente criativa. Ela está sempre a engendrar novidades, novas formas, novos seres, novos pontos de equilíbrio. E como tudo se faz dentro de uma única Totalidade, que é a Natureza, tudo está interligado e tudo influi sobre tudo. O Todo do Universo, a totalidade em movimento criativo engendra a multiplicidade, mas elimina as incoerências e restabelece sempre de novo o equilíbrio do processo evolutivo. Assim, a Natureza produz o homem com seu espírito e sua capacidade criativa. A criatividade artística do homem é a ponta de lança da criatividade primeva da própria Natureza. O homem, em sua autoconsciência, pensa e cria. Mas mesmo esta autoconsciência é apenas o fruto maduro de algo que já estava, desde o começo, posto no ovo inicial. O Cusanus diria aqui, tudo que está agora, depois do desenvolvimento e do desdobramento processual, como explicatum estava como implicatum no primeiro começo.
É neste exato contexto que surge a seguinte objeção. Tudo bem. Existe, realmente, uma semelhança de padrões entre a Filosofia da Natureza de Schelling e as teorias contemporâneas de auto-organização. Mas há uma grande diferença, uma diferença tão essencial que põe Schelling e os filósofos neoplatônicos num planeta diferente do planeta habitado pelos cientistas. Os filósofos, também Schelling, querem construir uma Filosofia da Natureza como uma ciência que é totalmente a priori. O filósofo sentado em sua poltrona, sem jamais levantar-se, sem jamais ir olhar como é que a realidade de fato é, pega papel e lápis, hoje, um computador, e faz a dedução de todo o processo de evolução da Natureza. O cientista, entretanto, trabalha a posteriori; ele primeiro observa cuidadosamente os fenômenos da natureza, para só depois formular uma teoria. A teoria científica precisa ter coerência interna, é claro, mas ela precisa ser objeto possível de falsificação pela observação empírica, pelo experimento. A teoria do físico teórico só adquire foros de verdade quando confirmada pelos experimentos do físico experimental. O mesmo vale para os cientistas que trabalham com as teorias de auto-organização. Eles primeiro observam os fenômenos, eles trabalham a posteriori, e só depois formulam a teoria. Ora, os filósofos se recusam terminantemente a fazer isso. Filosofia, também no primeiro Schelling, é sempre e somente a priori.
Erro, muito erro. Erro duplo. O primeiro erro consiste em pensar que todos os filósofos, em especial Schelling, só trabalhem a priori. Não é verdade. Embora haja, entre os filósofos uma predominância do conhecimento a priori, em alguns casos até uma exclusividade do a priori, o conhecimento a posteriori também é parte essencial da Filosofia. O melhor exemplo disso é exatamente Schelling, que no começo de sua vida filosófica pretendia trabalhar só a priori, e que, então, descobriu a importância da contingência e, assim, do conhecimento a posteriori. O Schelling tardio introduz o termo Filosofia Positiva exatamente para abrir espaços para o conhecimento que, respeitando a contingência das coisas, trabalha a posteriori. Quem ousaria afirmar que as figurações da Fenomenologia do Espírito de Hegel são fruto de dedução a priori? Antígona a priori? A Revolução Francesa a priori? O Terror a priori? Certamente que não.
Para fazer justiça aos fatos históricos, é preciso dizer que muitos filósofos exageraram a dose de a priori, que alguns filósofos ficaram tão obcecados com o a priori que desconsideraram o campo do conhecimento a posteriori e o entregaram aos cientistas. É preciso dizer que o jovem Schelling, no começo de sua carreira, pretendia deduzir tudo, mas é preciso dizer também que ele mesmo descobriu seu erro e introduziu a Filosofia Positiva. No século XX, mais exatamente a partir de Dilthey e Droysen, a partir do Dasein de Heidegger nenhum filósofo pretende construir toda a Filosofia utilizando somente o método a priori. Sabemos todos que o mundo é contingente e que o contingente não se deixa deduzir; o que é contingente precisa ser constatado em sua existência, que não é necessária, e historiado em seu desenvolvimento. Como o Universo é um processo contingente de evolução, toda Filosofia hoje que seja minimamente crítica precisa conjugar o método a priori e o método a posteriori. O primeiro serve para julgar a coerência interna das teorias, o segundo serve para dar conteúdo material às perguntas e respostas da teoria, bem como para julgar a coerência das teorias com a realidade. A conjugação do a priori e do a posteriori, eis o único método hoje admissível em Filosofia.
O segundo erro está no lado dos cientistas. É verdade que desde o nominalismo inglês há um forte apelo ao método a posteriori. É certo que toda a ciência hoje parece trabalhar só a posteriori. É verdade que os cientistas de Galileu até Einstein inclusive primeiro trabalhavam e coletavam dados do mundo empírico, para depois formular uma teoria. Mas a verdade completa vai mais longe e é maior: segundo os cientistas, de Galileu, Newton e Laplace até Einstein, a teoria, uma vez corretamente formulada, permitiria fazer uma dedução matematicamente rigorosa tanto para trás, para o passado, como para frente, para o futuro. O sonho de todos os cientistas de Galileu até Einstein era encontrar a fórmula que permitisse deduzir absolutamente tudo. A hybris intelectual dos cientistas e sua predileção pela dedução a priori não era, como se vê, menor que a hybris e a pretensão dos filósofos. As deduções universais de Fichte e de Schelling não são muito diferentes do sonho científico de Newton, de Laplace e de Einstein, que a partir de uma fórmula e de uma situação inicial pretendiam calcular e predizer rigorosamente todo o processo futuro. Foi Heisenberg, com seu princípio de incerteza, quem começou a restringir a força abrangente da dedução a priori na Física. Foi somente Ilya Prigogine quem, há não muitos anos, demonstrou a irreversibilidade dos processos dinâmicos dissipativos e introduziu, assim, em Química e Física, o elemento da historicidade, ou seja, o a posteriori. Depois de Prigogine, o cientista sabe, em princípio, que não pode deduzir tudo que vai acontecer. Isso, nós filósofos entrementes também aprendemos.
O que significa isso? Que tanto na dialética ascendente como na dialética descendente há sempre, além do a priori, um momento essencial e inarredável que é a posteriori. Ao sair do mundo empírico e subir, degrau por degrau, para os primeiros princípios, operamos com ambos os métodos, a priori e a posteriori. Os diálogos de Platão e a Fenomenologia do Espírito de Hegel, para citar só dois exemplos clássicos de dialética ascendente, estão cheios de elementos a posteriori. Que eu saiba, ninguém jamais os negou. A tentação e o problema, como para os cientistas, está na dialética descendente. Pode-se a partir dos primeiros princípios deduzir a priori todo o Universo? Fichte pensava que sim, o jovem Schelling pensava que sim. Hoje sabemos que isso não é possível. Não é possível, porque o processo de evolução do Universo contém elementos contingentes e o que é contingente, por definição, não pode ser deduzido a priori de princípios apenas formais.
Cientistas e Filósofos do século XX nem sempre sabiam da importância da contingência e, por isso, do a posteriori. Hoje sabemos. O Universo como totalidade em movimento precisa, pois, ser visto e estudado como um sistema de auto-organização, em que o elemento a priori se conjumina com o elemento a posteriori, como um sistema que muitas vezes nos surpreende com sua gigantesca criatividade, pois engendra coisas tão completamente novas que, estonteados face à emergência do novo, voltamos ao dito de Sócrates com o qual começou a Filosofia: Sabemos que nada sabemos.