Causalidade e auto-organização
Carlos Cirne-Lima (Unisinos)
A Teoria de Sistemas, também chamada de Teoria de Auto-Organização,
foi criada em nosso século por Ludwig von Bertalanffy, que em 1945
a publicou em alemão, em 1950, em inglês. A Teoria de Sistemas,
inicialmente uma teoria nos quadros da Biologia, apresentada logo após
a segunda grande guerra mundial por um jovem cientista austríaco,
transformou-se, no decorrer da segunda metade do século XX, numa
das mais importantes e instigantes teorias de toda a ciência. A
Teoria de Sistemas, nestes cinquenta anos, saiu dos limites da Biologia
e deu nascença à Cibernética (Norbert Wiener) e à
Ecologia (Uexküll, Weiszäcker), foi introduzida com imenso sucesso
na Sociologia e no Direito (Niklas Luhmann), na Psicologia (Buckley),
na Neurofisiologia do Conhecimento (Maturana, Varella), na Medicina, na
Psiquiatria (Gray, Duhl, Rizzo), nas Teorias de Administração,
na Economia Política e, para surpresa de muitos, nas ciências
duras, ou seja, na Química (Prigogine) e na Física (Lee
Smolin). Em nossos dias, há até quem afirme, que a Grande
Teoria Unificada pode ser construída através da Teoria de
Sistemas. O sonho científico de todos os grandes físicos,
até hoje não concretizado, de formular uma teoria universalíssima
do Universo, na qual estejam conciliadas tanto a teoria da relatividade
com a mecânica quântica, este sonho, diz o físico Lee
Smolin, pode vir a ser realizado pela Teoria de Sistemas. Smolin possivelmente
tem razão, afirma Murray Gell-Man, um dos mais respeitados físicos
contemporâneos.
Da fonte inicial, em seu começo tão singela, originou-se
um fio d’água que se transformou em rio caudaloso que atravessa,
hoje, quase todas as ciências, engendrando, por onde passa, um húmus
rico, prenhe de promessas de novos avanços científicos e
de novas e revolucionárias soluções. Os defensores
da Teoria de Sistemas, os adeptos da Teoria de Auto-Organização
estão hoje bem cientes de que formam, no panorama da ciência,
uma das pesquisas de ponta que mais frutos promete. Estão, eles,
entretanto, completamente enganados no que toca ao conhecimento do horizonte
filosófico em que se situam e – por que não dizê-lo?
– no que toca ao reconhecimento de suas origens. Niklas Luhmann,
em seu livro Die Wissenschaft der Gesellschaft, escreve que a Teoria de
Sistemas nasce no século XX com Ludwig von Bertalanffy, sendo,
assim, fruto ainda em fase de formação do pensamento contemporâneo.
Quando de sua longa estadia em Porto Alegre, anos atrás, muito
discuti com Luhmann a esse respeito. Tentei mostrar-lhe que a estrutura
subjacente à Teoria de Sistemas dos cientistas contemporâneos
era exatamente a mesma que constituía o núcleo duro da teoria
sobre causa sui dos filósofos neoplatônicos, de Plotino e
também de Nicolaus Cusanus, Espinosa, Goethe, Schelling e Hegel.
Luhmann percebeu, é evidente, as semelhanças estruturais
existentes entre auto-organização e causa sui, mas nunca
consegui convencê-lo de que houvesse uma ligação histórica
entre ambas as doutrinas, de que as teorias sobre auto-organização
eram uma continuação orgânica das teorias neoplatônicas
sobre causa sui. Poucos anos depois, Humberto Maturana, provocado a este
respeito por Myriam Graciano, respondeu de maneira igualmente negativa.
Myriam, que antes de ir estagiar com Maturana em Santiago do Chile, passara
um semestre em meu seminário, em Porto Alegre, e de mim ouvira
que a Teoria de Sistemas era a figuração contemporânea
da antiga e veneranda doutrina neoplatônica sobre a causa sui, Myriam
Graciano, indo de Porto Alegre para Santiago do Chile, perguntou a Maturana
de forma clara e direta, qual a origem da Teoria de Sistemas. Maturana
asseverou-lhe que se tratava de uma teoria contemporânea, criada
por Bertalanffy, e que qualquer ligação com teorias filosóficas
do passado deveria ser desconsiderada.
Errado, muito errado. Auto-organização é a forma
contemporânea de pensar e dizer o que a tradição chamava
de causa sui e, em época posterior, de autodeterminação.
A Teoria de sistemas e de auto-organização é a roupagem
sob a qual se esconde, em nossos dias, a ontologia do neoplatonismo. E
é por isso que a Teoria de Sistemas é tão rica e
tão prenhe de soluções: ela é a herdeira intelectual
de Platão, Plotino, Proclo e Agostinho, de Nicolaus Cusanus e de
Guiordano Bruno, de Espinosa, Fichte, Schelling e Hegel. Por isso a Teoria
de Sistemas é, ao mesmo tempo, tão misteriosa e tão
esclarecedora, tão luminosa que chega a ofuscar. Hoje tenho a prova,
clara e convincente, que me faltou à época em que discutia
sobre isso com Luhmann. Se Luhmann ainda fosse vivo, bastaria, para dirimir
a questão, mostrar-lhe a dedicatória que Bertalanffy pôs
no começo da Teoria Geral de Sistemas. Claro que eu a havia lido
quando, pela primeira vez, bem jovem ainda, lera o livro de Bertalanffy.
Mas qual jovem dá importância a dedicatórias? Dedicatórias
são, via de regra, para a esposa, para os filhos, para os pais.
Mesmo quando a dedicatória é solene, mesmo quando é
em latim, o leitor jovem costuma passar por cima, sem a ler. Foi o que
fiz, foi o que me impediu de mostrar a Luhmann a prova inegável
de que a Teoria de Sistemas vem do seio da tradição neoplatônica.
Bertalanffy dedica a Teoria Geral de Sistemas do seguinte modo: Manibus
Nicolai de Cusa Cardinalis, Gottfriedi Guglielmi Leibnitii, Joannis Wolgangi
de Goethe Aldique Huxleyi, necnon de Bertalanffy Pauli, S.J., antecessoris,
cosmographi. Ludwig von Bertalanffy, nesta dedicatória solene,
oferece seu livro àqueles que o inspiraram, a autores da tradição
neoplatônica: ao Cardeal Nicolaus Cusanus, sobre quem ele, em 1928,
escrevera e publicara um livro, a Leibniz, a Goethe, a Aldous Huxley e
a seu antepassado, o cosmógrafo Paulus von Bertalanffy. Cusanus,
Leibniz e Goethe, aqui citados, são os autores neoplatônicos
que influíram direta e explicitamente em Bertalanffy; por trás
dos nominados está, implícita, toda a tradição
que vem de Platão, Plotino e Proclo, passa pelo Cusanus e por Giordani
Bruno, e tem seu apogeu filosófico em Espinosa, Fichte, Schelling
e Hegel.
Procurarei mostrar, neste trabalho, como a reflexão sobre as origens
neoplatônicas da Teoria de Sistemas não só permite
a inserção do problema da auto-organização
no contexto da grande tradição filosófica, como ilumina
a discussão contemporânea, abrindo novas perspectivas nas
mais diversas ciências. Na primeira parte, trato da questão
contemporânea: O que é auto-organização? Na
segunda parte, mostro como o conceito de auto-organização
nos vem de Platão e Plotino, tornando-se um conceito central em
Schelling e Hegel. Na terceira parte, à guisa de conclusão,
procuro mostrar que a junção teórica da Teoria da
Evolução com as Teorias de Autocausação e
de Auto-Organização nos fornece uma Ontologia, que é
velha porque vem de Platão, de Schelling e de Hegel, e que é
nova, novíssima, porque responde a questões prementes da
Filosofia e das Ciências do século XXI.
1. Auto-organização
Aristóteles explica os seres vivos mediante o conceito de enteléquia,
os pensadores medievais nos falam de anima vegetativa e de anima sensibilis,
a alma que é própria da vida vegetativa das plantas e a
alma que caracteriza e possibilita a vida animal. O homem teria, segundo
os pensadores clássicos da Idade Média, uma alma intelectual
ou espiritual; esta alma intelectual conteria, dentro de si, além
da força vegetativa e da força animal, uma força
capacitante mais alta e mais nobre, que daria origem a nossas atividades
intelectuais e volitivas. As almas dos seres vivos vegetais e animais,
de acordo com a maioria dos medievais, se reproduziriam automaticamente
à medida que os corpos respectivos se reproduzissem; a alma espiritual
do homem, entretanto, seria criada, cada uma, individualmente, pelo próprio
Deus Criador do Universo. Daí a dignidade do homem e a posição
central que o homem ocupa no cosmo.
Nos séculos XVI e XVII, ocorre a Revolução Científica,
que começa com Copérnico e Galileu, passa por Descartes
e Bacon e atinge na Física de Newton e no mecanicismo seu apogeu.
A noção dualista de um ser vivo composto de corpo e alma
é substituída pela idéia de máquina. Todos
os seres vivos, sim, todo o Universo têm que ser pensados como máquinas
construídas e governadas por leis matemáticas exatas. O
dualismo antigo, que distinguia corpo e alma e atribuía à
alma a tarefa e a capacidade de organizar o corpo em si e de per si inanimado
e informe, ou seja, a tarefa de transformar o corpo anorgânico em
um ser vivo, este dualismo foi gradativamente abandonado. O mecanicismo,
iniciado por Galileu, festeja seu grande triunfo na mecânica clássica,
inaugurada por Newton, pois esta explica as coisas do Universo, inclusive
os seres vivos, melhor e de maneira mais simples. O mecanicismo monista
substitui o dualismo de corpo e alma, defendido pelos antigos, por ser
uma teoria mais enxuta, mais sóbria, mais científica, que
explica todas as coisas a partir de princípios gerais extremamente
simples, a saber, as leis da mecânica. Deus, nesta concepção,
tem que ser pensado como o relojoeiro que construiu o grande relógio
do mundo, inclusive os seres vivos e, assim, o homem.
O triunfo da mecânica de Newton, no século XVII, dá
início a uma radical transformação na maneira como
a ciência passa a trabalhar. O dualismo de corpo e alma é
abandonado pelos cientistas e continua existir tão somente na Filosofia
e na Teologia. O dualismo, desacreditado por aqueles que trabalham e pesquisam
como cientistas, passa a ser uma doutrina de filósofos e de teólogos
que, cegos para os progressos da ciência, continuam a cultivar conceitos
e teorias que os cientistas consideram totalmente ultrapassados. Almas,
se alguém quiser nelas acreditar, tudo bem; almas podem, talvez,
ser objeto de crença religiosa; na ciência, almas são
inadmissíveis.
A explicação mecanicista, aplicada por William Harvey à
circulação do sangue, festeja, então, mais um sucesso
e abre o caminho para a explicação materialista do homem.
Surge, assim, no século XVIII, Lavoisier, o pai da química
moderna, que consegue interligar o anorgânico e o orgânico,
demonstrando que aquilo que os antigos pensavam ser atividade típica
e exclusiva da alma, a respiração, não passa de uma
reação química: a respiração dos seres
vivos não tem nada a ver com alma, com espírito; respiração
é apenas uma forma especial do fenômeno químico de
oxidação. A vida não se explica pela ação
de uma entidade misteriosa, a alma, e sim pelas mesmas leis da Física
e da Química que regem o mundo anorgânico, sustenta Lavoisier.
Assim cai a última barreira, assim desaparece, para os cientistas,
o dualismo de corpo e alma. E a alma? A alma não morreu; a alma
nunca existiu. A alma era apenas uma palavra que encobria nosso déficit
de conhecimento sobre o funcionamento da máquina que é o
núcleo dos seres vivos. Descoberta a estrutura da máquina,
compreendida a doutrina da mecânica clássica, a alma tem
que ser relegada à categoria de centauros e quimeras, entidades
que não existem e nunca existiram. Se filósofos e teólogos,
no entanto, continuam a falar de alma, o problema e a responsabilidade
é deles; os cientistas sabem que não existe alma. Assim
começa a grande cisão que vai separar e afastar, cada vez
mais, a Ciência, por um lado, e Filosofia, Teologia e Religião,
pelo outro lado.
Somam-se ao quadro acima descrito a elaboração, por Charles
Darwin, da Teoria da Evolução, a descoberta das leis da
Genética por Mendel, a descoberta da dupla hélice por Crick
e Watson, a identificação e descrição química
do DNA e, em nossos dias, a seqüenciação do genoma.
A Ciência, de Galileu para cá, fez avanços fantásticos
e mudou completamente nossa concepção sobre o que é
o ser vivo, sobre o que é o Universo. A Teologia, entrementes,
sofre dolorosa estagnação e a Filosofia, para não
passar maiores vexames, abandona sua pretensão de universalidade,
abandona por completo a tarefa de fazer uma Filosofia da Natureza, e passa
a tratar apenas da Lógica, da Linguagem e da Ética. Apel
e Habermas afirmam, hoje, que há na História da Filosofia
três paradigmas: o paradigma do ser, na Antigüidade e na Idade
Média, o paradigma do sujeito, na Modernidade, e o paradigma da
linguagem, que é o paradigma da Filosofia Contemporânea.
Os paradigmas, segundo eles, se sucedem historicamente. Passou, para nunca
mais voltar, afirmam eles, a época em que filósofos discutiam
sobre o ser e o sujeito como sendo o núcleo na Filosofia; hoje,
o objeto da Filosofia é a linguagem e só a linguagem. Da
análise da linguagem deduzem Apel e Habermas, então, uma
Ética Geral. E com isso acabou a Filosofia. Análise da linguagem
e Ética, eis tudo o que sobrou da Filosofia. Filosofia deixa de
ser, assim, a raínha das ciências, deixa de ser a ciência
universalíssima e omniabrangente, deixa de ser uma disciplina universal,
para tornar-se apenas mais um acesso à verdade, lado a lado com
a Lingüística, com a Sociologia, com a Psicologia, com a Física
e a Química, com as outras ciências particulares. Esta é
a tese defendida por Jürgen Habermas. Eu, não Habermas, acrescento
agora: Cavete, philosophi, a Filosofia e os filósofos que se cuidem,
pois, se as coisas continuarem assim, a Lingüística lhes vai
tirar das mãos a Análise da Linguagem e a Etologia lhes
arrebatará a Ética. Cavete, philosophi! Filósofos,
tenham cuidado, pois no ritmo e na direção que as coisas
vão, Filosofia deixará de existir como ciência e sobreviverá
apenas como um tipo subdesenvolvido e ruim de poesia, ou, pior ainda,
como um tipo retrógrado de literatura de auto-ajuda.
É claro que houve, no decorrer da evolução acima
descrita, alguns retrocessos. O mecanicismo não conseguia, por
exemplo, explicar com suficiente exatidão os fenômenos observados
na diferenciação celular; não conseguia explicar
especialmente o fenômeno biológico de regeneração.
Na regeneração, o organismo mutilado, às vezes severamente
mutilado, consegue reconstituir-se em sua totalidade. Assim a planaria
alpina, cortada ao meio, cortada em pequenos pedaços, sempre de
novo se recompõe em sua totalidade. Como explicar, somente a partir
das partes mutiladas, sim, a partir das poucas partes que sobraram do
processo destrutivo, a reconstituição do organismo como
um todo? Esta e outras perguntas ficaram, à época, sem resposta
e este déficit explicativo na doutrina mecanicista deu ensejo,
no século XIX, à introdução na Biologia do
vitalismo. O vitalismo não retorna à doutrina da composição
dos seres vivos de corpo e alma, mas cria um tipo específico de
dualismo. Além das estruturas mecânicas, afirmam os vitalistas,
como Hans Driesch, há que se admitir uma entidade separada, a vida,
que atua sobre a máquina do corpo, sem entretanto fazer parte dela.
Só assim se poderia explicar que um ouriço-do-mar, cortado
pela metade, se possa regenerar e desenvolver, voltando a formar um ouriço-do-mar
completo, embora de menor tamanho. Os mecanicistas, porém, contra
Driesch e os vitalistas, continuaram afirmando, como que num dogma, que
as leis da mecânica clássica eram fundamento bastante para
explicar o fenômeno da vida.
A evolução da ciência no século XX traz a grande
reviravolta. Einstein elabora a Teoria da Relatividade e nos obriga a
abandonar as noções tradicionais de espaço e de tempo
expostas por Newton na Mecânica Clássica. Tudo aquilo que
pensávamos ser as leis universalíssimas da Física
entra em colapso: a Mecânica Clássica de Newton não
consegue explicar com exatidão o mundo das estrelas e galáxias,
a Teoria da Relatividade, porém, o consegue. No mundo do átomo,
a Mecânica Quântica elaborada por Niels Bohr, Max Plank, Schrödinger,
Heisenberg e tantos outros faz outra revolução científica:
no mundo das partículas subatômicas não vigem as leis
da Mecânica Clássica e sim outras leis, completamente diversas,
leis à primeira vista desconcertantes e contra o senso comum, as
leis da Mecânica Quântica.
É neste contexto histórico que a Mecânica Clássica
é tirada de seu pedestal de ciência universalíssima
e é posta como uma doutrina válida apenas para algumas áreas
ou regiões do Universo; é neste contexto que o mecanicismo
como dogma inabalável e indiscutível de todas as ciências
definha, se enfraquece e morre como que de morte natural. Surge, então,
a Teoria de Sistemas.
Os biólogos Ross Harrison, Lawrence Henderson, Joseph Woodger e
Joseph Needham, nas primeiras quatro décadas do século XX,
apontam para o fato inegável de que não são as partes
como partes que constituem aquilo que chamamos de vida. Nâo são
as partes, mas sim as relações existentes entre as diversas
partes que constituem a unidade organizada do ser vivo. Vida é
organismo, organismo é o nome que damos à harmonia hierárquica
das relações existentes entre as diversas partes que constituem
um ser vivo. Para além das leis da Física e da Química,
há que se pensar algo mais, a saber, a organização,
aquilo que ordena as relações entre as partes. E como o
ser vivo, por definição, é aquilo que se reproduz,
para compreender o que é a vida, temos que considerar como estrutura
central aquela forma de organização que se reproduz a si
mesma, ou seja, que se organiza a si mesma, que é, em si, auto-organização.
Eis, já aqui, o núcleo da Teoria de Sistemas. Ludwig von
Bertalanffy publica, em 1945, em alemão, a primeira versão
da Teoria Geral de Sistemas, Zu einer allgemeinen Systemlehre, em 1950,
em inglês, An Outline of General System Theory. Após a guerra,
depois de sair da Viena destruída e refugiar-se no Canadá,
Bertalanffy apresenta copiosa produção científica,
forma alunos, ganha o apoio de mais e mais biólogos, etólogos,
bioquímicos, neurofisiologistas, psicólogos, sociólogos,
juristas etc. Bertalanffy conquista, assim, a adesão de mentes
brilhantes e a Teoria Geral de Sistemas cresce, se espalha pelas diversas
ciências, apresentando soluções, onde não as
havia, indicando caminhos, onde só existiam becos sem saída,
construindo sínteses esclarecedoras, onde reinava confusão.
A Teoria Geral de Sistemas neste meio século de existência
acumulou sucessos em cima de sucessos e hoje se apresenta como uma das
mais fortes candidatas à posição de Grande Teoria
Unificada, a Teoria Mãe, na qual Teoria da Relatividade, Mecânica
Quântica e a toda a Biologia Geral com sua Teoria da Evolução
estão conciliadas.
O que é a Teoria Geral de Sistemas? O que é um sistema?
Não existem ainda definições de sistema que sejam
aceitas por todos. Proponho, por minha conta e risco, uma definição
que não sei se está completa, mas que é a melhor
que posso dar: Sistema é um processo circular que, embora sob o
aspecto energético seja aberto para o meio ambiente, sob o aspecto
estrutural ou organizacional é fechado sobre si mesmo, que é
estável, que se retrodetermina (feed back), se realimenta, se recompõe
e se reorganiza de maneira plástica a partir de seu meio ambiente,
que exerce seletividade em suas interações para com este,
que em muitos casos se replica ou reproduz, que, quando afastado de seu
ponto de equilíbrio, em muitos casos, engendra novas formas de
organização e de comportamento, as quais se inserem num
processo de evolução que é regido pela lei de coerência
universal (seleção natural).
Passemos à análise pormenorizada dos elementos contidos
nesta tentativa de definição.
O sistema de auto-organização é, primeiro, um processo
circular. Desde Aristóteles, principalmente desde Tomás
de Aquino, pensamos que causa e efeito constituem um processo absolutamente
linear. A causa é sempre e necessariamente diferente do efeito
que ela produz; a causa é lógica e ontologicamente anterior
ao efeito por ela produzido. Se um efeito, uma vez efetivado, torna-se,
ele mesmo, uma nova causa, então ele produz um novo e ulterior
efeito, fora dele e depois dele. Se este efeito novamente se transforma
em causa e produz mais um efeito, também este será algo
ulterior e diferente. Assim surge a série causal linear. A causa
1 produz um efeito 1, o qual, subsistindo em si mesmo, se transforma em
causa 2 e produz um ulterior efeito 2, o qual se transforma em causa 3
e produz o ulterior efeito 3, e assim por diante. A série causal
linear caracteriza-se por dois elementos essenciais: 1) O efeito é
diferente da causa que o produz; ele é lógica e ontologicamente
diverso dela e posterior a ela. 2) Um efeito pode tornar-se causa, mas
neste caso ele produz um outro efeito que é lógica e ontologicamente
diverso dele e a ele posterior, constituindo, assim, uma série
causal linear. Desde Aristóteles e Tomás de Aquino até
a Mecânica Clássica de Newton e a Teoria da Relatividade
de Einstein este conceito linear de causalidade é a concepção
dominante em grande parte da tradição filosófica
e em quase todas as ciências. Causa e efeito, nesta concepção,
são entidades diversas, sim, separadas, pois o efeito é
sempre posterior à causa.
A idéia da causalidade linear é uma teoria brilhante que,
no decorrer de nossa história, mostrou que possui uma poderosa
força explicativa, tendo prestado os mais relevantes serviços
à ciência. Muitíssimas coisas podem e devem ser explicadas
no âmbito da causalidade linear. O problema é que este tipo
de causalidade não é o único, ele não explica
todos os fenômenos. Se este tipo de causalidade linear fosse o único,
os processos cibernéticos simplesmente não poderiam existir.
O que é um processo cibernético? Desde a antigüidade
conhecemos processos cibernéticos, mas foi Norbert Wiener quem,
em nossos dias, num ato de coragem intelectual, formulou a teoria e afirmou
que uma série causal pode flectir-se sobre si mesma e configurar-se
em forma circular, de maneira que o último efeito da série,
que é sempre finita, atua como causa sobre a primeira causa da
série. Assim, a série causa/efeito se fecha sobre si mesma,
em círculo, se retro-alimenta e se retrodetermina. Um exemplo banal
de nosso dia a dia sirva de exemplo. A geladeira em nossa casa está,
digamos, com a temperatura interna de 10 graus. Se abrirmos muitas vezes
a porta, se introduzirmos gêneros alimentícios em temperatura
ambiente, a temperatura interna da geladeira começa a subir. Ao
atingir, digamos, 15 graus, o termostato reconhece a temperatura limite
e liga o motor. O motor trabalha e produz frio, até que a temperatura
interna da geladeira volte a seu padrão e, então, se desligue
automaticamente. Tudo isso ocorre, sem que nós, homens, tenhamos
que interferir, ligando ou desligando processos. A geladeira regula sua
temperatura interna, mediante o termostato, num processo circular em que
uma causa (temperatura de 15 graus) produz um efeito (acionar o termostato),
o qual por sua vez é uma causa que produz um novo efeito (ligar
o motor), o qual se transforma em causa e provoca um efeito ulterior (o
frio), o qual se transforma em causa e, em determinado momento, volta
a produzir um efeito, isto é, a acionar o termostato, dando, assim,
continuidade ao movimento circular de auto-organização.
A cadeia de causa e efeito, neste processo, abandonou a forma linear e
tornou-se circular, de sorte que a série causa/efeito/causa/efeito/causa
se fecha sobre si mesma. A circularidade do processo causal, eis o primeiro
elemento constitutivo de um sistema de auto-organização.
Isto também é chamado é de retrodeterminação,
realimentação, feed back. Toda a cibernética se funda
nisso.
O segundo elemento essencial em processos de auto-organização
é que o sistema, embora seja fechado sob o aspecto organizacional,
é aberto sob o aspecto energético. O processo de auto-organização
é sempre uma série de causas e efeitos em forma de círculo;
neste sentido todo sistema de auto-organização é
um sistema fechado sobre si mesmo. É fechado porque e enquanto
é um processo circular. Mas os sistemas, embora fechados e circulares
em sua forma de organização, são abertos sob o ponto
de vista energético. A segunda lei da termo-dinâmica, a lei
da entropia, exige que tais sistemas sejam abertos. Se eles não
fossem abertos, a energia que põe em movimento o processo circular
seria algo meramente interno ao sistema, seria uma energia finita que
muito logo se esgotaria, fazendo o movimento do processo parar. Para que
o processo circular continue em movimento, ele precisa, de acordo com
a segunda lei da termo-dinâmica, buscar energia de seu meio ambiente,
de energia que esteja fora de sua estrutura circular. A geladeira, se
não está ligada na tomada, pára de funcionar. –
Schrödinger, em suas preleções sobre a vida na Universidade
de Dublin, percebeu claramente este fenômeno, isto é, o conflito
existente entre o fechamento organizacional dos seres vivos e a abertura
exigida pela lei da entropia, e criou, por isso, o termo neguentropia.
Os seres vivos possuiriam, segundo ele, uma força interna negando
a entropia, a neguentropia. Os muitos protestos contra a neguentropia,
que surgiram por parte de físicos ortodoxos, fizeram Schrödinger
voltar atrás e retirar o conceito por ele proposto. Naquela época
não se distinguiam clara e corretamente os dois aspectos de um
sistema que é, ao mesmo tempo, fechado e aberto, fechado enquanto
organizacional e aberto enquanto energético. Hoje, sem maiores
dificuldades e sem objeções por parte da termo-dinâmica,
afirmamos que processos de auto-organização são sistemas
fechados sob o aspecto organizacional de sua estrutura, sistemas abertos
sob o aspecto energético.
O terceiro elemento essencial de processos de auto-organização,
intimamente ligado ao segundo, é a estabilidade conjugada com plasticidade.
Sistemas de auto-organização, que se realimentam de energia
vinda do meio ambiente e que se retrodeterminam a partir das irritações
oriundas deste, apresentam tanto uma grande estabilidade como também
uma notável plasticidade. O sistema é plástico, ou
seja, ele está sujeito a perturbações, mas ele é
também estável, isto é, quando perturbado em sua
organização, tende a se reconstituir e se recompor. Só
em casos de perturbação muito violenta é que o sistema
se dissolve e se desfaz. Irritações, dentro de certos limites,
são assimiladas – plasticidade – e o sistema se recompõe,
se reorganiza e volta à sua situação de estabilidade.
Assim, continuando no exemplo da geladeira, há um certo espaço
entre a temperatura que é o limite superior e a temperatura que
é o limite inferior. Esta distância existente entre os dois
limites é o espaço da plasticidade. Isso fica mais claro
nos seres vivos, pois a homeostase apresenta plasticidade e estabilidade
bem maiores que uma máquina ciberneticamente regulada. Nas máquinas
o espaço da plasticidade é rigidamente determinado, pois
o sistema é simples; nos seres vivos a plasticidade se mostra em
toda a sua riqueza, pois os sistemas são complexos, ou seja, não-lineares.
O quarto aspecto essencial de processos de auto-organização
é a seletividade com que o sistema exerce sua interação
com o meio ambiente. O fato de que o sistema seja fechado sob o aspecto
organizacional tem como conseqüência a seletividade de sua
interação. O sistema, por ser fechado, não permite
o ingresso de toda e qualquer força ou influência. O sistema,
enquanto fechado, impede o ingresso de tudo que lhe é estranho,
de tudo que está fora dele, principalmente de tudo aquilo que destrói
ou perturba sua estrutura organizacional. Algumas coisas, entretanto,
tem que ser buscadas no meio ambiente e tem que entrar no sistema, por
exemplo, energia e informação. O sistema, mesmo sendo fechado,
precisa buscar energia de fora. Como a energia existe sob muitas formas
– corrente elétrica, luz, alimentos etc. -, várias
são as formas de interação entre os sistemas fechados
e seu meio ambiente. Mas em todas elas, há uma rigorosa seletividade.
A forma desta seletividade é determinada pela própria organização
interna do sistema. Os sistemas de auto-organização em forma
de máquinas se abastecem de energia sob formas relativamente simples,
como força da queda d’água, vapor d’água,
molas mecânicas, luz e, em nossos dias, na maioria dos casos, de
energia elétrica. Os sistemas de auto-organização
na forma de seres vivos caracterizam-se pela a complexidade que apresentam;
a busca de energia do meio ambiente neles se faz de maneiras extremamente
complexas, por exemplo, pela fotosíntese e pela ingestão
de alimentos situados em determinados segmentos da cadeia alimentar. Além
da busca de energia, a interação seletiva com o meio ambiente
inclui outras características. A mais importante delas é
a troca de informações, fenômeno que já existe
em máquinas que se autoregulam. Sem a troca de informações
com o meio ambiente, nenhum sistema de auto-organização
pode subsistir. Neste sentido bem amplo, em que toda informação
é uma forma primeva de cognição, todo sistema de
auto-organização é um sistema cognitivo. Em máquinas
autoreguladoras esta cognição não se constitui em
consciência, pois os parâmetros e a estrutura do processo
de informação vêm totalmente de fora do sistema. Nos
seres vivos, entretanto, mesmo nos mais simples, há sempre alguma
cognição (= seletividade de informação) engendrada
pela própria estrutura auto-organizada. Percebe-se, aqui, que existe
uma suave gradação de sistemas auto-organizados. A partir
de máquinas autoreguladas, nas quais a cognição é
apenas a seletividade de informações que lhes veio de fora,
passando por estruturas anorgânicas complexas, nas quais a seletividade
de informação já é gerada dentro do sistema,
passando por seres vivos de baixa complexidade, nos quais a cognição
se identifica com a própria vida, passando por seres vivos de maior
complexidade, nos quais a cognição se estrutura como conhecimento
vegetativo e, depois, como consciência sensível, chegamos,
enfim, ao homem, no qual a autoconsciência dos processos mentais
emerge tão forte que parece ser algo completamente diferente e
independente da vida que encontramos na parte inferior da escala. Não
é. Trata-se, como vimos, de uma gradação de formas
de auto-organização.
O quinto elemento dos sistemas de auto-organização consiste
no fato de que estes, pelo menos em alguns casos específicos e
determinados, se replicam e se reproduzem. Este quinto elemento da auto-organização
marca uma característica muito visível dos seres vivos no
sentido estrito do termo; característica esta, às vezes,
pouco visível em outros sistemas auto-organizados. Os seres vivos
se reproduzem de acordo com o código genético contido no
genoma, código este que possui a capacidade de se replicar, de
fazer cópias de si mesmo. - Todos os sistemas auto-organizados,
sejam eles quais forem, possuem, bem visíveis, os primeiros quatro
elementos essenciais, a saber, circularidade, abertura e fechamento, estabilidade
e plasticidade e seletividade de interação. Este quinto
elemento, que não está presente nas máquinas autoreguladas,
ou seja, em sistemas nos quais a organização lhes vem de
fora, marca uma das principais características dos seres vivos.
Mas ele não existe só neles, também se faz presente
em cristais, em processos autocatalíticos, em processos iterativos
de formação de fractais etc. Surge, aqui, a questão
de saber se todos os sistemas auto-organizados possuem a capacidade de
replicação, respectivamente de reprodução.
Penso que sim. Se um sistema possui, oriunda de dentro de si mesmo, a
estrutura de auto-organização, ou seja, se ele não
é apenas uma máquina autoregulada na qual a organização
foi imposta de fora do sistema, ele sempre possui também a capacidade
de reprodução. Esta tese deixa de ser uma afirmação
muito ousada, se e enquanto pensarmos também o mundo e as galáxias
como sistemas auto-organizados, como fazem Lee Smolin, Ervin Laszlo e
outros. Quem pensa nosso planeta terra como um sistema auto-organizado,
como James Lovelock e Lynn Margulis na Teoria Gaia, quem pensa as galáxias
como um processo de auto-organização, como Lee Smolin, não
tem dificuldades em pôr na definição de auto-organização,
como elemento essencial, a replicação e a reprodução.
Assim, segundo Smolin, cada mundo engendra, mediante seus buracos negros,
novos mundos a ele assemelhados; os mundos com muitos buracos negros têm
mais probabilidades de engendrar mundos coerentes do que mundos com poucos
buracos negros. Também aqui, no nível da formação
das galáxias, o princípio da coerência, ou seja, a
seleção natural direciona o processo. Se as galáxias
são sistemas auto-organizados, como quer Smolin, os subsistemas
auto-organizados nelas existentes ou são, eles mesmos, capazes
de reprodução, ou são partes que participam de macroprocessos
de reprodução. Nesta perspectiva, todos os sistemas de auto-organização
possuem a reprodução como elemento essencial.
O sexto elemento essencial dos sistemas de auto-organização
consiste no engendramento de novas formas de organização.
Ilya Prigogine demonstrou que sistemas dinâmicos dissipativos de
auto-organização, quando fora de seu ponto de equilíbrio,
apresentam, em teoria, uma bifurcação: o sistema pode se
dissipar e desaparecer ou, então, pode como que “escolher”
e engendrar uma nova forma de auto-organização. Prigogine
coloca, ele mesmo, a palavra “escolher” entre aspas. A teoria
de Prigogine sobre o engendramento de novas e mais complexas formas de
auto-organização foi amplamente confirmada. A teoria foi
matematizada com exatidão e o sucesso na repetição
dos experimentos práticos de laboratório deram às
teses de Prigogine toda a certeza que uma ciência exata hoje pode
ter. Isso significa, para nós filósofos, que está
demonstrado cientificamente que sistemas dinâmicos dissipativos
fora de seu ponto de equilíbrio podem engendrar novas formas de
auto-organização, formas mais complexas e mais nobres do
que aquelas de onde se originaram. Isso nos dá uma nova e brilhante
característica da evolução e da flecha do tempo.
O engendramento da diferença, isto é, a emergência
do novo e do mais complexo não é apenas um postulado filosófico,
mas uma doutrina científica experimentalmente comprovada. Um dos
mais difíceis elementos na Teoria da Evolução, a
saber, o Princípio da Diferença, que explica a emergência
do novo, recebe das ciências exatas confirmação teórica
e experimental. Também nossa perspectiva do tempo e do mundo sofre
mudança radical. Até Prigogine era apenas a entropia que
marcava a flecha do tempo e impedia que se pensasse o mundo como um sistema
reversível; nesta perspectiva antiga, entretanto, a tendência
da evolução deveria estar direcionada para a morte pelo
frio, para uma desordem sempre maior. Isso, porém, sempre pareceu
estar em conflito com a complexidade que observamos como fato. A teoria
de Prigogine nos fornece, agora, um segundo elemento a direcionar a flecha
do tempo, desta vez em direção a uma ordem cada vez mais
rica e mais complexa. O processo da evolução inclui, em
face da descoberta de Prigogine, além da tendência da ordem
para a desordem, isto é, da entropia, uma tendência da desordem
para a ordem. A combinação de ambas as tendências
é que molda, então, o processo evolutivo.
Pergunta-se, aqui, se esta característica de engendrar organizações
mais complexas é uma característica de todos os sistemas
auto-organizados. A resposta só pode ser a mesma que mais acima
formulamos, embora com cuidados ainda maiores. É evidente que máquinas
autoreguladas, que recebem a auto-organização de fora do
sistema, não conseguem engendrar novos sistemas, exceto se isso
lhes foi já pré-programado em sua organização.
A questão é saber se todos os sistemas naturais de auto-organização,
mesmo em nível baixo de estruturação, já possuem
esta característica de engendrar novos e mais complexos sistemas.
As ciências exatas, a Física, a Química e a Biologia,
que eu saiba, jamais responderam a uma pergunta tão específica.
A tendência, nessas ciências, seria provavelmente dizer que
não. Afinal, não é em toda a parte que se engendram
novos e mais complexos sistemas. Mas não é esta a pergunta.
A pergunta versa sobre sistemas dinâmicos dissipativos fora de seu
ponto de equilíbrio; tais sistemas, todos eles, podem, em princípio,
engendrar novos sistemas com maior complexidade? Eu, como filósofo,
diria que sim. Se, em princípio, pode ser assim, então,
esta possibilidade, em princípio, sempre existe. Isso significa
que, em princípio, todos os sistemas de auto-organização,
se e enquanto dinâmicos, disssipativos e fora do ponto de equilíbrio,
podem engendrar novos e mais complexos sistemas de auto-organização.
Isso dá, como se percebe imediatamente, à Teoria da Evolução,
uma tendência para cima, para o mais complexo, para o mais nobre.
Vemos aqui uma vitória da ordem sobre a desordem. A passagem da
desordem para a ordem é, em princípio, tão viável
quanto a passagem da ordem para a desordem. O universo não está
condenado à morte pelo frio. A entropia é apenas um dos
elementos que constituem a flecha do tempo; ela não nos permite
antecipar o futuro e dizer que o universo está condenado à
morte pelo frio; ela não nos permite dizer que a desordem tende
sempre a crescer em detrimento da ordem. Schrödinger recuou onde
não precisava ter recuado. Há, sim, uma neguentropia. –
Como todos os processos de auto-organização se desenvolvem
dentro da auto-organização das galáxias, todos, inclusive
nós, homens, somos parte de um todo em movimento de auto-organização.
O sétimo elemento essencial de um sistema de auto-organização
é sua inserção num processo de evolução
que é regido pela lei da coerência, isto é, pela seleção
natural. Esta sétima característica de todo e qualquer sistema
de auto-organização diz que ele evolui segundo as conhecidas
leis da Teoria da Evolução e que cada um destes processos
de auto-organização está dentro de outro, maior e
mais abrangente, e assim por diante, até que chegamos ao sistema
mais abrangente de todos, ao Universo, um sistema de auto-organização
que não tem mais nada fora dele. Como as bonecas russas, as Babuschkas,
uma dentro da outra, os muitos sistemas de auto-organização
estão todos contidos num sistema de auto-organização
que é o último, que é o mais abrangente, que é
o Universo fora do qual já não existe nada. A Lei da Coerência
rege a evolução de cada sistema particular, rege também
as relações de um sistema para com os outros, rege finalmente
o sistema universal de auto-organização, dentro do qual
tudo de encontra e se desenvolve.
A grande pergunta que surge aqui é a seguinte. Afirmamos, no começo
de nossa exposição, que os sistemas de auto-organização,
para poderem existir, tem que ser abertos sob o ponto de vista energético,
ou seja, que eles têm que buscar energia de fora. Mas se isso é
assim, de onde vem a energia no sistema universal e último de auto-organização?
Se não há nada fora dele, como pode a energia vir de fora?
A resposta só pode ser uma: em última instância, também
a energia é engendrada internamente. Quando não há
nenhuma outra alternativa de solução, quando outra solução,
qualquer que seja, é impossível, então a solução,
que é a única, se impõe. Logo, também energia
pode ser engendrada internamente, pelo menos no último e mais abrangente
sistema de auto-organização.
2. Filosofia da auto-organização
O núcleo duro da Teoria de Auto-Organização consiste
na circularidade da série causal. Na série causal linear
a causa está sempre e necessariamente fora e antes do efeito, tanto
logica como ontologicamente; o efeito vem sempre depois da causa. Se o
efeito, por sua vez, se transforma em causa e produz um novo efeito, este
novo efeito está fora de sua causa e depois dela; e assim surge
a série causal linear. Auto-organização, como a forma
flexiva do termo já indica, consiste no fato de que a cadeia causal
se flecte sobre si mesma, de sorte que o último efeito da série
se torna causa determinante da primeira causa da série, da mesma
série. O processo causal fica, assim, circular, pois o último
efeito torna-se também causa e determina a primeira causa da série.
Reduzindo a série causal linear a seu tamanho mínimo, ou
seja, a dois elementos, a causa produz um efeito, que, por sua vez, produz
a causa que o causou. A causa aparece, aqui, como sendo causa de si mesma:
causa sui. Esta é a teoria defendida por Plotino e Proclo, por
Nicolaus Cusanus, por Espinosa, Goethe, Schelling e por Hegel; esta é
a teoria sem a qual não se compreende o núcleo duro dos
sistemas neoplatônicos, de Plotino até Schelling e Hegel.
Schopenhauer, em seu trabalho de Livre Docência na Universidade
de Berlim, com o título Die Vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden
Grunde, é quem melhor apresentou e resumiu as objeções
levantadas contra o conceito de causa sui. Causa sui, diz Schopenhauer,
é uma contradictio in adjecto, é algo logica e ontologicamente
impossível, é um conceito que não pode nem mesmo
ser pensado. Pois, ao falar de um processo causal, estamos sempre a pressupor
um efeito que está fora da causa e que vem depois dela. Se existe
um efeito causado, então tem que haver uma causa causante que esteja
fora do efeito e venha antes dele. Não fosse assim, a causa seria
causa de si mesmo, o que é um absurdo. Absurdo por quê? Por
uma razão que Schopenhauer pensa ser logicamente muito exata e
rigorosa. Porque a causa é a razão suficiente do efeito;
sem a causa, o efeito não pode existir. Ora, se o efeito não
pode existir, ele de fato não existe. E um efeito que não
existe não pode ser causa causante de nada, muito menos causa causante
de si mesmo.
Esta argumentação, aparentemente rigorosa, é uma
falácia. Schopenhauer pressupõe aí o Princípio
de Razão Suficiente em sua forma específica e correta, que
é a seguinte: Se uma coisa pode existir e não existir, mas
de fato existe, então tem que haver uma razão suficiente
que explique porque ela de fato existe, ao invés de não
existir. Leibniz afirma, com toda a razão, que o Princípio
de Não-Contradição e o Princípio de Razão
Suficiente são os pilares sobre os quais repousa o arcabouço
de toda a racionalidade. Toda a tradição filosófica,
dos gregos até os dias de hoje, afirma o mesmo. Schopenhauer, então,
tem razão? Causa sui é algo impossível? E auto-organização,
uma forma específica de causa sui, é só um absurdo
requentado? – Não. É evidente que o Princípio
de Razão Suficiente, na formulação acima, está
correto e é sempre válido. Mas isso não exclui a
possibilidade da causa sui, como sabia muito bem Hegel. Hegel era Professor
Titular na Universidade de Berlim e foi, à época, o orientador
oficial da tese de Livre Docência de Schopenhauer. Hegel aceitou
a tese de Schopenhauer, que era radicalmente contra a teoria da causa
sui, como um bom trabalho de Livre Docência e deu parecer positivo
à Faculdade de Filosofia, que, então, concedeu a Schopenhauer
o título acadêmico por ele postulado. Quanto ao conteúdo
filosófico do texto, Hegel, é claro, discordou das idéias
propostas por Schopenhauer e manteve sua opinião, escrita e publicada
muitos anos antes, na Ciência da Lógica. Segundo Hegel, o
Princípio de Razão Suficiente afirma, de maneira corretíssima,
que a existência de algo contingente exige uma razão suficiente
que explique porque este algo existe, ao invés de não existir.
Mas não está dito em nenhum lugar que esta razão
suficiente tem que ser uma entidade externa, logica e ontologicamente
anterior ao efeito. Toda a argumentação de Schopenhauer
se baseia nesta falácia, a saber, que a razão suficiente
tem que ser uma entidade separada e anterior. Hegel, na Lógica
da Essência, havia demonstrado a tese oposta: o Absoluto, na dialética
das modalidades, é tanto Necessidade Absoluta como também
Contingência Absoluta. O contingente, se e enquanto ele é
também necessário, possui, conciliadas no mesmo ser, ambas
as características, a necessidade e a contingência, a causa
e o efeito. Hegel chama isso de Wechselwirkung, termo que deveria ser
traduzido como causação recíproca. Na causação
recíproca o causante é, sim, algo diverso do causado, mas
trata-se aqui, não da diversidade de dois seres distintos um do
outro, mas sim de dois momentos internos de um único processo circular
de autocausação. O causante enquanto causante não
é o causado; e vice-versa. Mas também aqui tese e antítese,
inicialmente opostas, podem e têm que ser conciliadas. O causante,
que é tese, e o causado, que é antítese, na autocausação,
que é síntese, estão conciliados em perfeita harmonia.
A causa produz o efeito, que retroage e produz a causa, a qual de novo
produz o efeito, e assim por diante, constituindo, desta maneira, o processo
circular de autocausação.
Procuremos maior clareza. O Universo, como sabemos, contém coisas
e processos contingentes, ou seja, processos que podem existir e que podem
não existir, mas que de fato existem. No, entanto, o Universo não
tem nada fora dele. O Universo, por definição, abrange tudo.
Logo, temos que admitir que o Universo não possui uma causa causante
ou razão suficiente que esteja fora dele. Por conseguinte, temos
que admitir também que o Universo é, ao mesmo tempo, embora
não sob o mesmo aspecto, algo causante e algo causado. O Universo,
que contém contingência, é uma causa sui no sentido
rigoroso do termo, é um sistema auto-organizado. Esta a doutrina
neoplatônica.
Objetar-se-á, aqui, na tradição de Tomás de
Aquino, que alguns seres no Universo são realmente contingentes,
mas que Deus, o Criador primeiro de tudo que é contingente, não
é, ele mesmo, um ser contingente, mas sim um ser necessário
. E é por isso que ele é o Deus Criador. O Universo, então,
pode ser pensado como um conjunto que contém tanto o Deus Criador,
que tem sua razão suficiente dentro de si mesmo, e os seres criados,
que são contingentes, isto é, que tem sua razão suficiente
fora de si mesmos, numa causa que lhes é anterior, em última
instância, numa causa incausada que é o próprio Deus
Criador. – A posição tomista separa claramente o Deus
Criador, que é a causa incausada de tudo o mais, e os seres contingentes,
que têm sua razão suficiente em causas anteriores, em última
instância, na causa incausada, que é o Deus Criador. O problema
da causa sui, à primeira vista, parece ter sido resolvido satisfatoriamente:
de um lado a causa, de outro lado, separado e posterior, o efeito. Mas
um olhar mais atento revela que o problema foi apenas deslocado para dentro
do próprio Deus Criador.
O Deus Criador, para poder ser uma causa incausada, tem que ser algo que
é necessário em sua essência e sua existência,
isto é, ele não pode ser contingente, ele não pode
ter sua razão suficiente fora de si mesmo. Em Deus, essência
e existência são a mesma coisa, uma se funda na outra, ambas
se fundem na simplicidade de um ser puro que é puro existir. Se
Deus não fosse necessário, se ele tivesse sua razão
suficiente em algo fora dele, este algo é que seria o verdadeiro
Deus e a causa última incausada. Logo, concluem os tomistas, Deus
é necessário em sua simplicidade, na qual a existência
se funda em sua própria essência. Até aqui, aparentemente,
tudo bem. O problema começa agora. Se Deus é necessário
em sua essência e sua existência, o ato livre mediante o qual
Deus decide criar o mundo, em face da simplicidade de Deus, confunde-se
com sua essência. Ora, a essência de Deus é necessária.
Logo, o ato livre mediante o qual Deus decide criar o mundo é tão
necessário quanto sua essência. Por conseguinte, a criação
é necessária. Mas se a criação é necessária,
os seres criados existem necessariamente e deixam, assim, de ser contingentes.
A única saída desta aporia é dizer que o ato livre
mediante o qual Deus decide criar o mundo é necessário enquanto
está dentro de Deus e é idêntico à sua essência,
mas é contingente para fora, para com seus efeitos. Esta é,
de fato, a resposta usualmente dada pelos autores que seguem Tomás
de Aquino. Mas como pensar um ato livre que é, ao mesmo tempo,
interno e externo a Deus? A contradição inicial de que causa
não pode ser causa sui, retorna agora sob outra roupagem: um ato
que é idêntico à essência simples de Deus, tem
que ser simultaneamente interno e externo a ele. Este ato è idêntico
à substância divina e não é idêntico
a ela. O que se pretendia como solução de um problema, constitui-se
em nova e potenciada contradição.
Já Plotino se debruçou sobre esta questão e também
ele se viu envolto em problemas e contradições. O Livro
VI das Enéades versa, todo ele, sobre este problema, como já
diz seu título A vontade livre e a vontade do Uno. Plotino sabe
muito bem que, para ser livre, o homem tem que ser ekousíon, tem
que ser autexousíon, isto é ele tem que poder determinar-se
a si mesmo, ele tem que poder dispor sobre suas ações e
sobre si mesmo. Esta autodeterminação é expressa
por Plotino com um termo intraduzível: tò ep’autõ.
Tò ep’autõ aponta para aquilo que está em meu
poder, aquilo que está dentro de minhas possibilidades e capacidades
de ação. Quando o homem age segundo tò ep’autõ,
ele está agindo como autexousíon, como alguém que
se determina a si mesmo. Plotino parece ser pouco claro, mas o fato é
que até hoje ninguém conseguiu dizer muito melhor o que
significa liberdade. Liberdade consiste, dizem todos, neste agir segundo
aquilo que está em meu poder, segundo minhas possibilidades, segundo
minha autodeterminação.
Plotino pergunta, então, se o Uno tem liberdade e responde decididamente
que sim. O Uno, que é o Bem, tem vontade livre e autodeterminação,
ekousíon e autexousíon. Mas Plotino, como todos os grandes
pensadores depois dele, sente o dilema na pele. Pois Plotino sabe muito
bem que é impossível para uma coisa fazer a si mesma e pôr-se
em existência. Se é impossível que algo se ponha a
si mesmo em existência, como é que o Uno existe e decide
livremente? De onde vem a existência do Uno? De onde vem sua decisão
livre? Plotino luta com o problema e consigo mesmo, ele luta e reluta
e acaba dizendo que o Uno não é uma coisa como as outras
coisas contingentes de nosso mundo, que o Uno é algo todo especial,
que o Uno é causa de si mesmo, aitíon heatõu. Aí
temos, quanto sei, pela primeira vez na História da Filosofia,
o termo causa sui no esplendor de seu significado pleno, isto é,
como o processo circular de autocausação que explica não
só a existência do Uno como também o processo circular
da autodeterminação que é o núcleo duro do
ato livre de decisão.
Como entender, porém, o processo de autocausação
sem que surjam contradições? Não é Plotino,
é Hegel quem nos responde com a clareza possível em questão
tão difícil. Causante e causado, ensina Hegel, são
duas faces da mesma moeda. Não se pode pensar e dizer uma delas,
sem que se pense e diga simultaneamente a outra. Mais: uma não
pode existir sem a outra. Causante e causado, causa e efeito, são
primeira e principalmente dois aspectos opostos de uma mesma realidade.
Num primeiro momento estes aspectos se opõem e se excluem logicamente;
eles são tese e antítese. Mas na síntese, na primeira
e na última instância, no Absoluto, no Uno, os opostos têm
que estar conciliados. Como? Por quê? Estão conciliados por
serem momentos complementares de um único e mesmo processo que
está em movimento circular. A circularidade explica como e por
que os opostos se fundem numa unidade mais alta e mais nobre. Causante
e causado, fundante e fundado são as formas ativas e passivas do
mesmo verbo. A síntese é expressa pela forma reflexa do
verbo. Como? O momento ativo atua sobre si mesmo, engendrando dentro de
si o momento passivo. Mas este momento passivo atua de volta sobre o momento
anterior, de sorte que ele deixa de ser passivo e torna-se ativo. E assim,
em movimento circular, o ativo torna-se passivo, o passivo torna-se ativo,
e, de novo, o ativo fica passivo e o passivo se transforma de volta em
ativo. Este é o núcleo duro da grande síntese dos
opostos. Este é o núcleo ontológico da forma reflexa
de todos os verbos que admitem tal forma. Erra quem tenta, sempre e em
todos os casos, separar o ativo e o passivo, o causante e o causado, o
fundante e o fundado. Quem persiste nesta separação e fica
sempre a procura do fundo que seja apenas fundante, do Grund, acaba caindo
no fundo do mar e se afogando, er geht zugrunde . O jogo de palavras que
Hegel faz aqui, mostra de sobejo, que não se pode procurar um fundante
último que não seja circular, isto é, que não
seja autofundante. Quem, ao invés de subir de degrau e assumir
a categoria de autofundamentação, fica procurando um fundante
último que não seja autofundante e vai perder-se para sempre
num fundo que nunca tem fundo. A Lógica da Essência se caracteriza
exatamente por este tipo de circularidade. As categorias téticas
e antitéticas da Lógica da Essência entram num processus
ad infinitum, exceto se e quando se faz a flexão completa sobre
si mesmo, a reflexão, e se assume o conceito em sua circularidade.
As formas ativas e passivas do verbo precisam flectir-se sobre si mesmas,
constituindo a forma reflexa. Em gramática isso é fácil
e por todos admitido. Por que não em Lógica e Ontologia?
Um outro par de conceitos pode nos ilustrar a questão e trazer
um pouco mais de luz à solução proposta. Segundo
a tradição, essência é algo interno que determina
o que um ser realmente é. A aparência é algo externo,
é algo quase sempre enganador; as aparências enganam, diz
a maioria dos filósofos. A essência é o elemento primeiro,
mais nobre, mais importante, mais necessário, sim, indispensável.
A aparência, pelo contrário, é algo secundário,
é algo sem importância, é algo que devemos pôr
de lado. Hegel não pensa assim. Para Hegel essência e aparência,
enquanto se opõem linearmente, apresentam um problema insolúvel
e um regressus ad infinitum, pois nunca saberemos com certeza se o que
temos em mente já é uma essência ou ainda é
uma mera aparência, atrás da qual se esconde a verdadeira
essência, e assim por diante. Para Hegel é preciso sair da
linearidade e do regressus ad infinitum e assumir decidamente o movimento
circular. Essência e aparência se determinam mutuamente, uma
não existe sem a outra, ambas possuem igual importância.
Essência é aquilo que aparece. Aparência é a
essência que se está mostrando. Como nos Vexierbilder da
psicologia da Gestalt temos aqui figura e fundo que se invertem e permitem
que se vejam duas coisas diferentes, por exemplo, um cálice ou
dois perfís de rosto. No jogo de essência e aparência
temos dois termos que se determinam mutuamente, que são duas faces
da mesma moeda. O que nunca aparece, o que em princípio não
aparece nunca, não é essência, não é
nada sobre o que se possa falar sensatamente. Mas se a aparência
é a essência que se está mostrando, e se a essência
é aquilo que a aparência apresenta, então essência
e aparência são apenas dois aspectos da mesma coisa. Essência
e aparência, enquanto se opõem como tese e antítese,
isto é, enquanto postas de maneira linear, uma contra a outra,
levam a um processus ad infinitum. Essência e aparência, quando
postas em circularidade, não mais se opõem como tese e antítese,
mas constituem uma síntese, na qual ambas, conciliadas, subsistem
como unidade, na qual cada uma delas é a contrapartida da outra.
Não temos, nem em português nem em alemão, palavra
que expresse essa unidade sintética entre essência e aparência,
mas nem por isso podemos abrir mão dessa poderosa síntese.
A unidade essência/aparência é uma tese central da
Lógica de Hegel.
O mesmo ocorre com o causante e com o causado. Num primeiro momento, postos
um contra o outro, de maneira linear, levam a um processus ad infinitum.
Mas se tomamos causante e causado como unidade sintética; se os
colocamos em movimento circular, então o causante se funde com
o causado e a unidade dialética de ambos constitui o processo de
autocausação. Ativo e passivo aqui se constituem mutuamente
e convivem harmoniosamente numa síntese. Para a síntese
de ativo e passivo não temos um termo que já esteja consagrado;
mas poderíamos introduzir o termo auto-ativação.
Para dizer a unidade de causante e causado, porém, temos uma bela
palavra, a saber, autocausação.
A solução proposta por Plotino e pelos filósofos
neoplatônicos e elaborada em pormenores por Hegel é, na minha
opinião, a única possível. Todos os seres, para que
existam, necessariamente têm uma razão suficiente. Esta razão
suficiente em muitos casos que observamos na experiência do dia
a dia está fora e antes do ser que procuramos entender; em tais
casos a causa está separada do efeito e vem antes dele. Mas em
outros casos, como na vida, na liberdade, no Absoluto, a razão
suficiente do ser existe, sim, e tem que existir, mas ela está
dentro dele. Não adianta procurarmos fora, porque não a
encontraremos: ela não está fora, está dentro. A
razão suficiente que está dentro de um ser faz que este
ser se explique por si mesmo, que ele se determine por si mesmo, que ele
seja um ser autodeterminante e auto-organizado. O Deus de Tomás
de Aquino com seu ato livre de criar o mundo só pode ser pensado
sem contradição, se o pensamos como um ser que é,
ao mesmo tempo, causante e causado, ou seja, como autodeterminação,
como causa sui. A doutrina do Aquinate sobre a causalidade, o impede de
pensar causa e efeito como causalidade circular, como causa sui. Mas,
sob o peso do problema, o próprio Tomás de Aquino, quando
trata dos atos livres de decisão, abandona por alguns momentos
sua teoria sobre a impossibilidade da causa sui e a utiliza como única
solução para a questão da liberdade: Liberum est
quod sui causa est. Quod ergo non est sibi causa agendi, non est liberum
in agendo; Livre é somente aquele que é causa de si mesmo.
O que não é causa para si mesmo, não é livre
em seu agir.
Mas esta não é a solução geralmente proposta,
nem por Tomás de Aquino, nem pela maioria dos pensadores da Idade
Média e da Renascença. A doutrina usual é aquela
que separa rigidamente causa e efeito, dizendo ser impossível que
exista algo como causa sui, como auto-organização. Esta
dicotomia, nunca conciliada, entre causa e efeito entra na tradição
filosófica que não é neoplatônica, entra em
Newton e em todas as ciências empíricas, entra na concepção
de causalidade da Crítica da Razão Pura de Kant e encontra
seu apogeu filósofico no livro que Schopenhauer apresenta para
obter sua Livre Docência. Grande parte da Filosofia e praticamente
todas as ciências, a partir do século XIII adotam uma concepção
do mundo, em que a causa está sempre separada do efeito e é
anterior a ele. Isso, por um lado, permitiu, sem dúvida, imensos
progressos nas ciências, mas, pelo outro lado, impediu que se pensasse
corretamente o que é vida, o que é liberdade, o que é
democracia. Os processos em que a circularidade de causa e efeito predominam
ficaram sem explicação. Por isso, os processos vitais e
a liberdade como autodeterminação tornaram-se problemas
sem solução. Esse estado de coisas durou séculos,
até que Ludwig von Bertalanffy, que na Universidade de Viena além
de Biologia estudou Filosofia, entrou em contato com a tradição
clássica, leu e escreveu um livro sobre Nicolaus Cusanus, resgatou
a tradição neoplatônica e reformulou, então,
em linguagem contemporânea, a Teoria de Sistemas, a doutrina que
a partir da autocausação explica não só a
auto-organização dos seres vivos, como também a autodeterminação
do ato livre de decisão. A teoria da autocausação
da tradição filosófica, redescoberta e reformulada
por Bertalanffy com o nome de Teoria de Sistemas, é a Ontologia
neoplatônica atualizada e trazida para o a ciência de nossos
dias.
A causa de si mesmo, o aitíon heatõu de Plotino e de Proclo,
o movimento absoluto que é o repouso absoluto de Nicolaus Cusanus,
a causa sui da primeira linha da primeira página da Ética
de Espinosa, o Eu que se põe como Eu de Fichte, o processo dinâmico
de autoprodução da Natureza, natura naturans e naturata
naturata de Schelling, a circularidade da causação recíproca
na Lógica da Essência de Hegel, eis as raízes filosóficas
de onde surgem as teorias contemporâneas sobre auto-organização.
A dedicatória no livro de Bertalanffy é prova disso.
2. A Natureza como processo de auto-organização
Nada melhor do que a Filosofia da Natureza de Schelling para fechar o
arco entre a tradição neoplatônica da causa sui e
as teorias contemporâneas de auto-organização.
Fichte partira do Eu que, depois de se pôr a si mesmo, põe
o Não-Eu, isto é, põe um universo sem vida, distinto
e separado do Eu e de sua produtividade. Schelling, na Filosofia da Natureza,
faz o caminho inverso. Toda a vida, inclusive e principalmente a vida
do Eu, foi engendrada dentro da Natureza e pela Natureza. A Natureza é
a totalidade do Universo que está em movimento constante de autoprodução
e de evolução. No princípio a matéria parece
ser morta. Mas não é. De lá de dentro dessa matéria
aparentemente morta emerge, então, a vida que se desenvolve primeiro
como plantas, depois como animais e finalmente como o homem pensante.
A primeira grande característica desta concepção
é que a Natureza é uma unidade, que a Natureza é
o Universo inteiro. A segunda característica é que a Natureza
não é estática, mas um processo dinâmico de
evolução, que sempre de novo engendra novas formas de ser
e existir. A terceira característica é que o homem com seu
espírito pensante nasceu de dentro desse processo evolutivo e continua
parte integrante dele. Vida e matéria não são princípios
primeiros e irredutíveis um ao outro. Pelo contrário, espírito,
vida e matéria são apenas aspectos do mesmo processo, uno
e único, que é a evolução e o desdobramento
do Universo a partir do ovo inicial. Ab ovo, diziam, os antigos.
A mais impressionante semelhança com as teorias contemporâneas
de auto-oprganização consiste na criatividade ínsita
nesse processo de evolução. Para Schelling a natureza é
altamente inventiva, é poderosamente criativa. Ela está
sempre a engendrar novidades, novas formas, novos seres, novos pontos
de equilíbrio. E como tudo se faz dentro de uma única Totalidade,
que é a Natureza, tudo está interligado e tudo influi sobre
tudo. O Todo do Universo, a totalidade em movimento criativo engendra
a multiplicidade, mas elimina as incoerências e restabelece sempre
de novo o equilíbrio do processo evolutivo. Assim, a Natureza produz
o homem com seu espírito e sua capacidade criativa. A criatividade
artística do homem é a ponta de lança da criatividade
primeva da própria Natureza. O homem, em sua autoconsciência,
pensa e cria. Mas mesmo esta autoconsciência é apenas o fruto
maduro de algo que já estava, desde o começo, posto no ovo
inicial. O Cusanus diria aqui, tudo que está agora, depois do desenvolvimento
e do desdobramento processual, como explicatum estava como implicatum
no primeiro começo.
É neste exato contexto que surge a seguinte objeção.
Tudo bem. Existe, realmente, uma semelhança de padrões entre
a Filosofia da Natureza de Schelling e as teorias contemporâneas
de auto-organização. Mas há uma grande diferença,
uma diferença tão essencial que põe Schelling e os
filósofos neoplatônicos num planeta diferente do planeta
habitado pelos cientistas. Os filósofos, também Schelling,
querem construir uma Filosofia da Natureza como uma ciência que
é totalmente a priori. O filósofo sentado em sua poltrona,
sem jamais levantar-se, sem jamais ir olhar como é que a realidade
de fato é, pega papel e lápis, hoje, um computador, e faz
a dedução de todo o processo de evolução da
Natureza. O cientista, entretanto, trabalha a posteriori; ele primeiro
observa cuidadosamente os fenômenos da natureza, para só
depois formular uma teoria. A teoria científica precisa ter coerência
interna, é claro, mas ela precisa ser objeto possível de
falsificação pela observação empírica,
pelo experimento. A teoria do físico teórico só adquire
foros de verdade quando confirmada pelos experimentos do físico
experimental. O mesmo vale para os cientistas que trabalham com as teorias
de auto-organização. Eles primeiro observam os fenômenos,
eles trabalham a posteriori, e só depois formulam a teoria. Ora,
os filósofos se recusam terminantemente a fazer isso. Filosofia,
também no primeiro Schelling, é sempre e somente a priori.
Erro, muito erro. Erro duplo. O primeiro erro consiste em pensar que todos
os filósofos, em especial Schelling, só trabalhem a priori.
Não é verdade. Embora haja, entre os filósofos uma
predominância do conhecimento a priori, em alguns casos até
uma exclusividade do a priori, o conhecimento a posteriori também
é parte essencial da Filosofia. O melhor exemplo disso é
exatamente Schelling, que no começo de sua vida filosófica
pretendia trabalhar só a priori, e que, então, descobriu
a importância da contingência e, assim, do conhecimento a
posteriori. O Schelling tardio introduz o termo Filosofia Positiva exatamente
para abrir espaços para o conhecimento que, respeitando a contingência
das coisas, trabalha a posteriori. Quem ousaria afirmar que as figurações
da Fenomenologia do Espírito de Hegel são fruto de dedução
a priori? Antígona a priori? A Revolução Francesa
a priori? O Terror a priori? Certamente que não.
Para fazer justiça aos fatos históricos, é preciso
dizer que muitos filósofos exageraram a dose de a priori, que alguns
filósofos ficaram tão obcecados com o a priori que desconsideraram
o campo do conhecimento a posteriori e o entregaram aos cientistas. É
preciso dizer que o jovem Schelling, no começo de sua carreira,
pretendia deduzir tudo, mas é preciso dizer também que ele
mesmo descobriu seu erro e introduziu a Filosofia Positiva. No século
XX, mais exatamente a partir de Dilthey e Droysen, a partir do Dasein
de Heidegger nenhum filósofo pretende construir toda a Filosofia
utilizando somente o método a priori. Sabemos todos que o mundo
é contingente e que o contingente não se deixa deduzir;
o que é contingente precisa ser constatado em sua existência,
que não é necessária, e historiado em seu desenvolvimento.
Como o Universo é um processo contingente de evolução,
toda Filosofia hoje que seja minimamente crítica precisa conjugar
o método a priori e o método a posteriori. O primeiro serve
para julgar a coerência interna das teorias, o segundo serve para
dar conteúdo material às perguntas e respostas da teoria,
bem como para julgar a coerência das teorias com a realidade. A
conjugação do a priori e do a posteriori, eis o único
método hoje admissível em Filosofia.
O segundo erro está no lado dos cientistas. É verdade que
desde o nominalismo inglês há um forte apelo ao método
a posteriori. É certo que toda a ciência hoje parece trabalhar
só a posteriori. É verdade que os cientistas de Galileu
até Einstein inclusive primeiro trabalhavam e coletavam dados do
mundo empírico, para depois formular uma teoria. Mas a verdade
completa vai mais longe e é maior: segundo os cientistas, de Galileu,
Newton e Laplace até Einstein, a teoria, uma vez corretamente formulada,
permitiria fazer uma dedução matematicamente rigorosa tanto
para trás, para o passado, como para frente, para o futuro. O sonho
de todos os cientistas de Galileu até Einstein era encontrar a
fórmula que permitisse deduzir absolutamente tudo. A hybris intelectual
dos cientistas e sua predileção pela dedução
a priori não era, como se vê, menor que a hybris e a pretensão
dos filósofos. As deduções universais de Fichte e
de Schelling não são muito diferentes do sonho científico
de Newton, de Laplace e de Einstein, que a partir de uma fórmula
e de uma situação inicial pretendiam calcular e predizer
rigorosamente todo o processo futuro. Foi Heisenberg, com seu princípio
de incerteza, quem começou a restringir a força abrangente
da dedução a priori na Física. Foi somente Ilya Prigogine
quem, há não muitos anos, demonstrou a irreversibilidade
dos processos dinâmicos dissipativos e introduziu, assim, em Química
e Física, o elemento da historicidade, ou seja, o a posteriori.
Depois de Prigogine, o cientista sabe, em princípio, que não
pode deduzir tudo que vai acontecer. Isso, nós filósofos
entrementes também aprendemos.
O que significa isso? Que tanto na dialética ascendente como na
dialética descendente há sempre, além do a priori,
um momento essencial e inarredável que é a posteriori. Ao
sair do mundo empírico e subir, degrau por degrau, para os primeiros
princípios, operamos com ambos os métodos, a priori e a
posteriori. Os diálogos de Platão e a Fenomenologia do Espírito
de Hegel, para citar só dois exemplos clássicos de dialética
ascendente, estão cheios de elementos a posteriori. Que eu saiba,
ninguém jamais os negou. A tentação e o problema,
como para os cientistas, está na dialética descendente.
Pode-se a partir dos primeiros princípios deduzir a priori todo
o Universo? Fichte pensava que sim, o jovem Schelling pensava que sim.
Hoje sabemos que isso não é possível. Não
é possível, porque o processo de evolução
do Universo contém elementos contingentes e o que é contingente,
por definição, não pode ser deduzido a priori de
princípios apenas formais.
Cientistas e Filósofos do século XX nem sempre sabiam da
importância da contingência e, por isso, do a posteriori.
Hoje sabemos. O Universo como totalidade em movimento precisa, pois, ser
visto e estudado como um sistema de auto-organização, em
que o elemento a priori se conjumina com o elemento a posteriori, como
um sistema que muitas vezes nos surpreende com sua gigantesca criatividade,
pois engendra coisas tão completamente novas que, estonteados face
à emergência do novo, voltamos ao dito de Sócrates
com o qual começou a Filosofia: Sabemos que nada sabemos.
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