Balduino Rambo

 

 

Si fractus illabatur orbis

Impavidum ferient ruinae

 

 

A noite estava caindo. O caminhão do Exército que fora nos buscar no acampamento de Vacaria, na Fazenda Ronda, às margens do Rio Uruguai, descia do planalto dos Campos de Cima da Serra para a passagem no Rio das Antas. O motorista, um sargento muito falante, estava na cabine com o Padre Rambo e o Padre Soder. Soder não estivera no acampamento; viera apenas nos buscar. Nós, a tropa de doze escoteiros, estávamos sentados, já meio doloridos, nos bancos de madeira armados sob a lona do caminhão. Atrás de nós, rabeando furiosamente de um lado para o outro, o reboque que carregava nossas tralhas, barracas, mochilas, panelas e as mil pequenas preciosidades que havíamos colecionado durante o acampamento. Estávamos todos exaustos, pois desmontar um acampamento de quase um mês, é coisa de descadeirar mesmo os melhores escoteiros. Alguns dormiam a sono solto, outros, como eu, cabeceavam, entrando e saindo num leve cochilo.

 

Devo ter pegado no sono, porque acordei com o barulho do reboque que parecia um potro xucro corcoveando para todos os lados. Reparei que o caminhão mais que dobrara a velocidade como se o motorista tivesse enlouquecido. A estrada, então sem asfalto, estreita e cheia de curvas, nos jogava de um lado para o outro, batendo nos barrancos à beira da estrada. Todos nós, já agora acordados e temerosos, sem poder perguntar ao Pe. Rambo ou ao motorista, que estavam na cabine, o que estava acontecendo, não sabíamos o que fazer. Até que um gritou: “O caminhão perdeu as travas, segurem-se bem ...” Ele não conseguiu terminar a frase porque de repente me senti voando pelo ar. A força da gravidade desaparecera. Pessoas e objetos voavam ao redor de mim. Eu não sentia nada, absolutamente nada, exceto aquela estranhíssima sensação de estar voando, voando, com coisas voando ao redor de mim. Dizem que a gente, em perigo de vida ou imediatamente antes da morte, tem pensamentos piedosos ou passa em revista, num átimo, todo o curso do que viveu. Comigo não ocorreu nada disso. Eu sentia aquele prazer, sim, prazer de estar voando, mas sabendo o que estava acontecendo, tive um único pensamento: Agora vamos todos à breca. Assim, com este pensamento, ouvi um barulho infernal e fiquei inconsciente.

 

Padre Rambo era nosso professor de Biologia no Anchieta e, no verão, nos acompanhava como capelão nos acampamentos do Grupo de Escoteiros. Armava barraca que nem nós, dormia no chão que nem nós, comia a goroba  que cozinhávamos, à noite tomava parte no Fogo do Conselho e avaliava conosco os êxitos e fracassos do dia, às vezes de cada um de nós pessoalmente, encerrando o conselho com nossos cânticos de escoteiro, a esta altura, já bem misturados com canções gauchescas.

 

Nós, durante o dia, fazíamos as tarefas de escoteiro:  aprender os vinte e cinco tipos diferentes de nós, aprender a trançar laço com quatro tentos de couro devidamente preparados, montar pontes pênseis, atravessar córregos e rios, brincar os jogos de guerra em que azuis e vermelhos se enfrentavam, treinar golpes de autodefesa, rastejar e observar o adversário sem ser notado e, quando notado, fugir correndo à velocidade máxima.

 

Padre Rambo tinha outra rotina diária. Começava rezando a missa a que todos nós assistíamos. Depois tomava o café de panela com charque desfiado e farofa, conosco, é claro. Mas depois o Padre Rambo vestia uma batina velha, de cor indefinível, entre um hosco desbotado e um cinza claro, arrebanhava as pontas de frente de  trás e as enfiava na cinta de couro que substituía uma faixa eclesiástica cujo nome não sei mais. Com a batina assim bem arregaçada, Rambo mais parecia um daqueles gaúchos de antigamente que não usavam bombachas e sim chiripá. Mas aí é que vinha o momento solene. Ele tirava da sua barraca um chapéu de explorador africano. Um chapéu rígido, parecido com um capacete, mas feito de material mais leve, com uma pequena aba que circundava todo o topo, de cor bege, com uns furinhos para ventilação e um barbicacho que, em vez de fiar no queixo, era amarrado em cima do chapéu. Um chapéu de explorador dos confins da África em meados do século XIX. Todos nós conhecemos esses chapéus de explorador dos filmes sobre a África. Acredito que era o mesmo modelo de chapéu quando, perdido por longo tempo, foi reencontrado e imediatamente reconhecido: “Dr. Livingstone, I presume!”

 

Assim paramentado, Rambo dirigia-se ao chefe dos escoteiros e perguntava: “E quem vem hoje comigo?” Vários voluntários se apresentavam e Rambo escolhia, por critérios que só ele conhecia, um deles. Muitas, muitíssimas vezes fui eu o acompanhante “ad latus” do pesquisador Balduino Rambo. Saíamos cedo, bem cedo.

 

Com o facão na mão direita ele ia abrindo caminho por entre macegas, matas ciliares e mato alto. De repente parava, olhava para mim e perguntava: “Sabes o que é isso?” Era uma árvore de tamanho médio, com flor típica, que havia às centenas naquela região. Eu, é claro, uma ou outra vez sabia o nome gauchesco da planta, mas jamais o nome da classificação latina. Rambo, então, com paciência que só grande educador possui, virava-se para mim, me fazia  contar as pétalas, descrever o formato da flor, desenhar – na terra, se não tivesse papel à mão – a estrutura da folha dizia: “Sabes o nome?” algumas vezes, como neste caso, eu sabia: “Ora, isso  todo o mundo sabe, é uma capororoca”. – “Certo – dizia Rambo – mas sabes o nome em latim?” Eu  ficava sempre em apuros. Como saber o nome em latim de uma árvore que todo gaúcho conhece e  chama de capororoca? Eu sabia que dava um bom moirão. Mas o nome em latim? Rambo, sem perder a paciência, continuava: “A árvore comumente  chamada de capororoca pertence à família das leguminosas e o nome latino de acordo com a classificação de Lineu é Dialium divaricatum. Não é freqüente vê-la em flor. Este aspecto coriácio das folhas é para protegê-la da seca e do calor do sol”. E Rambo ia, com um canivete em formato de gancho, como aqueles usados pelos gringos nos vinhedos de Caxias e Bento Gonçalves, cortando galhos com folhas e flores que considerava mais típicos e por isso interessantes. Isso feito, abria a bolsa de colecionador que trazia sempre à tiracolo e delicadamente acomodava os galhos coletados entre folhas de papel jornal. No fim do dia, todo o conteúdo daquela bolsa ia para as prensas de madeira, em que plantas entremeadas de papel jornal eram prensas e por muitos dias ficavam secando à semi-sombra.

 

E lá íamos por campos de pastoreio, arroios, ribanceiras e mato fechado, procurando mapear a flora da região. Às vezes Rambo como que entrava em êxtase: “É a primeira vez que encontro esta planta nesta região. Não pensei que ela se adaptasse a este micro-clima.”

 

Certa vez  -  não foi num acampamento – acompanhei Rambo na subida do morro de Sapucaia, hoje também chamado de Morro do Chapéu. Rambo olhou tudo , examinou tudo, mapeou tudo e apontando para três  arbustos me disse: “Estas três espécies nunca foram descritas no Brasil; não existem em nenhum lugar do nosso país, mas elas são típicas do sul da África. Vou mandá-las imediatamente, para confirmação, para uma universidade alemã e outra americana. Será que é mais uma prova de que o Brasil e a África em tempos remotos constituíam um continente só?”

 

Havia a hora da merenda, que na maioria dos casos substituía o almoço, pois não havia tempo para voltar ao acampamento. Rambo tirava das profundezas de sua mochila um sanduíche bem alentado – pão da colônia, queijo legítimo artesanal e um pedaço de lingüiça feita em casa, - uma garrafa térmica de chá quente e, depois de fazer o sinal da cruz, dizia “Bom apetite!” Eu geralmente estava faminto, nem precisava ouvir o “Bom apetite!”, pois o tinha sobrando, e essa era a ocasião de tirar a barriga da fome. Durante essa “colação” – assim ele a chamava, pois não era merenda nem almoço -, sentados no chão no meio do mato, Rambo me explicava a localização exata das espécies encontradas na árvore de Lineu e, indo muito mais adiante, explicava como todas as plantas eram resultado da evolução de algumas bactérias que, mutação por mutação, iam evoluindo e constituíam a pluralidade das plantas existentes hoje. Por isso existiam famílias de plantas, mais ou menos aparentadas, que constituíam os gêneros e, depois, os filos.

 

Rambo era um evolucionista convicto. Ele dizia nestas ocasiões, como em sala de aula no Anchieta, que havia duas teorias sobre a multiplicidade das plantas e dos animais. Uma errada, a outra certa. A teoria errada era a criacionista, segundo a qual Deus nos primeiros dias da criação do Universo teria criado, uma por uma, todas as espécies de plantas e animais. As espécies seriam então fixas e imutáveis; seriam ainda hoje assim como eram desde o começo dos tempos. Esta teoria está errada, ensinava Rambo, por dois motivos, um científico, o outro teológico. O motivo científico consiste no fato de que, pelo menos desde Charles Darwin, sabemos que as espécies não são fixas e que uma descende da outra por mutações e por seleção natural; a teoria científica, dizia Rambo, é clara , é convincente e corresponde aos  fatos da arqueologia e das ciências de hoje, que comprovam claramente o curso da evolução. E sorrindo acrescentava: contra facta non valent argumenta. E a teoria criacionista, defendida pela esmagadora maioria dos pensadores católicos? Rambo respondia: “Trata-se apenas de uma metáfora bíblica que deve ser substituída, tão logo o possamos, por conhecimento científico. E, afinal, tu achas que Deus podendo criar, isto é, pôr em movimento uma teoria da evolução que explica tudo, ia se dar o trabalho de manufaturar espécie por espécie, uma por uma, de todas as plantas e de todos os animais? Deus é sábio e por isso, ao invés de criar espécie por espécie, num trabalho insano, criou as regras de um processo, processo esse que pôs em movimento e que engendrou a evolução, que explica planas e animais d maneira muito mais simples que a teoria criacionista”. Numa época em que os evolucionistas  ainda eram condenados  como hereges por várias igrejas, Rambo, impávido, defendia a Teoria da Evolução. Até hoje admiro a sabedoria de seus superiores jesuítas e a prudência dos bispos locais das décadas de 40 e 50 do século passado, que não obrigaram Rambo a algum tipo de silêncio obsequioso. Rambo falava abertamente e defendia sem subterfúgios a Teoria da Evolução. Chegou, assim, também ao pensamento ecológico.

 

“Hans, ouvi dizê-lo a um colono da serra gaúcha, não corta aquelas arvorezinhas à nascente e à beira do arroio. Se cortares essa vegetação, o arroio vai definhar, ficar sujo e depois morrer. E tu, Hans, ficarás sem água. Conserva  aquele matinho porque é dele que vem a água que tua mulher põe no feijão, é dele que vem a água que irriga toda a tua plantação. Hans, todas as coisas na natureza estão interligadas; mexendo errado numa, tu podes destruir tudo que construíste com tanto esforço.”  Eu estava presente e vi Hans primeiro aborrecido por não poder aumentar sua plantação de milho, depois, o vi ficar pensativo e vi finalmente entender o conselho de Rambo, vi-o sorrir e dizer. “Não se preocupe, Pater, vou deixar assim mesmo como está.” – Este pensamento  ecológico avant la lettre perpassa toda a doutrina de Rambo; ele, com sua leitura dos filósofos neo-platônicos e sua vivência de grande biólogo, havia compreendido em toda a sua profundidade o mistério da unidade do Universo. Ecólogo antes de haver o movimento ecológico.

 

Depois da pausa da merenda, a exploração continuava. Uma flor aqui, uma folha lá, um fungo estanho, Rambo ia colecionando tudo. Tudo, depois de bem cortado, preparado e anotado, desaparecia em sua bolsa de colecionador que parecia não ter fundo. No fim da tarde voltávamos ao acampamento, aonde eu ia direto a alguma comida que tivesse sobrado do almoço; Rambo ia cuidar dos espécimes colecionados, examinando cuidadosamente um ou outro, fazendo anotações e finalmente pondo-os a secar na prensa de botânico. Rambo, então, tomava banho numa curva do arroio, vestia  a batina preta e começava a andar de cima para baixo, lendo num pequeno livrinho. À última luz da tarde Rambo caminhava e lia, de quando em vez sorrindo. Minha sem-cerimônia juvenil me fez, um dia perguntar a Rambo que livro era aquele que lia todos os dias. Ele riu e me perguntou: “Queres de fato saber? Queres ler alguns trechos comigo?” Nem duvidei e disse afoitamente que sim. Sentamos e ele me mostrou o livro, todo ele em grego, e me fez ler o primeiro verso: Ménin áeide, theá, Pelleiádeos Aquiléus. Ele me cortou a palavra: “Tu tens que aprender a escandir, senão jamais sentirás a sonoridade do verso. Isso se lê assim; e ele, escandindo, cantava o verso de acordo com as regras da arte. Eu havia estudado dois anos de grego no Anchieta e tinha achado tudo uma chatice extrema. Mas o primeiro verso da Ilíada eu ainda sabia traduzir: “Canta, ó Deusa, a ira de Aquiles, o filho de Peleu.” Rambo louvou a minha tradução e disse: “Agora vamos adiante, até tu poderes saborear o cântico inteiro, verso, por verso.” Aí tinha acabado quase toda a minha sabedoria. Mas Rambo incansável, me ensinou grego de novo.  – Entrementes, por não usá-lo, desaprendi o grego, confesso. Mas nunca esqueci as palavras de Rambo: Lê, lê sempre de novo; quando chegares ao fim, começa de novo. Lê todos os dias um trechinho! Este é o começo e a base de toda a nossa civilização.” – Desaprendi o grego. Não obedeci ao mestre por muitos anos. Mas depois percebi a sabedoria do conselho e até hoje, mais de sessenta anos depois, ainda leio, uma vez por ano, na edição bilíngüe, a Ilíada e a Odisséia. Rambo me ensinou, junto com a atitude de pesquisador das ciências empíricas, a necessidade da formação clássica. Aprendi que era preciso ler todos os clássicos, de Homero até aqueles ingleses e alemães contemporâneos que, ao fazer a fundamentação da matemática, estavam construindo uma nova filosofia. Tratava-se – hoje o sei – de Frege, Bertrand Russel e Wittgenstein.

 

Rambo havia estudado, como todos católicos daquela época, a boa e velha filosofia escolástica de Tomás de Aquino nas interpretações de Cardinalis Cajetanus e de Francisco Suarez.  Cajetanus estava sempre errado; afinal ele era domincano. Suarez estava sempre certo, ele era jesuíta. Esta era a filosofia aristotélica-tomista que desde o fim do século XIX, por bula papal, era obrigatória em todas as universidades católicas. Rambo aprendeu tudo isso e, penso eu, tirou notas máximas. Mas na realidade, pelo menos no tempo que convivi com ele, tinha um profundo desprezo pela escolástica. Ele não atacava diretamente Tomás de Aquino ou a bula papal que tornara o sistema deste a filosofia a ser obrigatoriamente lecionada e seguida. Mas às vezes ele não se continha e ironicamente perguntava: “Vocês sabem o que é matéria? Matéria não é nada daquilo que Einstein e os físicos estão pesquisando e escrevendo. Matéria, segundo Tomás de Aquino, que nisso segue os aristotélicos, é o seguinte: Nec quid, nec quale, nec quantum nec aliquid eorum quibus ens determinatur (matéria não é algo, nem uma qualidade, nem uma qualidade, nem qualquer determinação pela qual o ente é determinado). Entenderam? Eu também não!” E dava uma sonora risada, como os deuses do Olimpo. Assim, a escolástica era posta de lado e nós nos dedicávamos às ciências sérias. Certa vez lhe perguntei, face a essa exclusão da filosofia escolástica, qual o filósofo e teólogo católico que eu deveria ler. Rambo me disse:” Agora não lê nada, pois não vais entender nada. Mas logo que puderes lê Santo Agostinho. É lá que estão toda a filosofia e teologia católicas. o De Trinitate e o De civitate Dei.  Quando lendo, relendo, estudando, o entenderes, saberás o que é o cristianismo.”  Não pude me conter e perguntei: e quais as doutrinas mais importantes do Novo Testamento. Rambo sorriu e disse-me: “Hoje não vais entender, pois és muito guri. Mas um dia ficarás adulto e por isso te digo. As doutrinas mais importantes são duas. A doutrina sobre o Deus uno e trino e a frase “O Reino de Deus já está entre  vós.” A solenidade que Rambo emprestou a esta resposta quase me deixou mudo. Mas guri atrevido que era, perguntei: “Mas não existe uma frase que diz que o Reino de Deus ainda não chegou?” Rambo abriu um largo sorriso e disse: “Ainda não sabes o que é dialética! Um dia saberás! Mas te lembra, a frase o ‘Reino de Deus já está entre nós’ é mais alta e mais nobre que a frase ‘O Reino de Deus ainda não chegou.”  Eu queria perguntar mais, muito mais, mas Rambo como que entrou em si mesmo, olhou o horizonte distante e o céu azul e não disse mais nada. Aliás, disse. Apontou-me uma florzinha numa árvore e perguntou: “Sabes o nome científico desta bromélia?”

 

Sobre Deus  falamos uma única vez a sério, descansando à sombra de um enorme guarapuvu. Perguntei-lhe: “Padre Rambo, existe Deus? Ou Deus é outra metáfora que temos que substituir por conhecimento científico?” Rambo riu muito da minha ousadia e, depois, solene, respondeu: “Tu podes perguntar a sério se tu existes? É claro que não. Assim ninguém pode perguntar a sério se Deus existe. Olha esta árvore, olha aqueles pássaros construindo um ninho, olha a lagartixa que está nos observando atrás daquela pedra. Se Deus não existisse, não existiria nada, absolutamente nada. A questão não é se Deus existe. A questão é perguntar como Deus é. Deus é um ser invisível, acima das nuvens, acima das estrelas, bem longe de nós – este é o Deus dos judeus. Ou Deus se fez homem, se fez natureza e está em nós e em toda a parte. O Reino de Deus está entre nós. Estás vendo aquela nuvem lá em cima, ela é Deus, ela é pelo menos um momento no movimento trinitário entre Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo. Estás vendo  os passarinhos e a lagartixa, eles também são Deus. Nós? Nós também, somos Deus; em forma mais erudita, somos partícipes da natureza divina, o que significa simplesmente que também somos Deus. Mas tu continuas tu mesmo com todos os teus  defeitos, a nuvem continua passageira, os passarinhos e a lagartixa continuam sendo animais. Deus é tudo à maneira dele. A Jerusalém Celeste, o Reino de Deus, que já chegou e no qual somos partícipes da natureza divina, é algo difícil para um garoto como tu entenderes. Aliás, nem os teólogos de hoje entendem isso direito. Lê o De Trinitate de Agostinho, relê, estuda. Um dia vais compreender o que Meister Eckhart e Jakob Boehme, Teresa de Àvila e Juan da la Cruz queriam dizer e não conseguiram. Aí vais entender Espinosa, Goethe e os filósofos do Romantismo alemão. E vais fiar ecumênico, vais entender o núcleo das grandes religiões e vais perceber que todos os homens de boa vontade, mesmo os não batizados, são cristãos. Mas por hoje chega, Qual é o nome científico daquela samambaia?

 

Voltamos ao acampamento. Rambo quieto e sereno como sempre. Eu  pensativo. Afinal o que era mesmo Deus? Levei anos e anos, levei muitos anos para descobrir. Errei por caminhos ínvios, subi e desci as mais altas montanhas lá nos Alpes. Estudei e li como um condenado. Descobri qque Rambo tinha razão. Ele dizia: Católico significa ‘kat’hólos’, de acordo com a totalidade. Karl Rahner, do qual muito mais tarde fui aluno, dizia a mesma coisa.

 

Em uma de nossas excursões exploratórias torci o pé, doeu muito e, apesar de meus quinze anos, lágrimas correram por minha face. Rambo me olhou, examinou o pé lesionado, levantou-se e disse: “O pé não tem nada, foi só uma torção. Estás ficando homem. Não és mais um guri. E homem não chora!” E seguiu em frente perseguindo com uma rede uma borboleta rara. Fui mancando atrás, repetindo como um autômato: “Agora és um homem, um homem!” Quando chegou a hora do lanche, Rambo tirou da mochila um livrinho e me disse: “Hoje esta vai ser a leitura!” Eram as Odes de Horácio, em latim, é claro. Ele abriu uma ode e me mostrou um verso que jamais esqueci: Et si fractus illabatur orbis, impavidum ferient ruinae (e se o mundo cair em cacos, as ruínas vão ferir um homem impávido) Este verso se aplicava a meu tornozelo, a meu choro, a meu cansaço, a toda a minha vida. O mundo pode cair em cacos, o homem deve ficar impávido. Eu acabava de aprender o sentido profundo, eu aprendera a verbalizar o estoicismo de meus antepassados, de meu pai, de meu avô, de meus longínquos natepassados, os legionários romanos que ficavam de sentinela  em Portugal, último bastião do Império Romano, vigiando as fronteiras contra os vândalos e godos. O que, por tradição, estava já há muito em meu sangue, fora explicitado por Horácio: Et si fractus illbatur orbis, impavidum ferient ruinae.

 

 

 

Voltei a ficar consciente numa maca, no corredor de um hospital. Uma enfermeira, toda de branco, passava um algodão em minhas narinas com um cheiro acre e penetrante. “Este acordou”, ela disse. Um médico, gravata vermelha e jaleco branco, com o medidor de pressão pendurado no pescoço, imediatamente veio me atender. Tentou falar comigo, perguntou se tinha dor em algum lugar. Não consegui responder nada. Eu oscilava entre a consciência e a inconsciência e não sentia nada de meu corpo; não sabia se ainda tinha mãos, pés. Bem, cabeça e nariz eu devia ter, pois a enfermeira com seu chumaço de algodão me fazia respirar um remédio com cheiro de arnica. O médico, que depois eu soube tratar-se do Dr. Virvi Ramos, mandou a enfermeira a chamá-lo em cinco minutos. Cinco minutos depois eu estava razoavelmente acordado e consegui responder a maioria das perguntas do Dr. Virvi Ramos. Dor? Sim, no ombro direito, no joelho esquerdo, no pé esquerdo, no osso esquerdo do ilíaco, na canela do pé direito. Virvi, como um general no campo de batalha, ordenou: “Radiografia de todos os membros, do tórax e da cabeça! Imediatamente!” Levaram-me para a sala de Raios-X e fui radiografado de cima a baixo. O radiologista improvisado – o titular ainda não tinha chegado – me disse: “Rapaz, tiveste sorte. Não tens fratura nenhuma. A dor que sentes são contusões leves e médias.” As enfermeiras empurraram minha maca de volta ao quartel general do Dr. Virvi que examinou os resultados e disse: “Este está sem fraturas e sem lesões internas; pressão e pulso, bons. Ponham numa cama para descansar.  E me telefonem de novo para o Paglioli, em Porto Alegre, porque, se ele não vem logo, vamos perder aquele rapaz com  lesão cerebral que está na sala de operação.” Parecia um pandemônio, mas não era. Virvi Ramos comandava tudo e o que parecia confusão era como que uma máquina lubrificada, trabalhando com o máximo de eficiência.

 

Levantei um pouco e vi, sentado num banco do corredor, o Padre Rambo e o sargento, o motorista, segurando o Padre Soder, que aprecia voltar a si de um profundo desmaio. Ao menos isso. Os que estavam na cabine haviam sobrevivido. E os outros? Meus amigos e companheiros de acampamento? Havia mortos? Qual era o ferido que sem a intervenção do Paglioli ia morrer?

 

Comecei a lembrar-me do acidente. O caminhão com reboque e tudo batera numa ribanceira lateral, dera duas voltas no ar e caíra com as quatro rodas para cima, esmagando todo o mundo em baixo. Eu também estava em baixo, mas tive muita sorte. Empurrando mochilas que estavam em cima de mim, consegui me arrastar de baixo do caminhão acidentado. Reinava, depois do estrondo inicial, um silêncio completo. Durou um ou dois segundos, depois vieram os gritos lancinantes dos feridos. Eu estava completamente tonto, sentado à beira da estrada, sem força para ficar em pé. Foi aí que chegaram os primeiros caminhões de carga, e os motoristas começaram a prestar socorro às vítimas. Um deles assumiu a liderança e ordenou: “Tirem todos de baixo do caminhão. Os que estiverem vivos deitem enfileirados aqui, os mortos ali.” Aí perdi de novo a consciência, para só acordar no hospital com o chumaço com cheiro de arnica em meu nariz. A aparente confusão reinante no hospital não me permitiu verificar quem estava vivo, exceto Rambo, Soder e o motorista. Outros estavam já cobertos com um  lençol branco tapando a cabeça. Virvi mandou: “Tirem este rapaz daqui, ele está bem. Levem para um quarto e o ponham a dormir.”

 

As enfermeiras empurraram a maca em que eu estava por um labirinto de corredores e me puseram numa cama. Caí imediatamente  no sono ou desmaiei; até hoje não sei.

 

Uma vez no acampamento, depois de ler na Ilíada a morte de Pátroclo, perguntei ao Rambo. O que acontece depois da morte? A alma vai  para onde? Rambo, ainda ocupado com Homero, me deu a resposta tradicional: os bons vão para o céu, os maus para o inferno. Mas eu estava com o diabinho da curiosidade intelectual a mil e não dei trégua. “Espera, Padre Rambo, o senhor mesmo diz que a gente só vai para o céu e para o inferno depois do Juízo Final. Mas este ainda não chegou; o mundo continua aí. Neste espaço de tempo entre a morte e o Juízo Final a alma vai para onde e faz o que?” Rambo percebeu que a questão estava fiando mais complexa, fechou a querida Ilíada e voltou-se para mim e minhas perplexidades.  “A alma separada do corpo é uma doutrina dualista que nos vem desde Platão e que entrou também no cristianismo. Segundo Platão, a alma existe antes mesmo de se unir ao corpo. Segundo o Cristianismo, a alma não existe antes de o homem se concebido, mas pode viver separada do corpo depois da morte. A alma dos mortos antes do Juízo Final e da Ressurreição da Carne estão como que provisoriamente no céu ou no inferno. Com a sentença do Juízo Final isso fica definitivo.”

 

Mas eu queria ir mais fundo. “Padre Rambo, se a alma separada do corpo já está no céu e no inferno para que então a Ressurreição dos corpos? O corpo só vai atrapalhar. A gente precisa comer, dormir e não pode mais voar e atravessar paredes. Parece que a Ressurreição dos Corpos só vai diminuir nossa felicidade.” Rambo, que ainda não estava tomando bem a sério as minhas perguntas, respondeu: “O corpo de que fala a Ressurreição dos Corpos não é este nosso corpo material, ele é etéreo, imaterial e está simultaneamente em todos os lugares. O que acontece é que temos a visão imediata de Deus e, assim, corpo e alma, novamente unidos, constituem o homem completo que fica ainda mais partícipe da  essência divina. É como se, depois da morte, víssemos um grande clarão que é a visão imediata de Deus. E assim sabemos tudo, fazemos tudo, pois somos partícipes de Deus, membros  da Jerusalém Celeste.” – “Espera aí, Padre Rambo, quer dizer que depois da morte vemos um grande clarão, a visão imediata de Deus, sabemos tudo e já fizemos tudo. Não há mais nada a saber, nada a dizer, nada a fazer. Significa isso que, quando eu for para o céu – espero que consiga – e encontrar meu avô não vou poder conversar com ele, porque ele de saída sabe tudo o que vou dizer? Não vou poder contar para ele que inventaram o computador, o forno de micro-ondas, o telefone celular e o implante dentário? Ele pularia de alegria se soubesse que o dentista hoje põe um pino de titânio no osso e uma coroa em cima e pronto, temos um dente novo. Nada disso é possível? Mesmo que ele mediante a visão beatífica já soubesse de tudo, não seria bom conversar com ele sobre essas coisas, simplesmente jogar conversa fora. No céu não posso conversar com ninguém, nem com meu avô?”  -  “Meu filho, teu avô já sabe tudo isso porque está tendo a visão imediata de Deus e lá estão todas essas coisas”. – “Mas então, Padre Rambo, que graça tem eu encontrar de novo meu avô? Não posse nem mesmo conversar com ele!” – É que na Jerusalém Celeste não há tempo, só eternidade; e na eternidade  que é só um átimo de instante, não há tempo para conversar.”  -  Mas, Padre Rambo, esta Jerusalém Celeste deve ser chata a beça? É um clarão onde vemos tudo  e só um clarão! Dá para ser feliz só num clarão?”

 

Rambo ficou pensativo, muito pensativo, e disse: “Um dia entenderás a diferença entre tempo e eternidade e aí todas as tuas perguntas  se resolverá.”  Garoto impertinente que eu era, acrescentei: “Espero não fiar toda a eternidade só repetindo Aleluia, Aleluia, Aleluia. Isso não seria o céu, mas uma chatice, pior ainda que a aula de desenho geométrico.

 

Há duas facetas de Rambo comas quais tive um breve contato, mas que conheço muito superficialmente. O Rambo místico, que escrevia, em código, seus diálogos com Deus e o Rambo popular, que escrevia em Plattdeutsch – o dialeto falado na colônia alemã – as mais divertidas histórias e contos.

 

O Rambo místico, à semelhança das Confessiones de Santo Agostinho, escrevia um diário íntimo em que dialogava com o Deus que havia dentro dele. Rambo contava das coisas feitas durante o dia, interrogava Deus sobre o que estava certo e o que estava errado. Às vezes interpelava duramente a Deus, perguntando como ele havia permitido isso ou aquilo. Outras vezes, a maioria das vezes, agradecia. As anotações de Rambo, escritas propositadamente  numa estenografia que ele pensava indecifrável, foram decifradas, transcritas e lamentavelmente publicadas; são uma conversa íntima de Rambo com o próprio Deus que  habitava dentro dele. Os mais recônditos desvãos da alma, Rambo os abria para Deus e para si mesmo. Criou, assim um monumento de intimidade que, em minha opinião  e na de alguns que o conheceram, não deveria ter sido publicado. Há segredos que são valiosos somente enquanto continuam segredos.

 

Mas já que foi publicado, levanto aqui duas questões que hoje são muito atuais na Igreja Católica. Rambo algum dia foi pedófilo? Cometeu um, ao menos um ato de pedofilia? A resposta é um sonoro não. Nunca. Rambo jamais se aproximou de um jovem a não ser como sacerdote e professor. Segunda questão: Rambo obedeceu fielmente a seu voto de castidade? Ou teve uma vez que seja uma relação sexual com uma mulher? A resposta é igualmente dura: Nunca. Rambo morreu virgem, como ele mesmo escreve no diário secreto que ele pensou que jamais seria decodificado. Quanto à primeira parte, quanto à inexistência de toda e qualquer pedofilia ou atração pedófila, palmas e mais palmas. Um verdadeiro professor e mestre jamais iria ferir seus discípulos e distorcer a psique de seus alunos. Quanto ao segundo ponto: Rambo nunca teve relação sexual com uma mulher. Palmas e palmas porque Rambo cumpriu seus votos do começo até o fim, fez exatamente aquilo que prometeu. Fica apenas a pergunta: tais votos são bons votos? Mas esta não é uma pergunta para Rambo e sim para toda a Igreja Católica, que até hoje cultiva um profundo desprezo por tudo que é feminino e declara pecado quase tudo que é sexo. E a Virgem Maria? Exceção, ela é só exceção que confirma a regra. Sobre as restantes partes do diário de Rambo seja-me permitido calar. O homem que ali aparece é o mestre, o educador e pesquisador, conseqüente até o fim, homem sujeito a todas as tentações como nós, mas que – em oposição a nós -  impávido, sempre venceu e superou aquilo que julgava ser fraquezas humanas. Rambo, anos depois, foi encontrado morto em sua mesa de trabalho. Não se queixou, não ficou doente, não foi para o hospital. Morreu, simplesmente morreu. Morreu como vivera: impavidum ferient ruinae.

 

Certo dia, logo depois daquela conversa sobre o céu e a Jerusalém Celeste – seriam uma chatice? – sentados à sombra de uma majestosa figueira e comendo lingüiça que um colono amigo nos dera, a conversa se deslocou  para algo que para mim era muito importante: Qual conselho é realmente válido e a ser seguido? Contei todo o causo ao Rambo que ouviu tudo, sem nunca me interromper, pois percebera a relevância existencial que aquilo tinha para mim.

 

“Padre Rambo, foi no verão anterior e eu estava aqui mesmo, na fazenda da Ronda, mas não em acampamento de escoteiros. Eu estava aqui como neto de meu avô, o dono da fazenda. Ele não me dava moleza. Levantar às cinco da matina, passar uma água no rosto e ir para a mangueira tirar leite. Levávamos uma caneca de lata com um concentrado  líquido de café no fundo; as mulheres faziam esse concentrado coando quatro ou cinco vezes o mesmo café que assim ficava cada vez mais forte; ferviam tudo, então, até sobrar apenas uma espécie de xarope, o concentrado de café. Punham, então, o concentrado numa garrafa e penduravam num galho de figueira ao lado da mangueira de tirar leite. Nós, isto é, eu e toda a peonada, púnhamos um dedo do concentrado de café na caneca e depois íamos tirar leite. O primeiro leite, aquele bem gordo e espumante, ia para a caneca e ficava um café com leite cheio de espuma, gostoso que nem pecado. A gauchada chamava aquilo de camargo e era a nossa primeira refeição do dia. Lá pelas oito havia pão feito em casa, café com leite, charque desfiado e farofa. E aí laçávamos na mangueira os cavalos que íamos montar, púnhamos o buçal, o cabeçalho com as rédeas e os freios, o enxergão, os arreios, a cincha, os pelegos, o laço e o avio de creolina para curar bicheira. Em cima do serigote, como todo o mundo sabe, vem a cincha bem apertada, dois ou três pelegos e depois a sobrecincha.

 

“Essa era a rotina, Padre Rambo. Mas um dia apareceu de visita nosso vizinho, o Joaquim Jacques, herdeiro daqueles Jacques que há mais de duzentos anos são fazendeiros nos pampas gaúchos. Ele era um jovem garboso. O cavalo era um puro sangue, os arreios, uma obra de arte de couro com enfeites de prata.  Fiquei todo bobo. E estouvado e impertinente que era, pedi a Seu Joaquim se podia me emprestar, para  o dia, a badana de couro viado campeiro. Badana é aquele último couro que se põe por sobre os pelegos, para não ficar tão quente, mas principalmente para a belezura. Joaquim riu e disse que me emprestava a badana, mas que eu fosse cuidadoso porque ela era de couro de veado  e toda trabalhada à mão.

 

Sorrindo  o sorriso dos tontos, peguei  a badana e a joguei por sobre meus pelegos velhos e saí a galope faceiro. Trabalhamos, a gauchada toda, parando rodeio e curando bicheiras. Mas aí veio um toró daqueles de molhar lambari em baixo da d’água. Serenou, mas uma hora depois veio outro toró com mais água ainda. Não dava para trabalhar e assim voltamos molhados até o fundo da alma para a sede da fazenda. Ao desencilhar meu cavalo, percebi que a preciosa badana de seu Joaquim estava completamente encharcada. Ela pingava água.

 

Sem saber o que fazer para secar a badana, perguntei a um gaúcho velho, daqueles que viram tudo e sabem tudo. “Seu Tonico, o que eu faço para secar esta badana que não é minha? Ela tem que fiar como nova!” A resposta foi clara e parecia sensata: “Ora, torça ela bem para tirar a água e depois bota ela em cima daquela taipa para secar ao sol.” Segui o conselho do seu Tonico e fiz exatamente o que ele mandou.”

 

“Quando horas depois, fui buscar  a badana, ela estava dura que nem uma tábua. Fiquei desesperado. O que fazer para transformar aquela tábua de couro duro em uma badana de couro viado, flexível e toda trabalhada? Eu não sabia. Fui pedir conselho. Se Waldo, um peão experimentado nas lides do campo, estava passando. Contei a história para ele e, finalmente perguntei: “Como amoleço esse couro duro e faça a badana voltar a ser o que era?” Seu Waldo assuntou e disse: “Para amolecer couro só tem um jeito, passar cebo devagarzinho e ir esfregando”. Foi o que fiz.

 

Eu estava quase terminando o trabalho de passar sebo, quando passou o capataz, Firmino Branco, gaúcho de fé, daqueles que já nascem de bota e espora. “Menino, me disse ele, o que é que estás fazendo? Passando sebo na badana, e pelo jeito numa badana fina?” Fiquei bem atordoado e contei a ele toda a história do começo ao fim. A chuva, o conselho de Seu Tonico, o conselho do seu Waldo. E acrescentei, todo lampeiro, parece que está dando resultado porque a badana está quase molezinha. Seu Firmino me passou os cachorros. “É verdade que para amaciar couro sempre se usa sebo, mas na badana não. Pois a gente senta na badana, última camada sobre os pelegos, e uma badana ensebada passa todo o sebo para as calças do ginete. Quem é que vai sentar numa badana ensebada?” E depois de alguns palavrões sobre a senhora minha mãe, foi-se embora sem nada mais dizer. E lá estava eu com a badana, mole mas imprestável.

 

“Aí passa seu Juca, ginete de doma e conhecedor de todos os truques da vida campeira. Não tive dúvida e perguntei: “Seu Juca, como é que tiro este sebo da badana?” A resposta foi, de novo, aparentemente sensata:” A única coisa que tira o sebo é ferver em água bem quente.” Foi o que fiz. Botei a badana num lata velha de querosene, botei em fogo alto e esperei ferver bem fervido. Eis senão quando passa meu avô com Seu Joaquim Jaques e perguntam o que eu estou cozinhando. Contei honestamente tudo. A chuva torrencial, o conselho do Seu Tonico de botar a secar no sol, o conselho do Seu Waldo de passar sebo, o conselho do seu Juca de ferver em água bem quente.

 

Meu avô e Seu Joaquim caíram na maior gargalhada. Parecia que não iam nunca mais parar. Meu avô se virou, então, para Seu Joaquim e disse: “Joaquim, semana que vem vou à cidade e te compro uma badana mais bonita ainda.” Joaquim agradeceu, olhou para mim e disse: “Muitos cozinheiros estragam a sopa.”

 

Contei toda esta longa história para o Padre Rambo, que ficara todo o tempo calado, e perguntei mais impertinente do que nunca; “Se nunca sei se um conselho é bom ou ruim, como é que vou saber se os conselhos do senhor são bons? Como é que vou saber se é esta ou aquela a interpretação da Bíblia que está certa?”

 

Rambo olhava para a figueira e não dizia nada. Parecia que ele não estava me ouvindo, que estava apenas olhando os frondosos galhos da árvore majestosa. O céu azul, azul, como só aqui no Sul ele fica azul. Pássaros voando, cigarras cantando, um lagarto grande nos olhando por detrás de um cupim. Rambo olhava a figueira e, concentrado, não dizia nada. Depois de longo silêncio, voltou-se para mim e disse: “Queres de saída saber tudo, guri? Tua história da badana encerra um dos mais difíceis problemas da filosofia. Queres saber distinguir o bom conselho do mau conselho. Queres, no fundo, saber o que é verdade e o que não é verdade. Achas a pergunta fácil? Pois é uma das mais difíceis questões de toda a filosofia. Pilatus já perguntara a Cristo: O que é a verdade? Bem, guri, vou tentar te explicar, passo por passo, o que é a verdade, pelo menos quanto eu mesmo a entendi.

 

“A figueira é verde” é uma frase que eu digo. Para saberes se ela é um frase verdadeira tens que olhar a figueira e ver se ela é de fato verde; podia estar morta e ser de cor de cinza escuro. Olha, olha bem e vais verificar que esta figueira aqui é verde, é viçosa, tem frutinha. Compara então a frase que eu disse: “A figueira é verde”, com a realidade objetiva da figueira para a qual estás olhando e constatas que  frase está dizendo exatamente aquilo que de fato é. A figueira verde. Os antigos chamavam isso de correspondência do intelecto com a coisa. Mas, sejamos bem honestos, o que é correspondência?” Não me contive: “Correspondência é o fato que à figueira verde pensada e falada corresponde uma figueira verde real e existente.”

 

Rambo riu da minha resposta instantânea e retrucou: “Em parte, somente em parte tens razão. Como é que sabes que a palavra figueira significa aquela árvore ali?” – Achei a pergunta fácil:” Ora bolas, qualquer gaúcho sabe que aquela árvore se chama figueira. Onde é que está o problema?” – “Tu queres dizer que a figueira pensada e falada corresponde à figueira real, não é? Mas como é que sabes realmente o que é a figueira real? São os teus olhos e teu intelecto que te dizem o que é a figueira e que a figueira pensada corresponde à figueira real. E se teus olhos te enganarem? Não pensaste muitas vezes ver coisas que de fato são diferentes do que parecem ser ou até não existem?  A verdade muitas vezes é a correspondência entre a coisa pensada e a coisa real, mas nem sempre; não temos critérios para dizer onde nos enganamos. Viste, voltamos ao ponto de partida: Não temos critério para separar o verdadeiro e o não verdadeiro.

 

-“Mas, Padre Rambo, então nunca saberemos se uma coisa é verdadeira?” – “No dia a dia é claro que sabemos. Mas tua pergunta nos levou ao último critério da verdade. Qual  é esta pedra de toque que nos diz, em última instância, se algo é verdadeiro ou falso?”

 

“Honestamente não sei. A coisa está fiando muito complicado para mim.”  - “Não é tão complicado assim. Como é que sabes que um poço tem água? Pega uma corda e um balde e vê se consegues tirar água; se consegues, o poço tem água. Como é que sabes que um auto está funcionando? Entras lá dentro, ligas a chave e ouves se o motor arrancou; botas na primeira marcha, na segunda e na terceira. Fazes uma voltinha pela estrada e voltas. Me entregas as chaves e dizes: Padre, o auto está funcionando. É verdade que o auto está funcionando, o auto está funcionando de verdade. Mas isso é uma verdade apenas parcial, uma verdade em parte. A estrada poderia ter um buraco e aí tu não conseguirias voltar, e o auto estaria todo estragado. Repara: Para que uma coisa seja verdadeira ela tem que funcionar, ele tem que estar – como dizem os filósofos – em coerência consigo mesmo, mas também em coerência com todo o meio ambiente. Esta figueira verde, por exemplo, que sabemos ser verdadeira, seria ainda mais verdadeira se aquele arroio logo ali em baixo não existisse?

 

“Mas, Padre Rambo, tudo está de certo modo interligado com tudo. E tu mesmo nos ensinaste que se a gente mexe num átomo, todos os átomos do Universo se mexem também um pouquinho.” “Verdade, pura verdade. Percebeste agora por que é tão difícil dizer se uma coisa é verdadeira. Precisamos em cada caso examinar a inserção daquela coisa  em seu meio ambiente, na Mãe Terra e, finalmente, no Universo. Verdadeiro é sempre   somente o Todo do Universo. Por isso só Deus é verdadeiro.

 

-“E nós, então, somos o que? Não é verdade que estamos em baixo desta figueira? – “Isso é verdade sim, parte pequena da verdade. A verdade realmente verdadeira é somente o todo”.

 

 

A enfermeira toda de branco me sacudia de leve. “Acorda, guri! Estás te sentindo bem? Tens alguma coisa que dói? Será que podes te levantar? Faz assim. Eu te ajudo e tu sentas bem devagar na cama.” No começo eu estava meio tonto; as cosas giravam. Mas aos poucos o mundo começou a ficar firme de novo e minha vista ficou sem aquela névoa branca que me toldava a visão. A enfermeira perguntou se tudo estava bem e disse que eu ficasse sentado um pouquinho. Depois me trouxe uma bacia com água e um paninho para limpar um pouco a cara e me refrescar. Aí me ajudou a ficar em pé, me segurando bem firme. Me levou a uma pia e perguntou se eu queria me lavar um pouco mais. Sé então percebi o estado em que eu estava. Em cima da pia havia um espelho grande e o que eu via no espelho era simplesmente horrível. Eu ainda estava de uniforme de escoteiro, com tudo, com o lenço branco e azul e, pendurado no pescoço, com meu apito e sua cordinha verde. Mas em que estado eu estava! Todo sujo de terra e de sangue, imundo. Cabelos desgrenhados, uma enorme placa de sangue seco no lado direito da cabeça. Sangue na testa, sangue no nariz e na boca. Minha blusa cáqui, toda rasgada, era só poeira e sangue. As calças curtas, também de cor cáqui, estavam literalmente pretas. Minhas meias brancas, que deviam chegar até abaixo do joelho, estavam num emaranhado acima das botinas. As botinas pretas, com a sola toda ferradas com os pregos de alpinismo, estas sim tinham agüentado tudo. Olhei para mim  no espelho e quase não me reconheci. Nunca tinha me visto tão sujo, imundo, tão desarrumado, cheio de poeira e sangue. Tentei lavar a cara tirando as crostas de sujeira e de sangue. Não consegui. Estava tudo colado no meu rosto, e quando eu puxava, doía. A enfermeira para me consolar, disse: “Nem todo o sangue é teu. Tiveste poucos cortes e contusões. O sangue é dos outros.”

 

Vendo que não tinha condições de me limpar, a boa e sábia enfermeira me fez sentar e me disse: “Eu  tenho uma notícia boa e uma notícia má. A boa, é que as pessoas que estavam na boléia estão ilesas, só com pequenas lesões. Pare Rambo, Padre Soder e o motorista sobreviveram e já estão de pé, caminhando. A notícia má é que três colegas teus morreram e todos os restantes estão feridos. Alguns gravemente. Tu és o único que saiu ileso.”

 

Eu quis desandar a chorar, mas me lembrei do Rambo: Et si fractus illabatur orbis, inpavidum ferient ruinae. “E onde eles estão, perguntei, os mortos?” Na capela, respondeu-me a enfermeira, esta havendo uma missa pelos mortos.

 

“Vou para lá, disse eu, quero estar lá.”  “Mas será que agüentas? Não é melhor voltar para a cama e descansar como o médico mandou?” “Não, irmã, eu vou!” E meio trôpego, com a enfermeira a meu lado me segurando, comecei a caminhar em direção à capela. A nave estava completamente cheia. A missas já havia começado. Lá na frente, perto do altar, estavam os três caixões com o corpo de meus colegas: Rüdiger, Ribeiro, Miotto. Dos meus colegas feridos, nenhum esta lá; nenhum podia sair da cama. Eu fiquei sentado na ponta do último banco, ainda meio tonto. Todo o mundo se virava e ficava olhando para mim, desgrenhado, imundo, cheio de sangue.

 

Quando chegou a comunhão, Padre Rambo, que, sem que eu percebesse, estava atrás de mim, me cutucou e disse “Vai!” Levantei-me e fui caminhando, sozinho, pelo meio do corredor central. Cada passo meu era como que uma pedrada na alma de todos os presentes. As botinas de sola ferrada faziam um barulho de ferro batendo em pedra. O silêncio era mortal. Eu punha um pé na frente do outro, a cada passo a batida lúgubre do ferro sobre a pedra quebrava o silêncio da igreja. O Padre, no altar, me esperava com a hóstia na mão. Eu caminhava devagar, passo por passo, por causa da tontura, e cada passo era uma martelada de ferro que ressoava em minha cabeça. Passei pelos caixões de meus amigos e companheiros - podia ter sido eu – e, ajoelhando-me, recebi a comunhão.

 

Voltei devagar para trás, para o último banco, e Rambo me disse no ouvido: Impavidum ferient ruinae. Só então os outros presentes se levantaram e foram, em fila, para a comunhão.

 

Eu fiquei bem tonto, quase caí, mas a enfermeira me segurou e levou de volta para a cama. Antes de voltar à inconsciência, me lembrei do Rambo: A verdade é o todo.

 

Ao rememorar quase sessenta anos depois estes acontecimentos, que relatei com a fidelidade possível à minha memória; depois de toda uma vida em que mudei conceitos, sim, mudei de filosofia, emergem lá no começo, como raiz de tudo, uma figura humana e dois ditados filosóficos. A figura humana, inesquecível, de Balduino Rambo e os dois ditados que desde então guiaram a minha vida: a doutrina neo-plaltônica A Verdade é o Todo e o lema de nossos antepassados estóicos, legionários romanos, colonizadores do Brasil, tropeiros e fazendeiros, construtores de uma civilização que ainda não está pronta.

 

Et si fractus illabatur orbis, impavidum ferient ruinae