A
FUNDAMENTAÇÃO DA ÉTICA E O ABSOLUTO
Carlos Cirne-Lima (Unisinos, GPI-Dialética) 1. O ABSOLUTO 1. INTRODUÇÃO - OS
DEUSES E O ABSOLUTO Desde os primórdios de nossa civilização a fundamentação
da Ética estava no centro de todo filosofar. A principal preocupação
filosófica de Sócrates e de Platão trata do que é bom e do que é mau,
do justo e do injusto. O pensamento crítico começa aí a dissociar a
fundamentação da Ética do problema dos deuses, que desde os gregos até
hoje para muitos, quando não para a maioria, é a fonte da moralidade.
Este trabalho versa, por isso, também sobre os diversos conceitos de
Deus, ou, em linguagem filosófica, do Absoluto.
É sobre estes ponto central de nossa cultura, que versam as reflexões
filosóficas que aqui seguem. Vou analisar, primeiro, o conceito de Absoluto
– e, portanto, de Deus – na estrutura da família grega antiga, isto
é, nos primórdios de nossa civilização e em três sistemas filosóficos,
apontando sempre para a fundamentação da Ética. Tratarei, em uma primeira
parte, a) de Deus na família grega arcaica; b) tratarei do conceito
de Absoluto nos filósofos neoplatônicos, principalmente Na segunda parte
deste trabalho, procuro articular de maneira especulativa as partes do sistema que estou tentando desenvolver.
Procuro aí apresentar minha teoria sobre a fundamentação da Ética, ou
seja da passagem de proposições descritivas para proposições normativas. Na família grega arcaica [1] deuses eram os antepassados já mortos, o pai, o avô, o bisavô, heróis de
muitos feitos e de muitas guerras. As pequenas estatuetas
representando os antepassados mortos eram colocadas na beirada de pedra
que cercava o fogo sagrado, que, roubado dos deuses do Olimpo por Prometeu,
jamais podia apagar-se. Era este fogo, sempre ardendo na Hestia,
centro da casa e da família, que tornava os homens diferentes dos animais:
os animais comem os alimentos crus, os homens os assam no fogo da Hestia.
Comer carne crua é característica dos animais selvagens, assar a carne
no fogo roubado dos deuses, antes de comê-la, esta é a característica
dos homens. As estatuetas dos deuses domésticos, os heróis antepassados,
eram testemunhas protetoras deste começo de nossa civilização. Os heróis
antepassados, deuses que eram, recebiam sempre a homenagem do primeiro
bocado de comida e do primeiro gole de bebida. Partia-se o pão e o primeiro
pedaço era posto nas chamas para satisfazer a fome e atrair as bênçãos
dos deuses domésticos. Ao beber, o primeiro gole tinha que ser derramado
no chão, em frente ao fogo da Hestia, para saciar a sede dos
antepassados mortos. Até hoje, muitos de nós, dois mil e quinhentos
anos depois, descendentes da civilização greco-romana, ao beber, fazemos
a libação (libatio) e oferecemos o primeiro gole “para o santo”.
Não sabemos mais que santo é esse, mas não esquecemos jamais de fazer
o gesto de derramar, dizendo baixinho “O primeiro gole é para o santo”.
Não sabemos mais o sentido do que fazemos, mas continuamos a venerar
os deuses domésticos tão importantes para nossos ancestrais remotos.
Eis nossos primeiros deuses, deuses que até hoje honramos e reverenciamos:
o pai, o avô, o bisavô, nossos deuses domésticos. E se em certas casas,
em cima da lareira, estão até hoje, solenes, os retratos de nossos pais
e avós, é que estamos dando continuidade à velha tradição de gregos
e romanos. Lareira vem de lares, lares é o nome latino
de Hestia; e sobre a lareira, a Hestia, ali é o lugar
das estatuetas dos deuses domésticos. Na falta de estatuetas, nossos
pais e avós colocavam retratos e fotografias; na falta de lareira, acendia-se
uma lamparina que, como entre os antigos, nunca podia ser apagada. Alguém
ainda se lembra disso? Os deuses domésticos
eram também chamados de deuses interiores, porque estavam bem no meio
da murada de pedra que circundava o fogo sagrado da Hestia. À
esquerda e à direita deles, para os lados, estavam as estatuetas dos
deuses externos. Externos eram eles, porque não estavam no centro e
sim aos lados. Externos eram eles também porque representavam, não membros
da família, mas forças externas da natureza: a luminosidade do sol (Apolo),
a fertilidade da terra (Ceres), as boas graças do mar (Netuno). Muitos
eram os deuses externos e as famílias e as cidades os escolhiam dentre
a multidão de deuses. Assim os atenienses, ao escolher – em eleições
livres, é claro - o deus padroeiro da cidade, tinham de optar entre
Pallas Atenas, a deusa da sabedoria, e Netuno, o deus do mar e das águas.
Ambos se apresentaram, trazendo um presente, sinal de sua amizade. Netuno
fincou seu tridente no chão seco da acrópole, fazendo dali jorrar uma
fonte de água cristalina; ele ofereceu aos cidadãos de Atenas água,
água pura, até hoje um bem escasso em toda a Grécia. Pallas Atenas fincou
seu cajado no chão duro da acrópole e dele brotou a oliveira, dando
aos atenienses o óleo de oliva, tempero de todas as iguarias, ungüento
curativo de todas as feridas, óleo para tratar a pele e dar beleza a
mulheres e guerreiros, deuses, semideuses e heróis. Pallas Atenas, como
sabemos, foi escolhida e eleita pelos atenienses como deusa padroeira.
E até hoje quem subir à acrópole verá, como que perdida entre templos,
estátuas e as pedras onipresentes, uma árvore, uma única árvore. E o
guia turístico ateniense, orgulhoso de sua tradição, vai confirmar ao
turista tantas vezes desavisado: É, sim, esta é a árvore, a única árvore
que existe aqui em cima da acrópole, esta é a oliveira que Pallas Atenas
plantou e nos deu, a nós atenienses.
– Zeus, Juno, Atenas, Apolo, os deuses externos se multiplicaram
e foram todos objeto de veneração e respeito. Quem iria desafiar os
raios de Zeus? Quem iria se aventurar nos mares sem a proteção de Netuno?
Como plantar e colher sem o beneplácito de Ceres? Nossos antepassados
remotos tinham muitos deuses, alguns eram internos, outros eram externos,
todos eram respeitados e invocados. Aí surge, a partir de um povo então politicamente insignificante,
o povo dos judeus, o monoteísmo:
Deus é um só, todos os outros são falsos deuses. A religião do deus
único - no singular e em maiúscula – era inicialmente um fenômeno cultural
restrito a um pequeno povo de nômades. Gregos e romanos, os senhores
do mundo civilizado, toleravam o povo dos judeus com seu deus único.
Os romanos, então, nem tiveram dúvida. No grande templo que reunia ecumenicamente
todos os deuses de todos os povos, o Panteão, colocaram também uma estátua
homenageando o deus dos judeus. Afinal, por que não? E assim surge a
contradição de um deus, que quer ser único, posto no meio de um coletivo
variegado de deuses oriundos de todas as partes e representando as mais
diversas culturas. O deus dos judeus não era um deus universal, um deus
a ser reverenciado por todos os povos, um deus que ditasse leis a todos
os povos, um deus que fizesse justiça a todos os homens
[2]
. Não, o deus dos
judeus era deus somente dos judeus. Suas leis eram apenas
para os judeus, seu povo escolhido; sua justiça e sua bondade valiam
apenas para com os judeus. O deus dos judeus não reinava por sobre os
outros povos, não, o deus uno e único do povo judaico, Javé, era um
deus que numa contenda entre judeus e não-judeus estava sempre ao lado
de seu povo e de seus adoradores contra todos os seus adversários, quaisquer
que fossem eles. O deus dos judeus não era universal como o império
romano com seu comércio, suas estradas e seu jus inter gentes,
mas sim um deus particular de uma pequena tribo de nômades sem nenhuma
importância política e militar. Mas era um deus uno e único, transcendente:
surgia o monoteísmo. Dentro do pequeno povo judaico, perdido na periferia do império e, portanto, da civilização, nasceu, então, uma seita político-religiosa menor ainda e ainda menos importante: os essênios. À beira do Mar Morto, uma das regiões mais inóspitas do mundo, de dentro da seita dos essênios nasce o germe intelectual que vai crescer, florescer, espalhar-se por todo o império, por todo o mundo civilizado, o cristianismo: a religião de um deus transcendente que, pela encarnação, se faz homem e assim se torna também imanente. Surge aqui o deus que é transcendente e imanente, quanto mais transcendente é pensado mais imanente ele fica. O cristianismo, totalmente judeu em sua origem, adepto, portanto, do deus que era só de judeus e só para judeus, foi colocado pelas circunstâncias históricas de sua inserção cosmopolita no império romano diante de uma decisão fundamental: Continuar como uma seita religiosa particular, tribal, com um deus só dela e só para ela, ou transformar-se numa religião universal? Em outras palavras, o deus dos judeus – agora também Deus-Homem cristão - é deus só dos judeus e só para os judeus ou é o deus universal de todos os homens e para todos os homens? Esta questão, surgida entre os primeiros cristãos, foi decidida a favor de um deus universal [3] . Paulo de Tarso, o apóstolo, e Pedro, o primeiro
entre os doze apóstolos, realizaram a grande virada.
Deus deixou de ser um deus particular, um deus só de judeus e só para
judeus, e tornou-se o deus uno e único, transcendente, de todos os homens
e para todos os homens. Quando, depois, o imperador Constantino tornou
o cristianismo a religião oficial do império, o deus uno e único dos
judeus essênios, o deus que se encarnara como Deus-Homem, passou a ser
o deus uno e único, sim, mas universalíssimo, reinando sobre todos os
povos e todas as tribos, sobre todas as culturas e sobre todas as leis
locais. O deus cristão, uno e único, transcendente, deus de todos os
homens e para todos os homens, mas ao mesmo tempo o deus que se fez
homem e habitou entre nós passou a ser o ponto central de nossa civilização
ocidental. Desaparecem, assim, pelo menos do primeiro plano, os deuses
gregos e romanos, celtas e germânicos, e passa a imperar o deus único,
que não permite outros deuses a seu lado, que, transcendente, reina
sozinho sobre tudo e sobre todos, e que, enquanto imanente, é mediado
por uma única religião, o cristianismo. Este é, até hoje, o deus de
nossa civilização ocidental, de católicos, protestantes, ortodoxos gregos
e russos, arianos, maronitas, anglicanos, metodistas, prebiterianos,
calvinistas, hussitas, mórmons, adventistas e tantos outros mais. Os
judeus, que continuam com seu deus particular, só deles e para eles,
adoram, no fundo, o mesmo deus transcendente dos cristãos; a encarnação,
isto é, a imanência do deus que se fez homem é por eles negada. O islamismo,
que se desenvolveu a partir do monoteísmo judaico-cristão, tem como
centro o mesmo deus uno e único, transcendente e não imanente. 2. O ABSOLUTO EM
AGOSTINHO O sistema de
Agostinho em sua positividade e universalidade é, nesta exposição, a
tese. O sistema de Tomás de Aquino e dos neotomistas com sua theologia
negativa é a antítese. A proposta a ser feita mais adiante, uma
transformação corretiva da filosofia de Hegel, – síntese - pretende
resgatar a universalidade e a positividade do sistema de Agostinho,
mediatizada, porém, criticamente pela passagem através da negatividade
do sistema de Tomás de Aquino. Em Aurélio Agostinho [4] , como em todos os pensadores neoplatônicos de Plotino até Hegel, o
sistema sempre tem três partes, tese, antítese e síntese. Em Agostinho, a primeira parte do sistema trata de Deus antes de criar o mundo, um Deus que é uno e único, mas que é articulado pela rede de três relações que o constituem. Do Pai, que é o início, procede o Filho, sua imagem e semelhança. Da tese, o Pai, sai e emerge a antítese, o Filho. Ao completar o círculo dialético na síntese, Pai e Filho se unem no amor de um para com o outro que se chama Espírito Santo. Pai, Filho e Espírito Santo são três relações, reais e necessárias, que em movimento dialético circular vivificam a unidade que se chama Deus. A tradição cristã vai utilizar a palavra latina substantia para designar a unidade de Deus e a palavra grega hipóstasis para designar as três pessoas divinas: três hipóstases em uma única substância [5] . Este
Deus, primeira parte do sistema, é uno e trino – o que
vem diretamente da tríade dialética – e é também o Bem supremo – o que
vem igualmente da tradição neoplatônica. O Bem, no entanto, tem em si a tendência de difundir-se,
bonum diffusivum sui, e por isso a bondade de Deus, o Bem supremo,
como que transborda, sai de si em bondade e amor para como que se reduplicar
e constituir-se como o universo criado. A criação é livre, sim, pois
é um transbordamento do Bem e do amor; todo amor é livre. O fruto deste
transbordamento chama-se Natureza e constitui a segunda parte do sistema.
Deus antes de criar o mundo é a tese, a Natureza é a antítese. Assim
como a primeira parte do sistema, Deus, se subdivide em três relações,
as pessoas divinas, também a segunda parte do sistema se articula em
tese, antítese e síntese. Do anorgânico, tese, emerge o orgânico, antítese,
ambos sintetizados no homem, síntese na qual o anorgânico e orgânico
se fundem para constituir o espírito. Síntese do mundo anorgânico e
orgânico, o homem é a imagem de Deus. Há no homem, dentro dele, como
uma réplica da trindade divina. O espírito, no homem, se compõe de três
instâncias: a memoria sui, que garante a identidade e a permanência,
pois conserva o passado no presente e projeta o futuro; o intellectus
sui, que em correspondência ao Logos divino infunde no homem o conhecimento
dos primeiros princípios que regem o Universo e constitui a autoconsciência;
e finalmente a voluntas sui, o desejo de verdade e de amor mediante
o qual o homem retorna a seu Deus Criador e se incorpora à Jerusalém
Celeste. O homem, porém, - aqui começa a História – o primeiro
homem, Adão, pecou e nele todos os homens pecaram; tese e antítese –
Deus Criador e a criatura - entram A terceira parte do sistema trata, então, da síntese,
da conciliação entre o Deus uno e trino e a Natureza decaída pelo pecado
original. Esta conciliação se faz, de maneira dialeticamente circular,
porque Deus se faz homem, engendrando o Deus-Homem, Jesus Cristo; e
o Deus-Homem, continuando divino, levanta à divindade a Natureza caída,
tornando-a partícipe de sua divindade. Na síntese, tese a antítese são
conciliadas e se fundem numa unidade mais alta, categoria final do sistema.
O divino, pela encarnação, é humanizado e naturalizado; a natureza e
o homem, pela redenção, são divinizados e este fica partícipe, pela
graça santificante, da natureza divina. Surge, aí, a Jerusalém Celeste,
estágio final do sistema e da História da Salvação, na qual Deus e suas
criaturas fruem do amor que os une e constituem como que a cúpula do
sistema triádico neoplatônico-cristão de Aurélio Agostinho. A primeira grande objeção contra o sistema neoplatônico-cristão
de Agostinho, foi ele mesmo que a formulou: O conflito entre a predestinação
e o livre arbítrio, entre a gratia efficax e a liberdade do homem.
Segundo Agostinho, todo o curso do Universo, inclusive as decisões livres
dos homens, são objeto da predestinação. O conceito de predestinação,
oriundo da filosofia determinista e necessitária dos estóicos, de que
tudo no mundo está desde sempre predeterminado na vontade eterna de
Deus diz que todo o Universo é uma rede determinística de relações necessárias,
em que cada elo se encaixa no outro, sem espaço para que o homem, em
seu livre arbítrio, possa optar por uma alternativa e não por outra.
Estar predestinado à salvação ou à danação eternas significa, para Agostinho,
que o homem individual e concreto está desde sempre, desde antes de
nascer, predeterminado para sua situação final: querendo ou não querendo,
ele inevitável e inexoravelmente acabará lá onde a predestinação o colocou,
no céu ou no inferno. E a livre vontade? E o livre arbítrio? Méritos
e deméritos? Virtude e pecado? Agostinho quer defender ambos os lados,
tanto a predestinação como o livre arbítrio. Ele sente a contradição
excludente entre predeterminação e liberdade, ele luta com a
contradição, tenta conciliá-la, tenta superá-la, mas, até o fim
de sua vida, não consegue fazê-lo. Este é o grande problema da filosofia
e da teologia de Aurélio Agostinho: Predestinação e livre arbítrio,
ambos dura e claramente afirmados, entram em contradição excludente.
Se existe predestinação, então o livre arbítrio é impossível; se existe
livre arbítrio, então predestinação é impossível. A contradição entre predestinação e livre arbítrio não
é uma questão isolada, como que um tumor localizado, que possa ser cirurgicamente
extirpado sem afetar as outras partes do sistema. Não, o problema da
predestinação e do livre arbítrio se espalha e penetra praticamente
por todas as partes da doutrina agostiniana. Ele reaparece, por exemplo,
na questão na presciência de Deus e na doutrina da graça eficaz. Se
Deus é perfeitíssimo, então ele sabe desde sempre todas as coisas, inclusive
os atos livres de nossas decisões. Ora, se, antes de nossa decisão atual,
antes de nós mesmos sabermos, Deus já sabe o que vamos decidir, pode-se
ainda, neste caso, falar de livre arbítrio? Como ser livre para escolher
entre as diversas alternativas, se desde toda a eternidade Deus já sabe
que vamos escolher esta alternativa específica e não as outras? Isso
não constitui uma contradição? O mesmo problema retorna na doutrina
da gratia efficax: A graça divina, que nos leva a fazer o bem
ao invés de fazer o mal, é eficaz em si e de per si, independentemente
de nossa vontade. Como, então, ainda falar de liberdade? Como decidir
livremente, se a graça eficaz já decidiu por nós? As contradições a
este respeito se acumulam. Agostinho, até morrer, lutou com o problema,
mas não conseguiu solucioná-lo. O beco sem saída
e a aporia sem solução podem ser expressos na linguagem do próprio Augustino,
linguagem sempre eloqüente e em certos casos, como nestes, exata e rigorosa:
A graça aniquila a vontade livre? De maneira nenhuma! A lei só pode
ser cumprida mediante a vontade livre! Mas se a graça é eficaz independentemente
da decisão do homem, para que serve esta decisão? No que influi? O segundo
e o terceiro capítulo do tratado De libero arbitrio bem como
muitos textos da maturidade e da velhice mostram como Agostinho lutou
honestamente com o problema, mostram também que não encontrou solução. Uma segunda objeção contra o sistema de Agostinho versa
sobre a doutrina do pecado original e da concupiscência. Segundo Agostinho,
o pecado original, que se propaga de homem para homem pela simples descendência
biológica, consiste na concupiscência. Concupiscência – vamos ser claros
- é aquilo que hoje chamamos de tesão e de prazer. Segundo Agostinho,
se há tesão e prazer numa relação, estamos fazendo renascer em nós o
pecado original cometido por Adão, estamos efetivando como pecado pessoal
aquilo que existe dentro de todos nós como pecado original. Isso nos
torna duplamente culpados: o pecado original como que renasce e é efetivado
como um novo pecado, desta vez, como um pecado pessoal, de responsabilidade
do indivíduo que o cometeu. – Esta doutrina agostiniana sobre a identidade
entre pecado original e concupiscência, entre pecado e sexualidade,
provocou estragos inimagináveis em nossa civilização. Afirmar a pecaminosidade
do prazer sempre e em todas as circunstâncias – inclusive no âmbito
do sacramento do matrimônio – é algo simplesmente imperdoável. Deveria
existir uma predestinação – que não existe! – que impedisse grandes
pensadores de afirmar semelhantes bobagens. A doutrina de Agostinho
sobre o pecado original provocou, ao identificar pecado e sexo, sofrimentos
e males durante mais de mil anos para milhões de cristãos. – Do ponto
de vista meramente intelectual, entretanto, penso que este erro, em
oposição ao que foi mencionado na primeira objeção, poderia ser expurgado
do sistema, sem que este sofresse mudanças estruturais. Como a questão
que aqui nos ocupa versa primeiramente sobre o conceito de Absoluto,
podemos considerar este ponto da doutrina agostiniana como algo que
deve e que pode ser corrigido e consertado. A terceira grande objeção gira em torno de um tema bem
mais sutil, mais difícil, cheio de meandros intelectuais, mas que me
parece constituir-se na mais importante de todas as questões que levantamos
a respeito do sistema de Aurélio Agostinho. Na filosofia de Agostinho,
como nas filosofias neoplatônicas de Plotino e Proclo, o sistema é estritamente
circular. A primeira parte do sistema, em Agostinho, é constituída por
Deus uno e trino antes de criar o mundo; o que depois será chamado de
natura naturans. A segunda parte do sistema é a Natureza, a natura
naturata; aqui estamos incluídos todos nós, inclusive e principalmente
– lá bem no começo - Adão e Eva e o pecado original, ou seja, a natureza
decaída. A terceira parte do sistema é a síntese e a conciliação entre
a primeira e a segunda parte:
núcleo do sistema
em Plotino é o Uno, que também é chamado de divino. Do Uno emerge o
Nous, que é a presença intelectual e consciente do Uno em face de si
mesmo. Do Nous emerge, então, a Alma do Mundo. Na Alma do Mundo fica
visível a doutrina neoplatônica sobre a gênese das diferenças, especialmente
sobre a gênese de coisas menos perfeitas que o próprio Uno. À medida
que se afastam do Uno e do Nous, os seres vão perdendo unidade; ao perder
unidade, perdem também perfeição. Ou seja, quanto mais longe estivermos
do Uno, mais imperfeitos e carentes somos. É por isso que devemos, num
movimento circular, voltar ao Uno. Só assim, voltando à perfeição da
primeira parte do sistema, é que nós homens, habitantes da terceira
parte do sistema, podemos adquirir perfeição. O êxtase neoplatônico,
que depois entra nos místicos cristãos e influencia poderosamente algumas
correntes do cristianismo, consiste exatamente neste retorno da terceira
à primeira parte do sistema. A terceira parte do sistema se completa
no retorno à primeira parte. – Em Proclo, a estrutura do sistema é semelhante,
só que no centro temos, ao invés do Uno, o Universal. O que se afasta
do Universal, e na exata medida deste afastamento, vai ficando particular
e imperfeito. O homem que almeja a perfeição deve, portanto, retornar
ao Universal do qual originariamente saiu. Também aqui a terceira parte
é a operação sintética do retorno a si mesmo, da conciliação entre o
começo e o fim do sistema. A terceira parte do sistema obedece à lei
do distanciamento: Quanto mais distante, menos perfeitas são as coisas.
Agostinho, Plotino e Proclo – cada um à sua maneira –
colocam um problema especulativo extremamente sério. Se os habitantes
da segunda parte do sistema, como nós homens o somos em Agostinho, na
medida de nosso distanciamento do centro, somos sempre afetados por
imperfeição; se a busca da perfeição consiste exatamente no fechamento
do círculo dialético, no retorno ao começo, ou seja, na terceira parte
do sistema, que é a conciliação entre Deus e a criatura, entre a natura
naturans e a natura naturata, então surge o problema: Não
existem aí dois Deuses? O primeiro Deus é obviamente a primeira parte
do sistema; o Deus uno e trino antes de criar o mundo em Agostinho,
o Uno em Plotino, o Universal Em primeiro lugar, é preciso deixar bem claro que não
se trata aqui de dois Deuses que sejam completamente distintos. Pelo
contrário, o núcleo duro de ambos é exatamente o mesmo. O Deus uno e
trino, individual, fechado sobre si mesmo, da primeira parte do sistema,
que é a tese, está contido na terceira parte do sistema; a tese foi
aufgehoben, foi superada e guardada na síntese. Foi superado
o quê? Foi guardado o quê? Foi guardado tudo que de positivo se diz
no Deus uno e trino. Foi superada a oposição excludente entre ele, o
Criador, e a natureza criada; foi superada a oposição excludente entre
tese e antítese. Na terceira parte, que é síntese e conciliação, Deus
Criador e a natureza criada são conciliados e voltam à unidade. Não
se trata, portanto, de dois Deuses, mas de um mesmo Deus em dois estágios
dialéticos diferentes; uma vez tético, outra vez sintético. Até aqui
nenhum problema maior nesta grandiosa visão do Universo que Agostinho
e os filósofos neoplatônicos constroem em seus sistemas. Como Hegel
diz A quarta objeção
é uma continuação da terceira. Aceitemos a explicação acima dada de
que o mesmo Deus se apresenta uma vez – na tese – como algo individual,
sozinho, fechado sobre si mesmo, uma
outra vez – na síntese – como um universal concreto, um coletivo, no
centro do qual está o mesmo Deus uno e trino da tese, só que agora como
o Deus que traz e acolhe dentro de si os homens e as coisas da natureza,
divinizados pela graça e pela redenção, o Deus que contém dentro em
si a totalidade do Universo. Aceita esta tese, surge a pergunta: O Deus
tético é mais pobre e menos perfeito que o Deus da síntese? Se a resposta
for sim, então o Deus uno e trino da primeira parte do sistema não é
perfeito. Algo lhe falta. A Natureza, por ele criada como segunda parte
do sistema, vai lhe acrescentar algo que ele antes não tinha. Sendo
assim, o Deus uno e trino do começo do sistema continua sendo o Deus
cristão? – Deixemos esta pergunta no ar, por enquanto. Voltaremos a
ela, quando tratarmos de Hegel e do sistema que estamos aqui propondo. A quinta objeção é de caráter não especulativo mas sim institucional: Este Deus da terceira parte do sistema, como foi acima descrito e determinado, não instala um panteísmo ou, ao menos, um panenteísmo? A síntese acima descrita entre o Deus Criador e a Criação, entre a natura naturans e a natura naturata, não implica que Deus é tudo e que tudo é Deus? Mesmo que se diga que isso ocorre por força da redenção e da participação na natureza divina mediante a graça, não temos aí um tipo de panteísmo ou de panenteísmo? Este Deus que acolhe todo o Universo em seu seio não é um Deus panteísta? Ou, ao menos, panenteísta? – Esta quinta objeção só é objeção em teologia, isto é, quando se pressupõe como proposições filosoficamente verdadeiras o que segue das condenações feitas por concílios e papas contra determinadas concepções de Deus. Isso é teologia, não é filosofia. Lembremos, entretanto, que Johannes Scotus Eriugena, o grande elo de ligação entre o sistema de Agostinho e a grande filosofia e teologia medievais, ele mesmo fiel discípulo de Agostinho, foi condenado por suas tendências panteizantes. – Para começo de resposta, é preciso definir panteísmo e panenteísmo. Panteísmo, segundo o dicionário de Aurélio, é a doutrina que afirma que “só Deus é real e que o mundo é apenas um conjunto de manifestações ou de emanações”, ou, na formulação oposta, “a doutrina segundo a qual só o mundo é real, sendo Deus a soma de tudo quanto existe” [8] . Panenteísmo, segundo o mesmo Aurélio, é um “sistema filosófico que vê todos os seres em Deus” [9] . Percebe-se, pelas
definições dadas, que todo cristianismo medianamente ancorado em suas tradições bíblicas e patrísticas tem que ser caracterizado como sendo panenteísmo. Qual cristão nega – ou poderia negar - que é preciso ver todas as coisas em Deus? Percebe-se, no entanto, que o termo panenteísmo foi criado com a finalidade específica de fugir das condenações eclesiásticas católicas, protestantes e judaicas. O termo panenteísmo a mim, me soa muito bem e me parece expressar bem aquilo que Agostinho e muitos outros, inclusive Schelling, Hegel, Teilhard de Chardin e eu próprio, dizemos sobre o Absoluto na terceira parte do sistema. - Mas voltemos ao problema de forma filosófica. É certamente errado dizer que o Deus uno e trino, fechado sobre si mesmo, é um Deus panteísta. Mas não é isso que se afirma; a acusação é outra. A acusação de panteísmo dirige-se sempre contra o Deus da terceira parte do sistema, contra o Deus da Jerusalém Celeste. Scotus Eriugena, Giordano Bruno, Espinosa, Fichte, Schelling, Hegel, Goethe, Pièrre Teilhard de Chardin e muitos outros foram acusados de panteísmo porque no Deus da terceira parte do sistema “todas as coisas estão contidas”, ou porque “todas as coisas emanam de Deus”. Vê-se com clareza que a confusão a este respeito é grande. A condenação do panteísmo estaria correta se panteísmo significasse que as coisas do mundo são uma emanação necessária de Deus; esta acusação estaria correta se e enquanto ela se dirige contra o necessitarismo, a doutrina das emanações como um processo necessitário. Mas, tirante o necessitarismo, qual a objeção contra o panteísmo, se o entendemos de acordo com as definições de panteísmo acima dadas por um autor insuspeito, por um dicionário contemporâneo, como é o Aurélio? Se tomarmos a doutrina de Agostinho, de Johannes Scotus Eriugena [10] , de Nicolaus Cusanus [11] e as cotejarmos com as definições de panteísmo acima dadas, somos
obrigados a dizer que eles todos são panteístas. – Por
respeito à tradição das grandes religiões, abro mão do termo panteísmo
(que não considero antipático) e utilizo o termo panenteísmo, que, não
tendo sido condenado, manteve sua neutralidade conceitual. Nesta terminologia,
Agostinho e todos os grandes autores cristãos acima citados, inclusive
Hegel, Pierre Teilhard de Chardin e eu mesmo, somos panenteístas. Algo
de errado nisso? Penso que não. Muito pelo contrário. Parafraseando
Hegel: Poucas vezes o espírito humano se levantou tão alto. Esta quinta
objeção – panteísmo -, a meu ver, não é objeção nenhuma. 3. O ABSOLUTO Com Alberto Magno e Tomás de Aquino [12] a filosofia, que havia sido cristianizada por Agostinho,
sofre o tremendo impacto da redescoberta dos escritos
metafísicos de Aristóteles. A Lógica de Aristóteles, como sabemos, sempre
esteve presente na consciência filosófica do mundo ocidental, a Metafísica,
a Ética, a Política e a Estética, entretanto, embora fisicamente existentes
nas grandes bibliotecas – Alexandria, Constantinopla – como que desapareceram.
Até hoje não existe explicação plausível para este fenômeno. Como escritos
tão importantes de um pensador tão conceituado, como foi Aristóteles,
simplesmente desapareceram das discussões, sim, de toda a vida intelectual
do ocidente filosófico? Como isso pôde acontecer? Não o sabemos. Mas
sabemos, sim, como através dos árabes, já no século XIII, os escritos
aristotélicos voltam a ser conhecidos. Alberto Magno e Tomás de Aquino,
ao tomarem conhecimento da Metafísica de Aristóteles através de manuscritos
vindos da universidade árabe em Granada, redescobrem a filosofia do
Estagirita e, conscientes de sua importância, fazem dela a coluna vertebral
de um novo tipo de filosofia cristã. Ao lado do neoplatonismo cristianizado
por Agostinho surge, das mãos de Alberto Magno e do Aquinate, um aristotelismo
cristianizado. A dialética neoplatônica, com seu jogo de opostos e com
sua substância única em movimento circular, começa a ceder espaço e,
logo depois, vai sendo substituída pela análise aristotélico-tomista,
com seu movimento linear, com sua pluralidade de substâncias, com sua
causa incausada. A filosofia de Tomás de Aquino, no que concerne a Deus, é aristotelicamente simples e transparente. Aristóteles ensinava, tanto na Lógica como na Ontologia, que para não cair num processus ad infinitum, era preciso chegar a uma arkhé, a um começo que é princípio principiante mas não é, ele mesmo, principiado por outro princípio antes dele. Em Lógica, cada demonstração depende de premissas que, por sua vez, dependem de premissas a elas anteriores, e assim por diante. Para não haver um regresso infinito na cadeia de argumentação e de fundamentação – o que significaria que nem uma única argumentação seria fundamentada -, é preciso postular que exista como começo de toda e qualquer cadeia argumentativa um começo lógico, uma arkhé, que não precisa ser ulteriormente fundamentada. Este começo ou princípio fundante de todas as cadeias de argumentação é, segundo Aristóteles, o Princípio de Não-Contradição. Este princípio fundamenta todas as cadeias de argumentação e as legitima; ele mesmo não pode nem precisa ser ulteriormente fundamentado. Este princípio é fundante para todas as argumentações racionais e, quanto a ele mesmo, possui em si mesmo toda sua racionalidade: Ele não precisa nem pode ser fundamentado. Ele é um princípio fundante que não tem antes e fora dele nada que o fundamente, ele se basta a si mesmo. Ele é o lugar onde a pergunta “O que vem atrás? O que está fundando?” perde todo o sentido. – Qual a prova desta afirmação? [13] Qual a
justificativa deste postulado? Aristóteles e Tomás de
Aquino sentiram, em toda sua profundidade, a dimensão do problema e
a necessidade de uma justificação racional da arkhé. Aristóteles,
no livro Gama da Metafísica, faz seis tentativas, quase heróicas, para
demonstrar o Princípio de Não-Contradição. Mas demonstrar para quê?
Se o Princípio de Não-Contradição não pode nem precisa ser demonstrado,
como demonstrá-lo? Para que demonstrá-lo? O próprio Aristóteles não
estava tão seguro de que a justificação da arkhé não fosse necessária.
A argumentação, em meandros, do livro Gama da Metafísica é prova disso. Exatamente em paralelo com o raciocínio feito acima,
em Lógica, sobre a justificação das cadeias de argumentação corre, na
Metafísica de Tomás de Aquino, o argumento para demonstrar a existência
de Deus. Trata-se de uma análise regressiva tipicamente aristotélica,
com a mesma estrutura básica do raciocínio acima exposto sobre a seqüência
de apódeixis. Existem coisas contingentes; elas de fato existem.
Ora, contingentes são os seres que podem existir e podem, por igual,
não existir. Mas, estes seres contingentes para os quais aponto são
existentes. Logo, é preciso admitir uma razão ou causa, antes deles,
que justifique por que eles existem ao invés de não existir. Esta causa
– existente -, que explica a existência destes seres contingentes para
os quais aponto, é, por sua vez, contingente ou não. Se ela é contingentemente
existente, é preciso admitir, antes dela, uma causa que justifique sua
existência. E assim se remonta, indo para trás, toda a série de causas
contingentes, que são causantes mas também são causadas. Enquanto não
se chegar a uma causa não-contingente, não-causada, toda a série causal
continua sem explicação bastante. Só há explicação quando se chega à
primeira causa incausada, que é o princípio ontológico e o começo de
toda a série de causas, a arkhé inicial. Esta causa incausada
não pode ser contingente, senão remeteria novamente a uma causa a ela
anterior. A esta primeira causa incausada, necessária em sua existência,
absoluta porque não remete para nada que lhe seja ontologicamente anterior,
Tomás de Aquino chama de Deus, o Absoluto. Deus, primeira causa incausada,
necessária em sua existência, é condição ontológica de possibilidade
de toda a série de causas contingentes. Aí temos, numa teoria aparentemente
simples, o Deus de Tomás de Aquino e de todos aqueles que o seguem,
tomistas e neotomistas. Este Deus, continua Tomás de Aquino, afastando-se de
Aristóteles, é substância não só necessária mas também simples. Se Deus
fosse composto de ato e potência, ou de substância e acidente, ou de
matéria e forma, ele não seria necessário e não poderia ser o fundamento
ontológico último, a arkhé ontológica, de que precisamos. Este
Deus, substância necessária e simples, - continua o Aquinate - cria
por um ato livre de sua vontade o mundo em que vivemos. Deus é o criador,
a natureza é uma criatura, nós todos somos criaturas, fomos criados
pelo Deus, que é incriado, que é causa não-causada. – Tomás acrescenta:
Deus é perfeição perfeitíssima, completa, acabada, absoluta, porque
ele e uma substância sem acidentes, um ato puro sem nenhuma potência
que o restrinja, uma forma pura sem matéria que a constranja. Perfeição
perfeitíssima, ilimitada, infinita, eis o Deus de Tomás de Aquino. Mas como pensar uma perfeição perfeitíssima, infinita,
sem limites? O que não possui limite nenhum não possui nenhuma determinação.
Como, então, pensar um Deus que não possui nenhuma determinação? Ele
é um indeterminado vazio? Tomás responde que, de fato, primeiro afirmamos
uma perfeição de Deus: Deus é bom. Mas, logo depois, precisamos usar
a negação: Mas ele não é bom como os homens são bons, pois nele a bondade
não está limitada. Mas se primeiro afirmamos (via affirmationis)
e depois negamos (via negationis) os predicados de Deus, afinal
qual o predicado determinado e específico que pode ser a ele atribuído?
Tomás de Aquino, procurando sair do impasse de uma teologia meramente
negativa, tenta seguir o caminho indicado pelo Pseudo-Dionísio – que
ele chama de conhecimento por analogia – e afirma que predicamos a bondade
de Deus primeiro pela afirmação, depois corrigimos esta afirmação pela
negação, para finalmente dizer – por analogia – que Deus é superbom,
ou seja, é bom de uma maneira infinita, na qual a bondade não mais se
opõe às outras determinações. E aqui temos, já agora, a primeira grande objeção contra o Deus de Tomás de Aquino. A teoria tomista da analogia entis [14] , a rigor, não resolve nada, pois
determinações que não mais se opõem a outras determinações
são predicados totalmente vazios: Tais determinações que não se opõem
também não se diferenciam. Dizer, por conseguinte, que Deus é bom
não se opõe nem se distingue de dizer que Deus é justo, e assim
por diante. Tudo que se diz de Deus é apenas um predicado absolutamente
vazio de conteúdo, que não diz nada porque não contém (e não pode conter)
nenhuma determinação. O conceito de Deus do Aquinate revela-se, assim,
como um conceito totalmente vazio e sem conteúdo. A determinação daquilo
que é Deus, depois da afirmação e da negação iniciais, torna-se um conceito
que, por sua própria estrutura, não pode jamais possuir uma determinação.
Assim sendo, não podemos nem mesmo dizer com propriedade que Deus é
a primeira causa de toda a série causal. Como podemos atribuir a Deus
a determinação de ser causa, um conceito determinado, se Deus é um conceito
totalmente vazio? O conceito de Deus de Tomás de Aquino desemboca, assim,
em uma teologia estritamente negativa, ou, na linguagem de outra tradição,
na noite escura em que todas as vacas são pretas. Esta a primeira grande
objeção. Mas há uma segunda objeção contra o Deus do Aquinate
pelo menos tão séria como a primeira. Deus é uma substância simples,
não há e não pode haver nele acidente ou potência de qualquer tipo.
Assim sendo, o ato livre mediante o qual Deus decidiu criar este mundo
é absolutamente idêntico à substância divina. Ora, a substância divina
é necessária. Logo, o ato livre de criar deixa de ser livre – poder
ser e poder, por igual, não ser -, para tornar-se um ato necessário.
O ato livre de criação, no Deus assim pensado, jamais pode ser livre,
porque é, em si, tão necessário quanto a essência divina da qual ele
não se distingue. – A resposta usual dos filósofos neotomistas a esta
objeção, ao invés de resolver o problema, torna a contradição existente
na teoria ainda mais visível. O ato mediante o qual Deus decide livremente
criar este mundo seria, segundo estes autores, necessário ad intra
e contingente e livre ad extra. Deus, dentro em si, seria pura
necessidade, o ato contingente de escolha mediante o qual cria este
mundo determinado seria algo ad extra. Mas a questão permanece
sem solução e a contradição fica mais evidente: Como distinguir no ato
livre de criação, que está dentro da substância de Deus, uma interioridade
(ad intra) e uma exterioridade (ad extra)? Interior e
exterior são, no mínimo, aspectos. E a doutrina de Tomás de Aquino sobre
a simplicidade de Deus não permite que se façam distinções no que é
absolutamente simples. Mas, poderiam contra-argumentar os neotomistas,
a interioridade está dentro de Deus, a exterioridade está fora dele.
Neste caso a situação fica ainda pior. Pois a liberdade de Deus naquilo
que ela tem de importante, a saber, escolher dentre vários mundos possíveis
a serem criados, estaria somente fora de Deus. Deus, a rigor, seria
pura necessidade, e a liberdade de escolha vagaria, como um fantasma,
fora dele. As contradições, aqui, se acumulam, os problemas não resolvidos
se somam, e isso torna esta segunda objeção extremamente pesada, sim,
decisiva. Uma terceira objeção, tão pesada quanto a segunda, emerge
da doutrina de Tomás de Aquino sobre as relações entre Deus Criador
e as criaturas. Existem dentro de Deus, diz Tomás, relações reais, ou
melhor três relações reais, que são idênticas à substância divina e
por isso necessárias e eternas. São as três pessoas da Trindade. Existem
também relações reais das criaturas para com o Deus Criador. As criaturas,
isto é, todos os seres contingentes existentes no Universo são marcados
por uma relação de dependência causal para com Deus, o Criador. Mas
– e aqui o ponto chave desta objeção – Deus não possui nenhuma relação
real para com suas criaturas, nem relação causal nem relações reais
de qualquer outro tipo. Uma tal relação significaria sempre, segundo
Tomás de Aquino, segundo os tomistas e neotomistas, uma forma de dependência
e imperfeição, e, como Deus é perfeitíssimo, ele não pode ter tais relações
ad extra que sejam reais. A relação do Criador para com a criatura
seria, assim, uma relação tão somente pensada, um mero ens rationis.
– Como pensar racionalmente a relação causal do Criador para com sua
criatura apenas como um ens rationis? Como um ens rationis
– o Deus enquanto creante - pode atuar como uma verdadeira causa e produzir
um efeito? Como algo pode ser atuante, causante, producente, sem que
isso se concretize numa relação real? Pensar a causa causante sem nenhuma
relação real para com seu efeito parece ser simplesmente um non sense,
uma contradictio in adjecto. E mais. A objeção fica mais pesada
ainda, quando se procura pensar racionalmente a encarnação: Significa
isso que, quando Deus se faz homem
Isso significa que
quando se diz que Deus nos ama, estamos, a rigor, apenas dizendo que
existe amor real de nós para com Deus, mas não vice-versa, pois o amor
de Deus para conosco não é uma relação real e, sim, um ens rationis.
Também aqui as contradições se acumulam e ficam a exigir soluções que
sejam bastantes. Pode alguém admitir que o princípio cristão que afirma
“Deus ama os homens” significa apenas que nós homens temos, sim, uma
relação real de amor para com
Deus, mas que Deus não tem nenhuma relação de amor para conosco que
seja real? Dá para pensar, sem contradição, um tal Deus? A tentativa
de síntese filosófica feita por Tomás de Aquino, toda ela centrada sobre
o conceito de Deus acima exposto, face às objeções acima formuladas,
há que ser posta Olhando com certa distância e relevando as contradições
e as questões especulativas não resolvidas, percebe-se que este Deus
asim conceituado por Tomás de Aquino e dos neotomistas tem muito pouco
a ver com o Deus dos evangelhos, com o Deus de Agostinho e da tradição
neoplatônica cristã, como logo abaixo veremos. Este Deus tomista é,
antes, um Deus judaico. Ele não tem nome, dele não se podem fazer estátuas
ou representações, ele habita atrás nas nuvens, isto é, ele é transcendente
e apenas transcendente. Os neotomistas me desculpem, mas penso que o
Deus que propõem, além de cheio de contradições não resolvidas, é totalmente
judaico e muito pouco cristão. A encarnação, como pensá-la a sério,
se a relação de Deus Filho para com sua natureza humana não é algo real
mas apenas um ens rationis? Ou a união hipostática seria algo
real? Neste caso Deus teria relações reais ad extra, e a construção
se esboroa pelo outro lado, pois Deus, então, não seria simples. Mas,
sem a encarnação, este conceito de Deus deixa de ser cristão para ficar
um conceito judaico. Bem diferente é a situação em Agostinho e na tradição
neoplatônica cristã. O Deus de Tomás de Aquino está errado? Tomás de Aquino
está errado? O espírito decididamente ecumênico da Filosofia neoplatônica
que defendo não me permite dizer de um grande filósofo que ele está
errado. Como se vê claramente em Plotino, 4. O ABSOLUTO EM
HEGEL O Absoluto na filosofia de Hegel [16] , síntese da universalidade positiva de Agostinho e da teologia
negativa de Tomás de Aquino, está simplesmente em todas
as partes do sistema. Como em nenhum outro autor, o Absoluto na filosofia
neoplatônica de Hegel perpassa todo o sistema, permeia todas as argumentações,
marca as linhas de fuga de todas as perspectivas. Não fosse Hegel tão
objetivo, tão alheio a qualquer entusiasmo religioso, tão distante de
qualquer devoção sentimental ou arroubo místico, dele deveria dizer-se
que é o pensador religioso por excelência, o pensador que, mais que
todos os outros, soube encontrar Deus em todos os lugares, em todas
as suas manifestações e sob todos os disfarces. O sistema de Hegel,
entretanto, é racional, é objetivo, é seco. Há uma explicação para este
paradoxo: A religião em Hegel ficou tão universal, o Absoluto está de
tal maneira presente em todas as coisas que não há por que dar destaque
e privilegiar esta ou aquela forma de presença, pois todas elas são
religiosas. O sistema de Hegel é tão profundamente religioso, está tão
impregnado de Absoluto, a religião está tão onipresente que ela desaparece
como que por falta de contraste. Como Deus está em todos os lugares,
ele não está em nenhum lugar específico. Não há por que separar e dar
destaque especial a algo que perpassa tudo e tudo determina. Os temas
realmente importantes estão tão presentes e elaborados que não precisam
ser expressos em terminologia religiosa, que não precisam de destaque
sob a forma de religião. Religião é uma figuração do Absoluto, como
a Arte e a Filosofia o são. À diferença das religiões, como o judaísmo
e como o catolicismo neotomista, que separam o Absoluto do mundo, das
coisas e de nós homens, o sistema de Hegel encontra e expõe o Absoluto
em todos os pontos chaves do sistema. Todas as categorias da Lógica
são predicados que atribuímos ao Absoluto: O Absoluto é ser, o Absoluto
é nada, é devir, é estar-sendo-aí, é qualidade, quantidade, boa infinitude,
medida etc. O Absoluto é essência e aparência, é identidade, diferença
e contradição; o Absoluto é efetividade, ele é possibilidade absoluta,
contingência absoluta, necessidade absoluta, ele é a liberdade do conceito.
O Absoluto é conceito, é universal, particular e singular. O Absoluto
é vida, é conhecer, é a idéia absoluta. Mas o Absoluto também é Natureza
e, de maneira toda especial, o Absoluto é Espírito, é Eticidade, é Estado,
é o curso e o julgamento da História. É na terceira parte do sistema
– na Filosofia do Espírito -, que o Absoluto de Hegel – como em Agostinho
– adquire maior esplendor e riqueza; na idéia que, saindo de sua alienação
na Natureza e retornando à sua unidade, se reencontra consigo mesmo
como Espírito, lá está o Absoluto. Este é o espírito absoluto, este
o Absoluto em seu sentido pleno. O sistema de Hegel, como todas as filosofias neoplatônicas,
estrutura-se em três partes. Em Hegel, as três partes são a Lógica,
a Filosofia da Natureza e a Filosofia do Espírito. A Lógica trata de
Deus antes de criar o mundo; a Filosofia da Natureza trata do transbordamento
da Lógica que, saindo de dentro de si mesma, engendra a Natureza, dentro
da qual o Logos da Lógica fica como que alienado; ao sair da Natureza
e retornar à identidade consigo mesmo, o Logos da Lógica transforma-se
em Espírito e constitui a Eticidade, o Estado, o curso da História e,
finalmente, o julgamento da História. A figuração em que culmina o sistema,
o saber absoluto, contém, dentro em si, toda a riqueza do percurso que
se desenvolveu a partir do ser vazio do início da Lógica, passando pelas
figurações que adquiriu na Natureza e, depois, no Espírito. A última
figuração do sistema é o saber absoluto. Este saber é chamado de Absoluto,
porque ele é a totalidade em movimento, porque é o Universo vivente
e vivificante em sua totalidade circular. Ele é determinado como saber,
porque todos os seres e entidades, tudo que existe neste Universo, são
formas mais ou menos elaboradas de saber, isto é, de conhecimento. O
Universo inteiro, segundo Hegel, em todos os seus desdobramentos, é
vida, é conhecimento, é liberdade. Esta é a tese central do idealismo
objetivo de Hegel. Até as pedras, à maneira delas, são uma forma
– muito alienada, é verdade – de conhecimento, de um conhecimento que
saiu de si, perdeu-se na exterioridade e está como que à espera que
o movimento circular da dialética o faça retornar ao aconchego de si
mesmo, onde, então, volta a ser espírito. O Absoluto, no sistema de Hegel, está em toda parte, em todas as categorias e em todas as figurações (as figurações são na Filosofia da Natureza e na Filosofia do Espírito a contrapartida daquilo que as categorias são na Lógica, a saber, predicados do Absoluto; figurações, na Filosofia Real, são as formas sob as quais o Absoluto se manifesta). Todas as categorias e todas as figurações são formas de expressão – e de ocultamento [17] – do Absoluto. Em dois lugares do sistema, entretanto, o Absoluto
aparece de forma privilegiada, na idéia absoluta, última
categoria da Lógica, e no saber absoluto, última figuração da Filosofia
do Espírito e, assim, figuração final de todo o sistema. A idéia absoluta
é, de maneira toda especial, Deus, ela é o Deus antes de criar o mundo,
como na primeira parte do sistema de Agostinho. O saber absoluto também
é Deus, desta vez como o Deus no fim da terceira parte do sistema, como
o Deus que acolheu dentro de si e interiorizou todo o curso da História,
ou, usando os termos de Agostinho, como o Deus que é o centro da Jerusalém
Celeste. Temos aqui em Hegel, como em Agostinho, o mesmo Deus
em dois estágios dialéticos diversos. O Deus no estágio tético e o Deus
no estágio sintético. O primeiro, por absoluto e perfeito que seja,
é mais pobre em determinações; na primeira parte do sistema, as determinações
do Absoluto são apenas as categorias lógicas atemporais, que não incorporaram
e por isso não contêm a História. O segundo, o saber absoluto, contém
dentro em si – aufgehoben, superadas e guardadas – não só todas
as categorias lógicas mas também todas as figurações da Natureza e do
Espírito nas quais o Absoluto se expressou e concretizou. O Absoluto
de Hegel neste segundo estágio dialético, no saber absoluto, é idêntico
ao Deus da Jerusalém Celeste, Diferença grande há, no entanto, entre o Deus da idéia
absoluta, na Lógica de Hegel, e o Deus uno e trino antes de criar o
mundo, na primeira parte do sistema de Agostinho. O Deus uno e trino
de Agostinho é perfeitíssimo, é o bem supremo; a criação que engendra
a segunda parte do sistema ocorre por liberdade, por amor, porque o
bem é tão rico e exuberante que ele como que transborda e, ao sair de
si e de seus limites, se consubstancia como natureza criada. O princípio
platônico bonum est diffusivum sui é, aqui, a chave conceitual
que permite, em Agostinho, a compreensão do nexo entre a primeira e
a segunda parte do sistema, entre o Deus criador e a natureza criada.
Em Hegel, este nexo não está tão claro. Hegel, no fim da Lógica, no
capítulo sobre a idéia absoluta, também usa a expressão “a idéia deixa
a natureza sair de si em liberdade”; para ser mais exato: “a idéia,
absolutamente segura de si e repousando em si, liberta-se a si mesma” (dass die Idee sich selbst frei entlässt,
ihrer absolut sicher und in sich ruhend
[18]
): e assim esta idéia, que era lógica, se transforma
estas as expressões
ao pé da letra, não haveria nenhuma diferença relevante entre a idéia
absoluta de Hegel e o Deus criador de Agostinho. Mas a arquitetônica
de ambos os sistemas mostra que há uma diferença. A primeira parte do
sistema de Agostinho trata do Deus uno e trino e da criação num plano
claramente lógico-ontológico; Deus – o Deus da primeira parte - é ontologicamente
perfeitíssimo, e a segunda parte do sistema nada lhe acrescenta de novo,
nada lhe dá que ele já não tenha. O Deus da primeira parte se enriquece,
sim, mediante a passagem pela segunda parte; mas este enriquecimento
é apenas amor, é fruto do amor. E o enriquecimento de amor e por amor
não é algo que pressuponha uma carência ou deficiência de parte de quem
ama; este enriquecimento não torna rico quem antes era pobre, ele torna
ainda mais rico quem já era plenamente rico, ele é aquilo que Agostinho
chama de superabundância. Esta riqueza adicional, por se tratar de amor,
é um transbordamento em que o amante fica mais rico, não em si mesmo,
mas no outro: o amante enriquece, não em si mesmo, mas porque o outro,
o amado, fica mais rico. Assim, em Agostinho, Deus ao criar o mundo
fica mais rico, não por ser ainda imperfeito, mas porque sua perfeição
superabundante transbordou, ou seja, porque a Natureza e o homem ficaram
mais ricos. Em Hegel, a Lógica, primeira parte do sistema, - me parece
- não possui a riqueza da Natureza e do Espírito. As categorias, ao
serem ampliadas como figurações da Natureza e do Espírito, se enriquecem
e adquirem algo de novo, algo que elas antes não tinham. A Lógica de
Hegel, embora não seja uma lógica formal, não possui a riqueza que se
encontra na Filosofia da Natureza e, especialmente, na Filosofia do
Espírito. – Estou lendo Hegel de forma rigorosa demais? Talvez. Mas,
se a interpretação correta é esta que estou dando, então o Logos da
Lógica, ao alienar-se na Natureza e voltar a si mesmo como Espírito,
no começo, na primeira parte do sistema, é lógica e ontologicamente
mais pobre do que no fim do sistema. A idéia absoluta, na Lógica, nesta
interpretação, é menos perfeita que o saber absoluto, no fim da Filosofia
do Espírito. E, se isto, é verdade, o Deus da idéia absoluta, em Hegel,
é diferente do Deus da primeira parte do sistema, em Agostinho. Seria equivocado chamar a Lógica de Hegel de algo formal,
degradando, assim, a idéia absoluta a algo meramente formal. Em tal
interpretação – a meu ver, equivocada – a idéia absoluta da Lógica,
o Deus na primeira parte do sistema, seria meramente formal, o Deus
do saber absoluto seria a síntese, muito mais rica, do formal (Lógica)
e do material (Filosofia Real). O Deus do saber absoluto seria, ele
sim, semelhante ao Deus agostiniano da terceira parte do sistema, da
Jerusalém Celeste. Mas o Deus da idéia absoluta não poderia, nesta hipótese,
ser identificado ao Deus agostiniano da primeira parte. O Deus da idéia
absoluta precisa libertar-se, sair de si e engendrar a Natureza. Em
Hegel, não obstante o termo liberdade que ocorre no texto citado, o
processo é necessário e inexorável, ele é um notwendiger Fortgang
des Gedankens, “a marcha inexorável do pensamento”. – Em Agostinho
o mesmo processo, exatamente no mesmo ponto de articulação sistemática,
na passagem da primeira para a segunda parte do sistema, a palavra chave
é gratuidade, amor, superabundância. Há, portanto, uma diferença entre
Agostinho e Hegel que não pode ser relegada a um segundo plano. A primeira grande objeção contra Hegel refere-se ao próprio
método dialético. Hegel afirma que a contradição é o motor da dialética.
Deus, o saber absoluto, é, pois, fruto de uma longa série de contradições.
É, ele mesmo, o saber absoluto algo contraditório? - Como conciliar
esta doutrina sobre a contradição como motor da dialética, absolutamente
central na Lógica de Hegel, com a validade universal do Princípio de
Não-Contradição, princípio de toda e qualquer racionalidade? Com levar
o sistema de Hegel a sério, se ele, ao dizer, está sempre se desdizendo?
O problema da compatibilidade do método dialético com o Princípio de
Não-Contradição é uma questão que analisei e, penso eu, resolvi em outro
trabalho. Penso que o sistema de Hegel, por este lado, não pode ser
atacado. Pois, quando Hegel fala de contradição, ele quer dizer sempre
contrariedade. Se tese e antítese fossem realmente proposições contraditórias
(no sentido técnico do termo), uma seria verdadeira, a outra, falsa;
e toda a dialética – que pressupõe que tese e antítese são ambas falsas
- entraria
na síntese, como
não mudou nem o sujeito (o Absoluto) nem o quantificador (que é universal),
trata-se, no jogo dialético de tese, antítese e síntese, de proposições
contrárias e não de proposições contraditórias. Proposições contrárias,
entretanto, podem perfeitamente ser ambas falsas; nisso, novamente,
há unanimidade entre os Lógicos de Aristóteles até hoje. A dialética,
ao articular tese e antítese como duas proposições falsas, não contraditórias,
mas sim contrárias, não é mais atingida pelas objeções levantadas pelos
Lógicos. A dialética não nega o Princípio de Não-Contradição, pelo contrário,
nele se baseia. Esta primeira objeção, respondida plenamente como acima
foi mostrado, não é mais objeção, nem contra o método dialético, nem
contra o Absoluto de Hegel. A segunda grande objeção contra o sistema e o Absoluto
de Hegel refere-se ao necessitarismo que caracteriza o sistema e, como
conseqüência, refere-se a um conceito de liberdade que não permite a
livre escolha entre diferentes alternativas. Hegel utiliza o termo liberdade
com grande desenvoltura e – mais – coloca a liberdade como o centro
de seu sistema. A pergunta que se põe – e que muitas vezes foi de fato
posta - é qual o conceito de liberdade de Hegel. Liberdade em Hegel
sempre supõe a ausência de coerção externa; isto está perfeitamente
claro. Mas é preciso ir adiante e perguntar: A liberdade em Hegel é,
como em Espinosa, Corrigir o sistema de Hegel neste ponto não seria difícil.
Parece que Hegel – como Espinosa e Kant, entre os filósofos, Newton,
Laplace e Einstein, entre os físicos – não consegue conceber racionalidade
exceto como uma rede conceitual (causal) necessitária, que não tem furos
ou lacunas, e que por isso não permite nunca a existência de alternativas
contingentes; contingência, em tais teorias, é sempre tão somente um
déficit subjetivo e momentâneo de racionalidade que o progresso da ciência
fará desaparecer. – A evolução da própria física e, de maneira especial,
as Teorias dos Jogos (Game Theories) mostram claramente que racionalidade
pode e deve ser pensada de maneira diferente, de maneira que não só
a necessidade mas também a contingência sejam nela incluídas e conciliadas.
Um simples jogo de xadrez demonstra a possibilidade de conciliar movimentos
necessários (movimentos que seguem as regras sem as quais não há xadrez)
e movimentos contingentes (que podem ser assim mas podem ser também
diferentes, de acordo com as táticas e estratégias aplicadas). Espinosa
certamente nunca percebeu isso. Hegel, embora jogasse freqüentemente
xadrez, provavelmente nunca pensou nisso. Se Kant tivesse percebido
isso, não teria inventado a pseudo-solução de separar dois mundos, o
mundo fenomênico do determinismo causal férreo e o mundo dos númenos
onde reina a liberdade. - A segunda
grande objeção contra Hegel, a respeito do necessitarismo do sistema,
da eliminação do livre arbítrio e, conseqüentemente, da concepção necessitária
do Absoluto, revela-se procedente. Hegel, neste ponto – se estou correto
em minha interpretação – errou. O sistema hegeliano pode ser corrigido?
Penso que sim; aliás minha proposta, em outro capítulo deste mesmo livro,
é uma tentativa de reconstruir o sistema hegeliano, corrigindo este
erro. A terceira grande objeção contra a teoria do Absoluto em Hegel gira em torno do panteísmo ou panenteísmo. Vimos, já em Agostinho, que esta objeção precisa ser analisada com cuidado. Toda e qualquer boa teoria sobre o Absoluto tem que conter algumas, pelo menos algumas, migalhas de panteísmo; na realidade, penso que não se trata de migalhas, mas de bocados bem grandes. Hegel, como não podia deixar de ser, foi ainda em vida acusado por vários autores de defender com sua doutrina sobre o saber absoluto uma forma moderna de panteísmo. Os trabalhos de E. H. Weisse (publicados em Leipzig, 1829), e de K. E Schubarth e L.A. Carganico (publicados em Berlim, 1829), que acusam Hegel clara e expressamente de panteísmo, foram respondidos pelo próprio Hegel em artigos que estão, hoje, publicados na edição Suhrkamp Werkausgabe da obra completa [20] . Hegel como polemista, na minha
opinião, deixa muito a desejar; a argumentação é tópica demais e, muitas vezes, apenas “ad hominem”. A verdadeira resposta de Hegel à acusação de ateísmo e de panteísmo – esta, sim, bem escrita, soberana, abrangente e muito esclarecedora – encontra-se no Zusatz do parágrafo 573 da Enciclopédia [21] .
Hegel, neste texto, faz una análise conceitual do problema que por seu rigor especulativo merece ser lida na íntegra. Ele distancia-se de diferentes formas de ateísmo e panteísmo que considera erradas - e diz sempre por quê, trazendo as razões filosóficas – e termina distinguindo sua doutrina sobre o saber absoluto de um panteísmo chocho (schaler Pantheismus [22] ). A leitura cuidadosa deste texto, no qual
o próprio Hegel distingue o exotérico do esotérico [23] , me leva a crer que, considerando as observações
que fizemos sobre Agostinho e face às definições ali
estabelecidas, Hegel deveria, como Agostinho, ser caracterizado de panenteísta.
Isso, dito por mim, não significa um erro ou um déficit, mas sim um
louvor. Um louvor a ambos, a Agostinho e a Hegel. Encerro estas considerações sobre o Absoluto em Hegel
com as mesmas palavras que ele disse sobre os filósofos neoplatônicos:
Raramente, II. A FUNDAMENTAÇÃO
DA ÉTICA 1. PROPOSTA DE UM SISTEMA NEOPLATÔNICO Os sistemas aristotélicos e tomistas,
ao adotarem a análise como único método de trabalho, cometem um erro
que vai viciar todas as tentativas de articular uma filosofia que seja
realmente universalíssima. Aristóteles e o Aquinate queriam, sim, uma
filosofia universalíssima, mas o método – o método determinante – que
adotam em seus sistemas, ao invés de conduzir a uma ciência que compreenda
e abarque todas as outras ciências, leva à dispersão, leva à multiplicidade
de ciências justapostas, leva à fragmentação do conhecimento e da razão.
O método dialético, na síntese, junta, congrega, concilia. O método
analítico abre, corta, separa, põe Conjugando ambos os métodos, como fazem os filósofos neoplatônicos (Agostinho, Cusanus, Espinosa, Schelling, Hegel), o sistema filosófico [24] é articulado em torno de uma
substância única, que, ao desdobrar-se plica por plica, é
passível de ex-plicação num sistema racionalmente uno. Na dialética
ascendente, parte-se da pluralidade das coisas concretas para subir,
degrau por degrau, conhecimento por conhecimento, teoria por teoria,
de forma sempre mais abrangente e universal até chegar à teoria geral
do Universo, aos primeiros princípios que regem todos os seres e entidades.
Na dialética descendente, faz-se o caminho inverso. Partindo dos primeiros
princípios, que são universalíssimos, é preciso reconstruir a Universo
em sua pluralidade variegada. Na Lógica, primeira parte do sistema,
é elaborado e formulado o primeiro princípio lógico e ontológico, que
se desdobra em três subprincípios (identidade, diferença e coerência)
e constitui as grandes leis que regem o Universo. Na Filosofia da Natureza,
segunda parte do sistema, esta ex-plicação se apresenta como
um longo processo de evolução, em que a partir do ovo inicial – explicatio
ab ovo -, isto é, a partir dos primeiros princípios, todos os seres
e entidades, todas as multiformes e variegadas coisas do Universo, dobra
por dobra, plica por plica, se desenvolvem. Na Filosofia
do Espírito, o Logos que já está na primeira parte, na Lógica, ou seja,
nos primeiros princípios, e que passou pelas figurações da Natureza,
na segunda parte, volta e reencontrar-se consigo mesmo na figura de
Espírito, que constitui a terceira e última parte. No espírito absoluto,
que é a última figuração desta terceira parte, que é síntese de todo
o sistema, todas as etapas de sua trajetória estão superadas mas também
guardadas. O espírito absoluto guarda e contém todas as categorias e
figurações naquilo que elas têm de positivo, ele superou tudo que apenas
dividia, apenas travava, era apenas empecilho. Começo, numa primeira parte, com
uma análise metalógica daquilo que é sempre pressuposto em todo e qualquer
discurso, a saber, a Identidade, a Diferença e a Coerência, ou seja,
o Princípio de Não Contradição, que, juntos, constituem o primeiro grande
princípio do sistema. Numa segunda parte, verifico o que acontece quando
o grande princípio metalógico, elaborado na primeira parte, é traduzido,
com os três momentos que o compõem, para a linguagem das ciências da
natureza e é a estas aplicado. Na terceira parte, traço as linhas mestras
de uma Filosofia do Espírito, especificamente de uma Ética Geral, que
brota como que ao natural da primeira e da segunda parte.
1.1. METALÓGICA Coloco como começo, como fundamento,
de minha demonstração a proposição tautológica A = A . Poderia utilizar aqui qualquer outra tautologia, como B = B, ou Sócrates = Sócrates, Universo
= Universo etc. Interessa, aqui, ao argumento a tautologia perfeita,
pois a proposição tautológica é sempre e necessariamente verdadeira.
Ninguém jamais discordou disso, ninguém consegue pôr isso O Princípio da Identidade, assim
formulado, é sempre verdadeiro e pressupõe como condição necessária
de sua possibilidade dois elementos que estão nele contidos de maneira
implícita. A identidade simples do A
e a iteração deste A, de
sorte que possamos colocá-lo uma vez à esquerda, a outra vez à direita
do sinal de igualdade. Podemos iterar novamente a operação toda, construindo
assim a série A = A = A ... Explicitando os elementos
necessários nele contidos, o Princípio da Identidade se desdobra, pois,
em três subprincípios: identidade simples, identidade iterativa, identidade
reflexa. PRINCÍPIO DA IDENTIDADE - Identidade simples: A - Identidade iterativa: A, A,
A ... - Identidade reflexa: A = A O Princípio da Identidade, que
eu saiba, jamais foi por alguém negado, pois quem o pretende negar sempre
o pressupõe de novo. A identidade simples e a identidade iterativa são
condições necessárias de possibilidade da proposição tautológica e possuem,
portanto, igual verdade e necessidade. Este é o primeiro subprincípio
da Metalógica de toda e qualquer linguagem. O segundo subprincípio da Metalógica
diz que, além do A, identidade simples, identidade iterativa e identidade reflexa, há na linguagem
outras entidades como o B, o C, o D..., como a disjunção, a conjunção,
a implicação etc., como as varáveis lógicas. Há também, inarredável
e irremovível, o ato de fala. O segundo subprincípio diz apenas que,
além da proposição tautológica A = A, existe algo mais, uma alteridade,
uma diferença, que aparece sob a forma de signos semântico-lingüísticos,
como B, C, D... e de conexões sintático-lingüísticas, como implicação,
disjunção etc., como varáveis lógicas, bem como de atos de fala, a base
pragmática de toda e qualquer linguagem. Sem isso, não há fala, não
há linguagem, não há possibilidade de argumentação. O Princípio da Diferença
- assim o chamo - expressa também condições necessárias de possibilidade
de toda e qualquer fala que vá além da mera tautologia. Ele expressa
e explicita - e isto é aqui de grande importância - a necessidade do
ato de fala, que, embora em si contingente, é condição necessária de
possibilidade da linguagem. A necessidade lógica da proposição tautológica,
para ser expressa em linguagem, pressupõe sempre, como condição necessária,
a existência contingente de algum ato de fala. A necessidade, aqui,
pressupõe como seu fundamento a facticidade do ato de fala contingente.
Em outras palavras e com rigor ainda maior: A existência contingente
do ato de fala é condição necessária de possibilidade para que a necessidade
lógica da proposição tautológica venha a ser expressa PRINCÍPIO DA DIFERENÇA -Emergência
da alteridade: B, C, D... -outros
operadores lógico-semânticos (implicação, disjunção, etc.) -as
variáveis lógicas -o ato
contingente de fala (facticidade) Pergunta-se, agora, se esta diferença, se esta alteridade pode ser derivada de A por dedução rigorosa. Ou, em outras palavras: B, a diferença, está pré-programada em A, ou na série iterativa de A, A, A ... ou na tautologia A = A ? Muitas entidades podem certamente ser derivadas da tautologia, mas a pergunta aqui é dura e cabal: Pode-se deduzir toda e qualquer diferença existente no universo da tautologia inicial? Tudo, toda a Lógica, todo o Universo, todas as coisas, inclusive nosso ato contingente de fala está pré-programado na tautologia inicial? Que eu saiba, nenhum lógico jamais afirmou isso; para fazer Lógica são precisos, além da tautologia, outros axiomas, as variáveis e os atos de fala. Mas, quanto à natureza e ao universo, há, sim, na História da Filosofia, autores que pensavam poder deduzir tudo de um ou dois primeiros princípios. Platão, Fichte, Schelling e talvez Hegel podem ser aqui citados como defensores da tese de que tudo está pré-programado no primeiro princípio. O ovo inicial conteria, como implicatum, tudo o que depois dele se desenvolveria necessariamente como explicatum. A Filosofia seria a ciência que faz a explicatio ab ovo, que reconstrói a partir do ovo inicial, plica por plica, dobra por dobra, todo o desenvolvimento do Universo. Todo o universo com a multiplicidade das coisas e entidades que o constituem, inclusive nosso ato de fala, estaria assim pré-programado no primeiro subprincípio; quem conseguisse captar e decodificar esta programação inicial poderia predizer todos os acontecimentos que ocorreram, que ocorrem e que irão ocorrer no curso do desenvolvimento do universo. Temos aqui o determinismo radical e o necessitarismo total, que eliminam a contingência do sistema e tornam assim a liberdade de escolha impossível. Estes pensadores negam o Princípio da Diferença, pois toda e qualquer diferença seria apenas um ulterior e necessário desenvolvimento do primeiro subprincípio, que é a identidade. Repito a pergunta: Está tudo pré-programado no primeiro subprincípio? Ou existem entidades, seres, coisas, que não estão pré-programados e se constituem assim em diferença real, em alteridade verdadeira, em facticidade de um B que se opõe à necessidade do A = A e a esta não se deixam reduzir? Quem diz que tudo está pré-programado não precisa do Princípio da Diferença, mas fica com o ônus da prova: ele precisa deduzir realmente tudo, todo o universo, a partir de A = A . O Senhor Krug [25] , como sabemos, exigia de Fichte que deduzisse a pena com a qual ele
estava escrevendo. Isso é possível? Isso foi tentado; tentativas existiram,
mas há hoje entre os filósofos unanimidade sobre o fato de que todas
elas fracassaram. Além disso, temos hoje a demonstração feita por Goedel:
Foi demonstrado com exatidão e rigor que há, em qualquer sistema axiomatizado,
proposições verdadeiras que não podem ser nele deduzidas. Além do argumento
de Goedel, há a facticidade indedutível do ato contingente de fala.
O ato contingente de fala, se realmente dedutível, deixaria de ser contingente
e tornar-se-ia necessário; contingência e dedutibilidade não são co-possíveis.
Concluo, pelas razões expostas, que o Princípio da Diferença é verdadeiro
e como tal o introduzo, dando ênfase especial à facticidade do ato de
fala: pelo menos meu ato de fala, em sua facticidade contingente, não
está pré-programado no Princípio de Identidade, A = A, não é dele dedutível,
não é conseqüência necessária de um princípio necessário e necessitante. Em face da radical facticidade,
da existência contingente de meu ato de fala (e de tantas outras coisas
mais), concluí acima que nem tudo está pré-programado na identidade
primeira, sendo assim necessário introduzir como verdadeiro o Princípio
da Diferença, que para além do A, introduz um B, um C, um D etc. Observe-se
aqui que isto, a facticidade específica do ato de fala, não é mais algo
a priori, e sim algo a posteriori.
Aqui temos, numa análise metalógica dos atos de fala, no elemento pragmático
da linguagem, a raiz da contingência e da historicidade. Uma metalógica
que contemple a pragmática - e hoje não pode deixar de faze-lo - introduz
contingência e facticidade no sistema. Superamos com isso, como veremos
no final deste trabalho, a raiz mais profunda do erro sistêmico cometido
por Fichte, Schelling e Hegel. A diferença,
ou seja, a emergência do novo cria uma nova situação na qual vige o
Princípio da Coerência. Além da identidade tautológica do A = A, há
um B, um C, um D etc., que não são o A nem estão nele pré-programados.
Duas coisas podem, então, ocorrer. Pode ocorrer, primeiro, que um dos
pólos anule e elimine o outro, isto é, pode ocorrer que um dos pólos
seja verdadeiro e o outro seja falso. Aqui surgem e atuam as regras
lógicas de inferência, segundo as quais, por exemplo, se uma proposição
A (afirmativa universal) é verdadeira, a correspondente proposição contrária
E (negativa universal) é necessariamente falsa. Nestes casos, a diferença
que emergiu e se opôs à Identidade do A é logicamente eliminada; a emergência
do novo, neste caso foi extremamente fugaz, pois as regras de coerência,
face à verdade de A, eliminaram, com necessidade lógica, as proposições
a ela contrárias (E) e contraditórias (O). A coerência, neste primeiro
caso, se faz por eliminação de um dos dois pólos que entram Esta primeira maneira de restabelecer
a coerência é aquela que conhecemos e utilizamos na Lógica contemporânea:
a eliminação de um dos dois pólos PRINCÍPIO DA COERÊNCIA - eliminação de um dos
dois pólos opostos - introdução de novos
aspectos pela elaboração das devidas distinções Existem
outras proposições, outros princípios de Metalógica? Existem, sim, mas
aqui não precisamos deles; eles são introduzidos quando da elaboração
ulterior dos diferentes subsistemas lógicos. Sintetizando, os três subprincípios
são os seguintes: Subprincípios da Metalógica 1. Identidade
- simples A
- iterativa A,A,A ...
- reflexa A = A 2. Diferença o novo, o diferente B 3. Coerência
- eliminação de um dos pólos
- fazer as devidas
distinções Os três princípios metalógicos elaborados acima se imbricam, um com o outro,
e constituem o único e uno grande princípio da Filosofia; eles são,
como veremos, fundamento bastante para construir uma Filosofia da Natureza
e umd Filosofia do Espírito, especificamente de uma teoria geral do
dever-ser. O dever-ser é, aqui, introduzido e fundamentado
como o operador modal do Princípio da Contradição a ser evitada,
da contradição que deve ser evitada (ou, como diz Apel, das Prinzip des zu vermeidenden Widerspruchs). A questão que, em face
das posições de Apel, Habermas, Höffe e tantos outros, aqui surge é
a seguinte: Pode-se desta Metalógica ir direto para a Ética Geral, sem
passar por uma Filosofia da Natureza?
A Ética do Discurso faz isso. Habermas e Apel partem da contradição
performativa a ser evitada e constroem, de imediato, a Ética Geral,
introduzindo já aqui os princípios D e U. Não há, para eles, nenhuma
mediação através da Natureza, não há para eles nada que se interponha
entre a Metalógica e a Ética Geral. Mais, para eles o discurso filosófico
se concentra apenas em dois pontos, uma Filosofia da Linguagem e uma
Ética Geral. A Filosofia da Natureza para eles, bons kantianos que são,
desapareceu, o estudo da natureza é entregue às ciências empíricas,
à Física e à Biologia. Seja-me permitido discordar e fazer a mediação
através de uma Filosofia da Natureza. No projeto de sistema que proponho,
depois da Metalógica coloco uma Metafísica e uma Metabiologia, para
só depois chegar à Ética Geral, ou, na terminologia de Hegel, à Filosofia
do Espírito. Restabeleço assim a seqüência hegeliana: Lógica, Natureza
e Espírito.
1.2. METAFÍSICA A passagem da primeira parte do sistema, da Metalógica, para a segunda parte, a Natureza, sempre foi uma construção intelectual extremamente delicada, complexa e prenhe de graves conseqüências. Em Hegel, a última categoria da Lógica, a idéia absoluta, "deixa sair de si, livremente," a Natureza. Nas exatas palavras de Hegel: A passagem aqui deve ser entendida de tal maneira que a idéia se deixa sair de si mesma, segura absolutamente de si própria e repousando em si mesma" (das Übergehen ist hier vielmehr so zu fassen, dass die Idee sich selbst frei entlässt, ihrer absolut sicher und in sich ruhend) [26] . A Natureza, segundo
Princípios, para serem verdadeiramente
princípios, devem ser universalíssimos. Para serem universalíssimos,
os primeiros princípios devem valer para todas as coisas e entidades,
devem ser aplicados a todas as coisas, inclusive a si mesmos. Princípios
universalíssimos devem ser, pois, também aplicáveis a si mesmos, devem
valer de si mesmos. O único e uno grande princípio elaborado na Metalógica
é aplicável a ele mesmo? A resposta é decididamente positiva. O grande
princípio se aplica a si mesmo de forma geral e, moduladamente, a cada
uma de suas três partes, ou seja, a seus subprincípios. Quanto ao Princípio
da Identidade e ao Princípio da Coerência, não há problemas. A Identidade
é sempre idêntica a si mesma, a Coerência é sempre coerente consigo
mesma. O primeiro e o terceiro subprincípios são, como de imediato se
vê, auto-aplicáveis e podem, sob este aspecto, ser considerados como
momentos de um princípio universalíssimo. Mas, vale o mesmo para o segundo
subprincípio? Ou surge, aqui, uma antinomia lógica? O Princípio da Diferença
que emerge sem estar pré-programada na Identidade que a antecede, este
Princípio da Diferença é diferente de si mesmo? A Diferença é diferente
dela mesma? Se ela é diferente dela mesma, então, ela não é diferença
e, não sendo diferença, ela é identidade. Se ela é identidade, então
ela não é diferença: a diferença não é diferença e sim identidade. Este
é o primeiro lado da antinomia. O segundo lado da antinomia é o seguinte:
Mas, se a diferença é idêntica a si mesma, então, ela, por isso mesmo,
é diferença e exige ser vista e tratada como tal. A diferença é diferença
e não identidade. Este, o segundo lado da antinomia. Vê-se claramente
que a diferença, quando aplicada a si mesma, se torna uma antinomia
lógica estrita
[28]
. Temos aqui, no Princípio da Diferença,
exatamente o mesmo problema que Frege e Bertrand Russell tinham com
a classe vazia; temos o movimento incessante que nos joga da verdade
para a falsidade, de um lado da antinomia para o outro lado, sem jamais
parar. Não há por que se admirar. Qualquer princípio autoflexivo, se
e enquanto negativo, fica antinômico. O que não podemos, sem perder
a racionalidade, é ficar no vaivém da antinomia. Sabemos, desde Bertrand
Russell, que a solução para a antinomia consiste na distinção entre
níveis de linguagem
[29]
; engendrando novos níveis de linguagem, podemos e
devemos evitar a Impõe-se, agora, a pergunta: Quando
a Diferença é apenas antinomia? Quando, solução de antinomia? A resposta
é clara, certa e decidida: Se a multiplicidade de níveis ou aspectos
é engendrada, então a antinomia está resolvida; isso sabemos desde Bertrand
Russell. Se não é engendrada a multiplicidade de níveis, então não há
solução. Ficar na antinomia é, não apenas incômodo, mas também irracional.
Pois, desde sempre estamos, em nosso discurso real, fora da antinomia,
sabendo e aceitando a multiplicidade ínsita na diferença que permeia
nossos atos de fala e que os determina como contingentes e históricos.
A Diferença, além de ser um subprincípio do primeiro princípio,
é um fato real existente, ela é e existe como a realidade a partir
da qual construímos toda a Metalógica. Conclui-se que a Metalógica,
desde sempre, pressupõe uma Natureza, uma Natureza real e contingente
como nossos atos de fala
[30]
. A Se a segunda parte do sistema
se engendra a partir da primeira; se o único e uno grande princípio
com seus três subprincípios são verdadeiramente princípios que regem
todas as coisas, então também a Natureza tem que ser regida pelos Princípios
da Identidade, da Diferença e da Coerência. Os princípios têm que ser
os mesmos; isto é a priori. É isso que ocorre? É, de fato,
assim, a posteriori? Verificamos, olhando para a Natureza, a posteriori, pois, que é de fato assim.
Podemos, a partir dos três subprincípios
da Metalógica, construir de imediato uma Metabiologia. Pois, desde Charles
Darwin, praticamente todos os biólogos concordam em dizer que a Natureza
se faz e desenvolve segundo certos princípios. Quais os primeiros princípios
de uma tal evolução contingente e histórica? Se estamos corretos em
nossa visão, eles devem ser os mesmos que mapeamos na Metalógica. Coloquemos,
para verificar, os princípios da Metalógica e os de uma Metabiologia,
como os biólogos hoje a concebem, lado a lado. Disso resulta o seguinte
quadro de correspondências: METABIOLOGIA Subprincípios da Metalógica Princípios da Metabiologia 1. Identidade
- simples A indivíduo
- iterativa A, A, A ...
reprodução, família
- reflexa A = A espécie 2. Diferença o novo, o diferente B emergência
do novo, mutação
por acaso 3. Coerência
- eliminação de um dos pólos
morte = seleção natural - fazer as devidas
distinções adaptação = seleção
natural A passagem da Metalógica para as múltiplas Lógicas formais e para as Matemáticas se faz a priori pela introdução paulatina de novos axiomas lógicos que se somam aos três princípios metalógicos antes elaborados. Lógica formal e Matemática são ciências que trabalham de modo estritamente a priori, nelas não há facticidade nem existências contingentes. Nas ciências formais tudo que pode ser necessariamente é o que é. Aqui existem apenas os dois operadores modais clássicos, possibilidade e necessidade. O que é possível é necessário de maneira positiva, o que não é possível, o impossível, também é necessário só que de maneira negativa. A passagem para a Natureza, como vimos, não é assim. O movimento antinômico do segundo grande princípio, do Princípio da Diferença, é resolvido e superado pela introdução da multiplicidade fática de diversos níveis; a facticidade real, a existência contingente de diversos níveis é o elemento que permite que os três primeiros princípios deixem de operar no vazio, no vácuo, como uma engrenagem meramente formal, na qual a multiplicidade emerge de dentro da identidade para logo depois nela desaparecer de novo. Este foi o erro que Hegel cometeu e que nós, hoje, queremos todos evitar. A facticidade do ato de fala, que existe como algo contingente, é o elemento modal em que surge a Natureza. Determinada e entendida assim, a Natureza não pode nem deve ser uma ciência formal e a priori, como a Lógica e a Matemática. Sendo uma ciência que lida com fatos contingentes, que podem ser e podem não ser mas que de fato são, a Filosofia da Natureza tem que ser uma ciência parcialmente a priori, parcialmente a posteriori, na qual o surgimento e o desenvolvimento das coisas contingentes são entendidos e compreendidos como uma História Natural [31] . O curso do
O Princípio da Identidade, em
Metabiologia, fundamenta o indivíduo e, como Subprincípio de Iteração
marca profundamente toda a Biologia. Biologia explica os seres vivos,
e seres vivos são aqueles que possuem a incrível capacidade de reproduzir-se.
A reprodução, no âmbito macro, e a replicação no âmbito celular são
características absolutamente centrais da Biologia. Em nosso século
a Teoria do Caos Determinístico, iniciada por David Ruelle e Robert
May, e a geometria dos fractais, principalmente em Mandrebrot
[32]
, abriram espaços para Como passar da Metabiologia para
a Metafísica? A elaboração de uma Metafísica hoje ainda não está disponível,
porque os Físicos, como sabemos, ainda não conseguiram elaborar a grande
teoria sintética em que estejam compatibilizadas tanto a mecânica clássica
e a teoria da relatividade como também a mecânica quântica. Mas muitos
esforços são feitos nesta direção e a grande teoria, síntese da relatividade
e da mecânica quântica, ainda não está disponível mas já desponta no
horizonte. Se as teses acima expostas sobre Metalógica e Metabiologia
estão certas, as leis da Metafísica têm que ser as mesmas, a saber,
Identidade, Diferença, e Coerência. A mecânica clássica e a teoria geral
da relatividade, em sua concepção geral, apontam para o núcleo necessitário
da Identidade e da Coerência dura. As incertezas, a lógica e o cálculo
probabilísticos, as variáveis aleatórias, a vaguidade de situações caóticas
e difusas, típicos da mecânica quântica, tudo isso aponta para o Princípio
da Diferença. A Matemática do século XXI, diz
David Munford num artigo que faz o elenco dos problemas matemáticos
pendentes de solução - em livro publicado por autores conhecidos, como
M. A . Tiyha, V. Arnold, P.Lax e B. Mazur
[33]
-, deverá substituir a lógica clássica, núcleo duro
da
bastante encomiado, chama de Consilience. Sejam aqui citados, além de Wilson e de Witten, Ilia Prigogine [35] , Steven Kaufmann [36] , Richard Dawkins [37] , John D. Barrow [38] , David
Deutsch [39] , Lee Smolin [40] e tantos outros. Esta convergência marcante de pontos de
vista e esta coerência de estrutura e de princípios - este o sentido da
palavra do inglês antigo consilience
-, apontam para uma teoria geral da Natureza, que, se estão corretas
as teses acima de Metalógica e de Metabiologia, deverá girar em torno
de Identidade, Diferença e Coerência. 1.3. FILOSOFIA DO ESPÍRITO A passagem da Filosofia da Natureza
para a Filosofia do Espírito, ou seja, para uma Ética Geral, se faz
como que ao natural. Ao transliterar os três primeiros princípios da linguagem lógica, em que originariamente estão, para uma linguagem ética,
surge o seguinte quadro: Subprincípios da M-Lógica Princípios da M-Física Princípios
da M-Ética 1. Identidade
- simples A indivíduo homem
- iterativa A,A,A ... replicação, reprodução família, educação
- reflexa A = A espécie sociedade, cultura 2. Diferença o novo, o diferente B
emergência do novo,
criatividade do ato mutação
por acaso livre,
invenção, arte 3. Coerência
- eliminação de um dos pólos
morte=seleção natural
o mal - quando há
incoerência - fazer as devidas
distinções adaptação=seleção
natural o bem - quando há coerência O dever-ser, em sua estrutura,
foi introduzido e justificado já na Metalógica como a formulação universalíssima
do Princípio de Não-Contradição, da contradição a ser evitada. O dever-ser
já vale como lei na Metalógica e diz tanto aos filósofos analíticos
como também aos dialéticos o que fazer quando surgir uma contradição.
O mesmo princípio reaparece na Natureza como a lei de seleção natural,
que elimina os não-coerentes ou os obriga a fazer as devidas distinções,
no caso, as adaptações. Na Ética Geral este Princípio da Coerência surge,
de novo, como aquele dever-ser que nos diz o que deve ser feito e o
que não deve ser feito. O bem moral e mal moral são o que são por força
da coerência ou não-coerência do agente moral consigo mesmo, com o outro
eu, com o meio ambiente, com o Universo. A característica, pois, do
bem moral é a coerência universal. Se e quando a regra que determina
uma ação pode ser universalizada, isto é, se está em coerência universal,
então estamos fazendo o bem e não o mal. Kant tem razão, Apel e Habermas
têm razão: Universalização é o critério de eticidade. E é preciso que
esta coerência surja num discurso real e concreto, pois, como os homens
são contingentes e históricos, a coerência deve se realizar também nesta
realidade histórica concreta. Por isso e para isso tem que haver o discurso
real, no qual antecipando a situação ideal do discurso, buscamos o consenso.
Apel e Habermas, aqui, têm toda a razão. Só que, em oposição a eles, construímos
uma Ética que se apóia sobre uma Filosofia da Natureza, que por sua
vez se apóia sobre uma Metalógica que se baseia sobre um único e uno
grande princípio que se articula em três subprincípios. Não precisamos,
por isso, para além dos princípios U e D, de um Princípio G (Gründe), pois o dever-ser na teoria proposta já emerge de dentro da
Natureza. Há aí uma superação e uma conciliação dos núcleos duros do
naturalismo e do contratualismo. Família, Sociedade e Estado são não
só naturais como também contratuais. O contrato aqui surge de dentro
da natureza e a determina ulteriormente. Não há, entretanto, falácia
naturalista, porque o dever-ser não é ancorado apenas na Natureza e
sim na Metalógica. Além de dispensar o uso de um terceiro princípio,
o princípio G (Gründe), a solução proposta apresenta, em oposição à Ética do Discurso,
duas grandes vantagens: fundamenta com rigor as regras do bem-viver
(des guten Lebens) e serve de base teórica
para toda uma Ecologia. À guisa
de conclusão deste ponto, seja-me permitido dizer o seguinte: Apel e
Habermas têm toda razão no que dizem de positivo, não têm razão - me
parece -, quando excluem a Filosofia da Natureza do interior da Filosofia.
As controvérsias sobre a existência de um terceiro princípio, Gründe,
além dos princípios D e U, apontam para este déficit. As dificuldades
que encontram em justificar regras do bem viver e em fundamentar a Ecologia
são prova disso. A solução aqui proposta, embora semelhante à Ética
do Discurso em alguns pontos, consiste numa transformação dos sistemas
neoplatônicos de Espinosa, Fichte Schelling e Hegel. O sistema neoplatônico
foi aberto, já na Metalógica, pela introdução da facticidade e, correlativa
a esta, pela introdução do dever-ser como Princípio da Coerência. O
sistema aqui proposto é claramente monista. Pergunta-se: Materialismo
ou Idealismo? Embora muitos materialistas possam, talvez, identificar-se
com tudo ou quase tudo que foi dito, prefiro chamar o sistema de idealismo.
Pois, antes da Natureza, há e vige uma Metalógica. Os três primeiros
princípios, Identidade, Diferença e Coerência, apontam para a idealidade,
para o dever-ser, não para o
que de fato é, para o mundo empírico. Não se trata, pois, daquilo que
hoje chamamos de materialismo empiricista. Estamos apresentando aqui
uma Filosofia idealista, um idealismo que foi corrigido, sim, que foi
"aggiornato", que ficou contemporâneo, que contém contingência,
que contém historicidade, que abre espaços para a liberdade e a responsabilidade,
que é um sistema que é parcialmente a
priori e parcialmente a posteriori. 2. O ABSOLUTO NO SISTEMA NEOPLATÔNICO PROPOSTO As linhas básicas acima esboçadas
são, como se vê, uma tentativa contemporânea de armar um sistema de
filosofia a partir de Platão, dos neoplatônicos e de Hegel. É evidente
que uma tal tentativa, hoje, precisa desde seu primeiro começo levar
em conta as grandes objeções que foram feitas contra os pensadores acima
referidos e seus sistemas. Ou seja, é preciso, já ao esboçar o desenho
da planta baixa do sistema, levar em conta uma série de questões: 1)
o problema da racionalidade necessitarista e o problema da contingência,
2) o problema da liberdade como livre arbítrio e o problema da verdadeira
historicidade, 3) o problema, que decorre do anterior, da impossibilidade
de deduzir de maneira meramente a priori as categorias e as figurações,
4) o problema do esmagamento do indivíduo pelo universal, 5) o problema
da conciliação da circularidade do sistema com a verdadeira historicidade,
6) o problema da verdadeira determinação do que sejam o saber absoluto
e a idéia absoluta. Todas as grandes objeções levantadas contra Hegel
têm que estar contempladas e resolvidas já no primeiro esboço do sistema,
já no primeiro Ansatz. Acredito que todas as questões referidas
foram consideradas no projeto de sistema acima exposto, pelo menos de
maneira implícita. Façamos agora um esforço de explicitação, voltando
a cada uma das perguntas feitas e verificando qual a solução que é proposta. A objeção relativa à conciliação
entre o método dialético e o Princípio de Não-Contradição, considero-a
plenamente resolvida: A dialética trata de opostos contrários e não
de opostos contraditórios; o termo contradição, em Hegel, significa,
contrariedade. Com isso desaparecem as dificuldades. 1) A objeção referente ao necessitarismo,
ou seja, à gradual eliminação da contingência atinge realmente a filosofia
do Hegel histórico, mas, a meu ver, pode ser totalmente resolvida numa
reconstrução corretiva do sistema. Em oposição a Newton, Laplace, Kant
e Hegel, que provavelmente nunca se deram conta de uma alternativa à
razão necessitária, sabemos hoje pela Teoria dos Jogos que é perfeitamente
possível admitir uma racionalidade na qual esteja conciliada tanto necessidade
como também contingência. A racionalidade do jogo de xadrez mostra claramente
que as jogadas necessárias (sem as quais o jogo não seria mais xadrez)
e as jogadas contingentes (fruto de táticas e estratégias) convivem
pacificamente umas com as outras, sim, são indissociáveis, são complementares.
Disso se conclui que, em princípio, pode haver uma razão em que necessidade
e contingência, conciliadas uma com a outra, se imbriquem, constituindo
assim uma totalidade que é em parte necessária, em parte contingente.
Isso, em princípio, é possível; uma tal racionalidade pode existir e,
pelo menos em jogos, ela realmente existe. Não será esta a razão que
vige no Universo? Não é esta a razão que deve ser elaborada e exposta
no sistema? Penso que sim. Penso, aliás, que Hegel chegou bem perto
disso, que Hegel errou por não ser suficientemente conseqüente consigo
mesmo. Quando, na segunda parte da Lógica, na dialética das modalidades,
Hegel afirma como síntese uma necessidade absoluta que é idêntica à
contingência absoluta, o que quer ele dizer? O que significa necessidade
absoluta, se ela é idêntica à contingência absoluta? Uma tal entitade,
afinal, é necessária ou contingente? A resposta de Hegel, em minha opinião,
só poderia ter sido uma única, aquela que ele realmente deu: a necessidade,
sendo absoluta, é a contingência absoluta. Mas o que isso significa?
Exatamente aquele tipo de síntese entre necessidade e contingência que
foi acima exposto a partir das Theories of Games, no jogo de
xadrez. Necessidade absoluta, em Hegel, se e enquanto ela é sempre idêntica
à contingência absoluta, nunca pode ser pensada como a necessidade da
lógica formal. Esta é sempre necessária: não pode não ser. A necessidade
que também é contingência é aquela síntese que vemos no jogo de xadrez:
Nela existem regras necessárias, mas nela existem também movimentos
contingentes, como existe também a necessidade fraca (deôntica) do dever-ser
que caracteriza as táticas e estratégias. A necessidade absoluta de
Hegel, que é sempre também contingência absoluta, só pode ser isso.
Entender a necessidade absoluta, em Hegel, como uma necessidade lógica,
no sentido moderno do termo, como uma necessidade que exclui contingência,
é negar o próprio conceito hegeliano de necessidade absoluta que é contingência
absoluta. – Por que Hegel não disse tudo isso que acabo de expor? Por
que ele não é claro? Por que ele fala de notwendiger Fortgang des
Gedankens? Como explicar os incontáveis textos Resolvida, da maneira acima exposta,
a questão do necessitarismo, estão também resolvidas as questões referentes
à existência da contingência, que constitui o espaço lógico-ontológico
em que surgem as alternativas dentre as quais o livre arbítrio escolhe
uma e não as outras. O tipo de racionalidade que foi acima exposto e
introduzido abre os espaços para a contingência como o espaço para o
exercício do livre arbítrio 2) Resta a ser resolvido o problema
da predeterminação causal do ato de livre arbítrio. O ato livre de decisão,
exatamente por ser livre, é contingente, isto é, pode ser assim e pode
ser diferente. O problema consiste no seguinte: se ele é de fato assim,
tem que existir antes e fora dele uma causa eficiente que explique por
que ele existe assim ao invés de não existir e de existir de outro modo;
ora, existindo uma tal causa eficiente anterior, o ato livre deixa de
ser livre por estar predeterminado na causa eficiente que o explica
e traz à luz da existência; logo, o ato livre não é livre e sim predeterminado.
– Esta objeção, antiga, clássica, causou muitas dores de cabeça a praticamente
todos os filósofos, de Agostinho até Apel e Habermas. Lembremos apenas
o asinus Buridani do célebre Reitor da Universidade de Paris:
um asno, colocado entre dois montes de feno exatamente iguais, por não
possuir livre arbítrio, por não poder decidir-se, vai morrer de fome.
A solução para o problema da predeterminação causal do ato livre de
decisão, só a encontramos num caminho, trilhado aliás pelo próprio Hegel,
no conceito de autocausação. É errado dizer que todo o efeito tem que
ter sempre uma causa a ele externa e anterior. O erro aqui consiste
nos termos externo e anterior. É claro que, havendo efeito,
tem que haver causa. Mas causa, nos sistemas neoplatônicos, é sempre
e primeiramente um movimento circular de autocausação, causa é antes
de mais nada causa sui. Ela não é externa, mas sim interna; ela
não é anterior, mas sim simultânea. Plotino sabia isso, Espinosa também,
Hegel explica e demonstra esta tese. A causa separada de seu efeito
é algo derivado, posterior; uma tal causa existe, sim, na Natureza,
aliás com muita freqüência. Mas esta causa exterior a seu efeito é algo
secundário, algo derivado. Causa, primeiramente, é um movimento circular
de autocausação. Só quando, por abstração, cortamos este círculo em
duas metades, é que causa e efeito se separam. Os neoplatônicos sabiam
disso; as ciências contemporâneas tiveram que redescobrir isso e introduziram
o conceito de auto-organização, que não é nada mais nada menos que a
formulação contemporânea da autocausação dos neoplatônicos. O problema
da prederminação causal do ato livre para os filósofos analíticos é
algo insolúvel; para os neoplatônicos, isso nem se constitui em problema:
O ato livre é uma forma de autocausação como muitas outras que existem
na natureza, como, por exemplo, a vida nos organismos, como os processos
de auto-organização que ocorrem inclusive na natureza inanimada. 3) Levar a contingência a sério
significa, num sistema filosófico, lançar os fundamentos para a verdadeira
historicidade. Um sistema necessitário, isto é, sem nenhuma contingência
tem que pensar a história como o perpétuo retorno do sempre mesmo. A
teia de ligações necessitárias permite, como na série numérica, andar
para frente e para trás. Num mundo totalmente necessitário, como por
exemplo Laplace o desenha, tudo se transforma numa teia atemporal em
que os processos são todos em princípio reversíveis. Não há, num mundo
necessitário, a flecha do tempo que impede a reversibilidade. A Física
de Newton e Laplace, necessitárias, não tem espaço para a flecha do
tempo, para verdadeira historicidade; todos os processos seriam, segundo
a mecânica determinística, reversíveis. Quando, então, na termodinâmica
se descobre a lei da entropia, surge, pela primeira vez depois de Newton,
a flecha do tempo como algo que constitui verdadeira historicidade,
ou seja, que não permite a reversibilidade dos processos. É com as pesquisas
de Prigogine – hoje, portanto - que se aprofunda a convicção de que
há uma flecha do tempo, que os processos no Universo não são reversíveis,
que há verdadeira historicidade e não apenas o eterno retorno do sempre
mesmo. Isso nos ensinam a Física e a Química contemporâneas. A Biologia,
cem anos antes, já nos havia ensinado a existência de verdadeira historicidade,
pois evolução por mutações ao acaso só pode existir onde há verdadeira
historicidade, isto é, onde a emergência do novo que não está pré-programado
no que vem antes introduz claramente a flecha do tempo. Mas nós filósofos
não havíamos levado a Biologia e a Teoria da Evolução de Charles Darwin
suficientemente a sério e, por isso, ainda hesitávamos quanto à verdadeira
historicidade. É mérito de Dilthey, de Droysen e de Heidegger ter posto
a historicidade como processo irreversível no centro das discussões
filosóficas. A entropia da termodinâmica e os sistemas dissipativos
de Prigogine vieram comprovar empiricamente a irreversibilidade do tempo,
a verdadeira historicidade. A admissão – que hoje todos fazemos – da irreversibilidade do tempo e da verdadeira historicidade tem pesadas conseqüências filosóficas, que muitas vezes passam despercebidas. A mais importante delas bate de frente contra uma antiga pretensão filosófica, a saber, a pretensão de deduzir a priori todo ou quase todo o sistema. Não só autores medievais, mas – sob a influência de Kant – todo o idealismo alemão brincou com a idéia de fazer uma dedução a priori de todas as coisas existentes no Universo. Fichte, em seu grande projeto filosófico, exposto no livro Über den Begriff der Wissenschaftslehre [41] de 1794,
desenha com clareza a estrutura de uma filosofia que, a partir do ápice
da pirâmide, de primeiros princípios, deduz (herleiten) tudo,
absolutamente tudo. O mesmo ideal de deduzir tudo a priori encontramos
na Filosofia da Identidade do jovem Schelling e na Ciência da Lógica
de Hegel, onde tudo que foi pressuposto (das Vorausgesetzte)
tem que ser reposto (setzen). O repor, aqui, o setzen, significa
exatamente esta dedução com a pretensão de
determinar a priori todo o Universo. Tudo isso caiu por
terra, tudo isso acabou. Sabemos hoje, inclusive pelas ciências naturais
como a Biologia, a Química e a Física, que esta pretensão de deduzir
tudo a priori é algo impossível. A flecha do tempo permite, sim,
que expliquemos um fenômeno para trás, não permite, porém, que façamos
uma dedução para frente. Laplace (e muitos outros) pensavam que podíamos
extrapolar tanto para frente como para trás. Conhecidas todas as leis
que regem o Universo e conhecida a situação do sistema em qualquer ponto
da linha do tempo, poderíamos – pensavam e diziam eles – extrapolar
tanto para frente como para trás. Se de fato não o podemos, diz Laplace,
é porque ainda não conhecemos todas as leis, ou porque nosso conhecimento
da situação do sistema no ponto do tempo que escolhemos não é suficientemente
completo. Erro, muito erro. Erro que embaraçou profundamente Kant e
todo o idealismo alemão, erro que continua a atormentar quem ainda não
entendeu o que significa historicidade verdadeira. A flecha do tempo,
isto é, a entropia e a irreversibilidade dos processos dissipativos
nos mostram um Universo em que existe tanto a tendência irreversível
para uma desordem sempre maior, a morte pelo frio, como a tendência
igualmente irreversível dos sistemas dissipativos, que, sem negar a
entropia, colocam ao lado dela a tendência para formas sempre mais complexas
de auto-organização. A tese determinista de um mundo sem história e
evolução foi amplamente refutada pelas próprias ciências naturais. Física,
Química e Biologia não são mais ciências atemporais, como a Lógica e
a Matemática. As provas empíricas impedem que vejamos o mundo, como
os gregos, como o perpétuo retorno do sempre mesmo. Estamos sendo chamados
a respeitar a verdadeira história com sua flecha do tempo, estamos sendo
chamados a olhar para o Universo como um processo em evolução contingente.
Nem tudo é conseqüência necessária de premissas anteriormente dadas;
existe a emergência do novo e a mutação por acaso. Por conseguinte, nós filósofos
não podemos mais acalentar a pretensão de construir o sistema filosófico
mediante uma dedução a priori. Os tempos mudaram. Novos conhecimentos
se impuseram. Ciências formais, como Lógica e Matemática, podem sim
ser deduzidas a priori; este é o método a elas adequado. As ciências,
entretanto, que tratam do mundo real em seu processo histórico de evolução,
como a Física, a Química, a Biologia e a própria Filosofia enquanto
Filosofia do Real, não podem mais trabalhar apenas com o método a
priori. A emergência do novo, que caracteriza o processo evolutivo
e marca a direção de flecha do tempo, obriga a todos, também a nós filósofos,
a utilizar também o método a posteriori. Só a posteriori
podemos constatar e dizer: eis algo novo que emerge. O método dialético,
portanto, numa filosofia que se queira contemporânea, precisa utilizar
tanto o a priori como o a posteriori. O sonho de uma dedução
a priori de todo o sistema, não era sonho; hoje o sabemos: era
um pesadelo. Nem o físico, nem o biólogo e muito menos o filósofo podem
hoje abrir mão do método que utiliza, conciliado um com o outro, tanto
o a priori como o a posteriori. Figurações e mesmo as categorias
da Lógica não podem, pois, ser objeto de uma mera dedução a priori.
O sistema dialético daqui para diante tem que saber conciliar a Fenomenologia
do Espírito e a Ciência da Lógica. Uma não existe sem a outra.
Tanto a Analítica com seu a priori como a Fenomenologia e a Hermenêutica
com seu a posteriori são submétodos, são elementos constitutivos
da Dialética como o método mais alto que contém e concilia ambos. Aqui
temos uma grande mudança, uma radical transformação, uma profunda diferença
entre o que estamos propondo e o que o idealismo alemão tinha como projeto
de sistema. 4) Resolvidos, em princípio,
os problemas da contradição, do necessitarismo, isto é, da contingência,
da autocausação do ato livre de decisão, há que se resolver ainda a
questão do esmagamento do indivíduo pelo universal e a questão de conciliar
a circularidade do sistema com a verdadeira historicidade. O esmagamento do indivíduo pelo
coletivo constitui uma objeção clássica contra os sistemas neoplatônicos,
desde a Politéia de Platão até Hegel e Karl Marx. Penso, entretanto,
que esta questão pode agora ser resolvida com relativa facilidade. A
ênfase exagerada no universal corresponde à ênfase exagerada – sim,
exclusivista – no método a priori. Ao corrigirmos o déficit existente
no método, ao tratar a priori e a posteriori como elementos
complementares, colocâmo-nos num novo patamar filosófico. O indivíduo,
agora, não pode ser esmagado, nem corroído, nem diluído. O universal
não reina mais sozinho e soberano. Voltamos, assim, à doutrina de Hegel,
expressa no começo da Lógica do Conceito, de que só conhecemos o individual
e o universal num movimento constante que do individual nos leva, pelo
particular, ao universal e, imediatamente, nos traz de volta, mediante
o particular, ao individual. Universal, particular e individual se determinam
mutuamente de tal maneira que não pode haver esmagamento de um pelo
outro. O que, na História real, aconteceu, o esmagamento do indivíduo,
foi evidentemente um erro cometido por quem não entendeu a dialética
hegeliana do conceito. 5) A mais séria e difícil questão
que encontro na reconstrução do sistema neoplatônico é a da conciliação
entre a circularidade do sistema e sua historicidade. Circularidade
é sempre atemporal, sem história. História verdadeira, que contém a
emergência do novo e é contingente, simplesmente não pode ser circular.
Abordemos a questão de frente, com toda a honestidade, sem rodeios. Todos os sistemas neoplatônicos
de Plotino e Proclo, passando por Agostinho, até Schelling e Hegel são
sempre circulares. A terceira parte do sistema desemboca sempre num
movimento de retorno à primeira parte. Em Plotino e Proclo, do Uno e
do Universal (primeira parte do sistema) se origina o Nous (segunda
parte), deste se origina a Alma do Mundo que dá vida e existência aos
homens e as coisas do mundo (terceira parte), que num movimento circular
retornam, pelo êxtase, ao Uno e ao Universal da primeira parte; para
nós homens o bem viver consiste exatamente neste retorno ao Uno e ao
Universal. Em Agostinho, o Deus uno e trino (primeira parte) cria o
homem e a natureza (segunda parte); como o homem em Adão pecou, Deus
para restabelecer a unidade e a harmonia quebradas se faz homem. Pelo
Homem-Deus (terceira parte) Deus se faz homem e é trazido para entre
nós; Deus é naturalizado, a natureza é divinizada; a Jerusalém Celeste
é o último estágio – Hegel diria, a última figuração – desta terceira
parte do sistema. Nela o fim se reencontra com seu começo, a criatura,
pela graça, fica partícipe da natureza divina: Deus em nós, nós Esta é aqui a pergunta central: O movimento circular do sistema implica num perpétuo retorno do sempre mesmo? Se o sistema, ao chegar ao fim, sempre e necessariamente nos põe de volta no primeiro começo, significa isso que estamos sempre de novo percorrendo o mesmo curso circular? Círculo não significa exatamente isso? Sem começo e sem fim, o movimento percorre sempre os mesmos pontos pelos quais já passou e pelos quais continuará sempre a passar; não é isso o círculo? – Ora, exatamente este concepção de movimento circular, de perpétuo retorno de sempre o mesmo, é absolutamente inconciliável com o movimento que mais acima chamamos de verdadeiramente histórico, que é contingente, que abre espaços para a emergência do novo, que – por ser novo - não é dedutível a priori, que – por ser contingente - não é previsível. Verdadeira historicidade nunca se repete num movimento circular, pois se o fizesse, o curso dos eventos tornar-se-ia necessário e absolutamente previsível. História e circularidade, como se vê com clareza [42] ,
Não podemos, entretanto, num sistema
filosófico que se queira moderno e atualizado abrir mão da historicidade
contingente, isto é, da flecha do tempo. As pesquisas das ciências de
ponta não no-lo permitem; o Zeitgeist, aliás, também não. Significa
isso que temos que abrir mão da circularidade? – Certamente que não.
Se abrirmos mão da circularidade, entramos em problemas insolúveis.
Na teoria da fundamentação, caímos no trilema de Münchhausen e ficamos
num beco sem saída. Na teoria de liberdade, perdemos o conceito de autocausação
e não conseguimos mais explicar o que é liberdade; perdemos também os
conceitos de vida e de auto-organização. Na teoria do espírito, não
conseguimos mais explicar o que é o bei-sich-sein da autoconsciência.
E assim os problemas se avolumam num crescendo. A conclusão é uma só:
também não podemos abrir mão da circularidade. O que fazer? Fazer o
quê? A única solução é conciliar a linearidade, sem qual não pode ser
pensada a verdadeira historicidade, e a circularidade, sem a qual problemas
centrais ficam insolúveis. Conciliar, sim, mas como? Avancemos com prudência, passo
a passo, pois o terreno é, se não movediço e traiçoeiro, ao menos desconhecido.
Terreno desconhecido, que por ninguém foi trilhado, exige cautela em
dobro. – A linearidade que há no curso de eventos históricos é chão
firme. A verdadeira historicidade, que permite a emergência do novo,
por isso mesmo é algo que nunca se repete, nunca volta ao mesmo lugar;
a flecha do tempo o impede. Isso significa que este movimento, que caracteriza
a historicidade, não pode ser circular. Agarremos, pois, esta tese com
firmeza: historicidade tem que ser linear e não pode jamais ser circular;
de maneira mais exata: não pode jamais ser perfeitamente circular. Por
outro lado, o sistema precisa da circularidade em todas as suas articulações
básicas. Como conciliar, então, linearidade e circularidade? Exatamente
como fazemos quando andamos de automóvel ou de bicicleta. No automóvel
não nos damos conta, pois estamos fechados na cabine. Pensemos, pois,
na bicicleta. Nós todos, ciclistas que somos, vemos diante de nossos
olhos a roda da bicicleta que é circular e que, quando andamos, gira
em círculo sobre si mesma e traça uma linha reta no chão. A roda de
nossa bicicleta é um círculo e seu movimento é estritamente circular.
No entanto, a roda e seu movimento circular se efetuam sobre a superfície
linear da rua. A roda circular gira sobre si mesma em círculo, a bicicleta,
porém, movimenta-se em linha reta para frente. Circularidade e linearidade,
aqui, no movimento da bicicleta, estão perfeitamente conciliadas. Um
movimento constitui o outro, um não pode ser pensado sem o outro. Logo,
ao menos na bicicleta, é possível conciliar no melhor sentido dialético
do termo circularidade com linearidade. E no sistema filosófico? É possível?
Não só é possível, é necessário que seja assim. Que existam na filosofia estruturas
atemporais – sem a flecha do tempo – é algo que ninguém jamais pôs A introdução da linearidade como
elemento indispensável para a estrutura da contingência do mundo nos
coloca, entretanto, um novo e grave problema. Pois a linha reta, enquanto
linearidade que se opõe à circularidade, pressupõe um começo e um fim.
Começo e fim, porém, quando postos num sistema filosófico, acarretam,
como sabemos, problemas insolúveis. Pois o Antes e o Depois
da linha reta não podem, por sua vez, voltar a ser lineares. A linha
reta pode e deve ser aberta para o futuro, sim, sem o que não haveria
contingência e historicidade. Mas ela tem que começar e terminar em
uma circularidade; numa circularidade que sempre de novo possibilita
e engendra linearidades contingentes. A metáfora da bicicleta tem que
ser, aqui, continuada e complementada. O ciclista, ao girar a roda da
bicileta engendra a linha reta no chão; mas essa linha não é geometricamente
reta, ela não pode ser tracejada ad infinitum para frente e para
trás. Isso nos levaria a um sistema da má infinitude. Num tal sistema,
a má infinitude conteria a boa infinitude, o que é um absurdo; o correto
é exatamente o contrário: a boa infinitude tem que conter, superada
e guardada, a má infinitude. Para que a metáfora funcione, temos que
pensar o ciclista andando em círculos que não coincidem exatamente uns
com os outros. A linha assim traçada é meio reta e meio torta: ela sai
do círculo, para dentro ou para fora, e sempre de novo volta para o
círculo. O ciclista, pois, anda
6) A roda girando é a primeira
parte do sistema que aqui proponho, ela é a Lógica hegeliana, por mim
corrigida, e a correspondente idéia absoluta, ela é o Deus uno e trino
antes de criar o mundo de Agostinho. A linha reta que a roda com seu
movimento circular traça no chão é a natureza histórica, somos nós,
a natura naturata, a segunda parte do sistema. E qual é a terceira
parte do sistema? A terceira parte do sistema é exatamente a síntese
da primeira com a segunda parte. Ela não pode ser pensada temporalmente,
ela não vem depois da segunda parte. A terceira parte do sistema, o
saber absoluto, a Jerusalém Celeste, é o eterno momento presente, autoconsciente,
é o saber que sabe e está consciente de que a linha reta é traçada por
um movimento circular. – Pergunta-se agora: O Absoluto é, então, o movimento
circular? O movimento circular, a roda em seu giro, é sim a idéia absoluta
que é a última categoria da Lógica, é o Deus uno e trino da primeira
parte do sistema. Mas a roda circular não é o sistema inteiro, é apenas
a Lógica, a primeira parte. A linha traçada é a segunda parte do sistema,
ela constitui nosso mundo em evolução histórica, em movimento não reversível
de tempo histórico. Qual, então, a terceira parte do sistema? Qual é
o saber absoluto e a Jerusalém Celeste? Evidentemente é o eterno momento
presente, é o saber que sabe e está consciente tanto da circularidade
da roda quanto da linearidade da linha concreta que está sendo traçada
pela roda. – Temos aqui, como aliás em Agostinho e em Hegel, o Absoluto
em dois estágios dialéticos diferentes: o Absoluto como tese é a circularidade
do sistema ainda sem historicidade contingente, o Absoluto como síntese
é o movimento circular, eterno momento presente, que engendra, constrói
e é, sem deixar de ser ele mesmo, a linha reta. O que contém o quê? Qual conjunto contém o outro? O círculo contém a linha reta? Ou é a linha reta que tem que conter o círculo? Esta segunda hipótese é impossível. A primeira hipótese – o ciclista que anda em círculos - explica como o círculo pode conter linearidades. A categoria que aqui nos serve é a síntese clássica utilizada pela velha e veneranda dialética. A síntese contém tese e antítese, sim, mas superadas e guardadas. Circularidade e linearidade são superadas se e enquanto se opõe. São guardadas naquilo que têm de positivo. O que é isso? O ciclista no movimento circular que contém linearidades. Tornando a metáfora mais abstrata: a síntese é o ponto inextenso – nem circular, nem linear -, que ao pôr-se em movimento, traça não só a circularidade da roda como também a linearidade do trajeto histórico. O ponto em movimento, este é a síntese entre tese e antítese. Este ponto tem que ser pensado como o eterno momento presente, porque assim ele resgata todo seu passado e antecipa todo o futuro. O eterno momento presente, inextenso e atemporal, guarda dentro em si – aufghehoben - toda as contingências da história que já passou [44] e as potencialidades do
futuro que está por vir. O ponto em movimento que é o eterno momento presente,
esta é a síntese do sistema. O Absoluto, então, em seu sentido
pleno, no sentido do saber absoluto e da Jerusalém Celeste é o ponto
em movimento, o eterno momento presente, que constitui ao mesmo tempo
linearidade e circularidade, tempo histórico e eternidade. O ponto em
movimento, eis o Absoluto em seu sentido pleno. 3. CONCLUSÃO O conceito de Absoluto no sistema
neoplatônico que está sendo aqui proposto apresenta semelhanças e dissemelhanças
com a idéia absoluta e com o saber absoluto de Hegel. Ambos os sistemas
são semelhantes e aparentados, é claro, e estão, assim, muito próximos
um do outro. Mas num ponto eles diferem profundamente, porque o de Hegel
é necessitário, o que estou propondo contém contingência e liberdade
no sentido contemporâneo do termo. Isso tem influência decisiva no conceito
de Absoluto de ambos os sistemas. Na filosofia de Hegel, a necessidade,
que perpassa todo o sistema, vincula de forma dura a idéia absoluta
com o saber absoluto. Afinal, o saber absoluto decorre necessariamente
da idéia absoluta, ele é apenas uma ampliação desta (Erweiterung).
Um não é o outro, mas o nexo entre ambos é, pela estrutura do sistema,
o de uma ampliação necessária. Desta maneira, em Hegel, a idéia absoluta
e o saber absoluto – Lógica e Espírito -, embora diferentes, estão muito
próximos. Ambos são, no fundo, necessários e estritamente circulares.
Idéia absoluta e saber absoluto, resumo e condensação máxima da filosofia
hegeliana, são conceitos que estão impregnados da necessidade do sistema
e são, como este, rigorosa e exclusivamente circulares. Isto significa
que – como Hegel mesmo diz -, ao chegarmos no fim do sistema, devemos
começar tudo de novo, pois o último elo da cadeia está ligado ao primeiro.
Isso significa que o enriquecimento havido entre a idéia absoluta e
o saber absoluto – o curso da História -, na segunda rodada se repete
exatamente igual ao que era na primeira rodada. E assim na terceira,
na quarta rodada etc. Com isso, todo o sistema se transforma no perpétuo
retorno do sempre mesmo e a verdadeira historicidade, que Hegel tanto
queria resgatar, é diluída pela lógica do sistema. Hegel queria, sim,
fazer uma filosofia que fosse Filosofia da História; o que conseguiu
fazer, no entanto, ao incorporar a História ao sistema, foi exatamente
o oposto. Ao entrar no sistema, a História perde sua historicidade contingente
e torna-se um nexo lógico-necessário. Ao invés da Lógica e da Ontologia
tornaram-se históricas, a História torna-se lógica. Este é o erro que
afeta o sistema e, assim, também o conceito de Absoluto de Hegel. O
Absoluto da primeira parte do sistema, a idéia absoluta, e o absoluto
da terceira parte, o saber absoluto, são como que irmãos muito parecidos,
porque a história que se desenvolve na segunda parte, não é contingente,
não é nada de novo, não é verdadeira historicidade mas sim desdobramento
necessário e ampliação da idéia absoluta. O Deus do começo e o Deus
do fim do sistema, em Hegel, são idênticos, porque a Natureza e o Espírito
não possuem espessura própria, nem lógica nem ontológica, onde possam
ser ancoradas a História e a contingência. No sistema que estou propondo
não é assim. A primeira parte do sistema consiste de um único princípio
formal que se desdobra em três momentos: identidade, diferença e coerência.
Pode-se, é claro, agregar em torno deste primeiro princípio muitas,
sim, quase todas as categorias da Lógica de Hegel. Fiz uma opção pelo
despojamento, reduzi a Lógica a seu núcleo duro, a um primeiro princípio,
para que sua estrutura básica ficasse mais clara e mais expressa. Em
Hegel, a primeira parte do sistema, que é a Lógica, desemboca na idéia
absoluta; no sistema aqui proposto, a primeira parte do sistema, a Lógica,
é um único princípio, formal, ainda vazio de ulteriores conteúdos fáticos,
que se desdobra e se desenvolve em três momentos, identidade, diferença
e coerência. A passagem da primeira parte do sistema para a segunda
parte faz-se através da resolução da antinomia que o primeiro princípio
- que é a primeira parte do sistema - contém. O momento da diferença,
nele contido, ao aplicar-se a si mesmo, aparece como sendo antinômico.
Ora, antinomias, só se resolvem pela distinção de aspectos ou níveis.
A antinomia ínsita no primeiro princípio exige, pois, que ele deixe
de ser apenas princípio formal, princípio principiante, e se torne também
material, ou seja, princípio principiado: a emergência de diversos aspectos
realmente existentes é o que resolve a antinomia da diferença. Isso
confere ao primeiro princípio um dinamismo todo especial; ele precisa
engendrar novos aspectos lógicos e ontológicos, sob pena de entrar em
colapso, se não o fizer. O primeiro princípio, para poder resolver a
antinomia nele contida, precisa sempre estar saindo de si e engendrando
algo outro, a saber, a natureza e, depois, o espírito, a natura naturata.
A esta necessidade de engendrar alteridades, que há no âmago do primeiro
princípio, primeira parte do sistema, não corresponde um necessitarismo
da natureza e do espírito, segunda e terceira partes do sistema? A resposta a esta
pergunta decisiva é dura e clara: Não. Por que não? Porque a antinomia
se resolve quaisquer que sejam os aspectos engendrados. A solução da
antinomia exige, sim, necessariamente, o engendramento de aspectos.
Mas esta necessidade não determina – como no sistema de Hegel – quais
os aspectos que serão engendrados. Estes aspectos podem ser assim e
podem ser diferentes. Quaisquer que eles sejam, a existência de aspectos
diversos por si só já resolve a antinomia. – Temos, então, por um lado,
a necessidade do primeiro princípio de engendrar novos aspectos; eis
o motor que move a Dialética, eis o motor que com energia e força primevas
move a evolução do Universo. Mas, a esta necessidade geral não corresponde a necessidade
determinada de que este aspecto tenha que ser assim, aquele outro aspecto
necessariamente tenha que ser assado; não, isso é contingente, isso
é história, história verdadeira. A passagem, pois, da primeira parte
para a segunda parte do sistema, do primeiro princípio para a natureza,
é necessária sob um aspecto (ela deve existir), mas é não-necessária
sob outro aspecto (os aspectos podem ser os mais variados possíveis,
eles não estão pré-programados no primeiro princípio). O primeiro princípio (identidade,
diferença e coerência) é absoluto? Ele é o Absoluto? Ele pode ser chamado
de absoluto, porque não é condicionado por nenhum princípio que seja
a ele anterior. Neste sentido bem estrito, o primeiro princípio pode
ser chamado de absoluto; se alguém quiser, de Absoluto. Mas este Absoluto,
incondicionado para trás – em análise regressiva -, é condicionado para
frente: ele precisa engendrar alteridades, senão implode. Se utilizarmos
a terminologia da Filosofia da Religião, este Deus – se é que ele pode
ser chamado de Deus – é absoluto, porque não há nada antes dele que
o condicione logicamente ou o efetive de maneira causal, mas ele é um
Deus que precisa engendrar outras realidades. Se essas outras realidades,
como estamos todo o tempo tacitamente supondo, são a natureza e o espírito,
então este Deus precisa criar a natureza e o espírito. A criação, aqui,
não é fruto de um ato livre, não é a superabundância do amor que transborda,
como no sistema de Agostinho, mas uma necessidade lógico-ontológica.
– Quanto ao Deus na terceira parte do sistema, quanto ao Absoluto na
terceira parte do sistema, não há grande diferença – eu diria até, não
há nenhuma diferença – com relação ao Deus
e à Jerusalém Celeste de Agostinho. Como filósofo não vejo como possa
ultrapassar os limites do que foi acima dito e exposto. O Deus, na terceira
parte do sistema que estou propondo, é – penso eu - igual ou, ao menos,
muito semelhante ao Deus agostiniano da Jerusalém Celeste; a segunda
parte do sistema, a natura naturata, em minha proposta é contingente,
como o é no sistema de Agostinho. A diferença, pois, entre o sistema
que estou propondo e o sistema de Agostinho está na primeira parte.
Eu estou propondo um princípio uno e trino, incondicionado, e, neste
sentido, absoluto, mas que é formal e que precisa engendrar alteridades
sob pena de entrar Mas, se alguém, cristão convicto,
defender o Deus uno e trino de Agostinho, perfeitíssimo, que, na superabundância
de seu amor, transborda e deixa livremente sair de si a natureza e o
espírito, há nisso uma contradição? Não vejo contradição nessa construção.
Se alguém, por motivos outros que o raciocínio filosófico estrito, houver
por bem defender – como religião - uma tal concepção de Deus uno e trino
antes de criar o mundo, penso que não está incorrendo em contradição
interna. Eu faria, apenas, duas observações críticas. A primeira refere-se
ao conceito de criação que de maneira nenhuma pode excluir o conceito
de evolução, daquela evolução que perpassa e molda tanto natureza como
espírito. A segunda diz respeito às razões argumentativas que levam
a admitir um tal Absoluto já na primeira parte do sistema. Estas razões,
que não são filosóficas – isto é, parece-me que não estão baseadas em
raciocínios sistemáticos cogentes -, convém que elas sejam explicitadas
como tais. Do que acima foi exposto seguem
duas conclusões fortes. Uma negativa, a outra positiva. A conclusão
negativa é de que o conceito de Deus das grandes religiões ocidentais,
nestes últimos séculos, está mais e mais se afastando daquilo que em
boa filosofia chamamos de Absoluto; lamentavelmente o pensamento mágico
está voltando a prevalecer sobre o pensamento racional, o Deus da magia
e da superstição está voltando a prevalecer sobre o Deus pensado pela
razão. A conclusão positiva é de que, com algum esforço intelectual,
é possível, sim, neste começo do século XXI, falar sensata e racionalmente
do Absoluto, ou seja, do Deus de nossa tradição, do Deus de Agostinho,
do Deus de Nicolaus Cusanus, do Deus de Schelling e Hegel, apontando
tanto erros como acertos. Dialética, quando verdadeira,
não termina nunca numa resposta e sim numa pergunta. A pergunta aqui
é: Se o Universo todo é, já agora, neste eterno momento presente que
resgata todo o passado e projeta todo o futuro, o Absoluto mesmo, então
todos nós, enquanto partícipes do Absoluto, somos deuses. Mas, se é
assim, por que a unidade lógica e ontológica do Universo como que se
esvai por entre nossos dedos? Por que a razão está fragmentada e ninguém
mais consegue ver a unidade que se constitui como totalidade em movimento?
Esta é a pergunta com que se encerra o que, embora pronto e acabado
como eterno momento presente, ainda está em curso como a não-identidade
e a dispersão que há no espaço e no tempo. Se o Uno é Múltiplo e o Múltiplo
sempre é também o Uno, por que estamos sempre nos perdendo no Múltiplo?
O poeta do morro talvez tenha encontra a solução quando disse: Quem
acha, vive se perdendo. [1] Cf. FUSTEL DE COULANGES. A cidade antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1981. [2] Existem, é claro, indícios de universalismo já no judaísmo antigo; já no livro Gênese Deus aparece como criador dos céus e da terra, como um princípio universalíssimo. Na história do judaísmo, apesar da predominância do particularismo, há sempre de novo algumas tendências universalizantes. Até no estado de Israel contemporâneo, em que o particularismo teológico se encarnou num estado nacional particular, existem por vezes lampejos de universalismo. [3] A verdade é o todo, dirá Hegel mais tarde. A universalidade de Deus corresponde à totalidade sem a qual não há verdade. [4] AURELIUS AUGUSTINUS, MIGNE, J.P. Patrologiae Cursus Completus. Patres Latini. Paris, vol. 32 – 47, col. 1835 ss. Especialmente De Trinitate, 9, 2, 2 ss.; vol. 42, col. 961 ss. De Civitate Dei, 8, 8; vol. 41, col. 233 ss., cf. tb. De Civitate Dei, 9, 23, 1 ss.; vol. 41, passim. [5] Etimologicamente substantia e hypóstasis significam a mesma coisa: o que está subjacente. Não conseguindo articular dialeticamente a unidade que é síntese de tese e antítese; não conseguindo conciliar a determinação da unidade com a determinação da tríade, os pensadores católicos da Antigüidade se dividiam entre os que acentuavam a unidade de Deus e os que davam ênfase às três pessoas. Assim surge a formulação que permitiu o consenso: Deus é uno em latim (uma substância) e trino em grego (três hipóstases).
[6]
PLOTINUS. Ennead. Edição bilíngüe, grego
e inglês. Loeb Classical Library,
[7]
PROCLUS, The Elements of Theology,
a revised text with translation, introduction and commentary,
by E. R. DODDS, [8] AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA FERREIRA. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2 ed. Rio de Janeiro : Editora Nova Fronteira, s.d., p. 1258. [9] Ibdem, p. 1256. Aurélio acrescenta aqui “Forma particular que deu ao panteísmo o filósofo alemão Krause (1781-1832). [10] Cf especialmente JOHANNES SCOTUS ERIUGENA. De divisione naturae. In: Patrologiae Cursus Completus, J.P.MIGNE, Paris, 1853, vol. 122, col. 439-1022. [11] NICOLAI DE CUSA. De docta Ignorantia. Die belehrteUnwissenheit. Ed. latim-alemão. Hamburg : Felix Meiner. 1977, 3 vol. [12] TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, 2.ed. bil. latim-português, R.COSTA / L.A. DE BONI, Caxias do Sul: ESR, Sulina, UCS, 1980, 11 vol.
[13]
Cf. CIRNE-LIMA, C. Dialética e liberdade – Razões,
fundamentos e causas. In: Veritas 43 (1998) p.795-816. [14] Minha análise, muitos anos atrás, do problema da analogia foi me conduzindo lentamente ao abandono do tomismo e à adesão à dialética neoplatônica. Cf. CIRNE-LIMA,C. Realismo e Dialética. A Analogia como Dialética do Realismo. Editôra Globo: Porto Alçegre, 1967. [15] Há uma solução em Tomás de Aquino, que não seja apenas verbal, para a assim chamada união hipostática? Penso que não.
[16]
HEGEL, G.W.F. Werke. (Ed. Theorie
Werkausgabe E. MOLDENHAUER / K. M. MICHEL), Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1971, 20 vol. [17] Também de ocultamento, pois a verdade é sempre o somente o Todo.
[18]
HEGEL, Werke. Ed. Suhrkamp,
vol. 6, p. 573. [19] Na Ciência da Lógica o sujeito lógico, sempre oculto no texto, está explicado e expresso no capítulo sem número Womit muss der Anfang der Wissenschaft gemacht werden? (cf. HEGEL, Werke. Ed. Suhrkamp, vol. 5, p. 65-79). O sujeito lógico é tudo aquilo que foi pressuposto (das Vorausgesetzte) – quando não se pressupõe nada, então se pressupõe tudo - e que precisa agora ser reposto pela ciência (Setzen). Esta totalidade, que é o Universo, é o sujeito lógico que está oculto no anacoluto inicial da Lógica (ibidem, p.82: Sein, reines Sein – ohne alle weitere Bestimmung).
[20]
Cf. HEGEL, Werke. Ed.
Suhrkamp, vol. 11, p. 390-466.
[21]
Cf. HEGEL, Werke. Ed. Suhrkamp,
vol. 10, p. 379-393. [22] Ibidem, p. 391. [23] Ibidem, p. 393. [24] Cf. CIRNE-LIMA,C. Dialética para Principiantes. 2 ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. Cf. tb. CIRNE-LIMA, C. Ética de Coerência Dialética, in: Veritas 44 (1999) p. 941-964; CIRNE-LIMA, C. Zu einer Analytik des Sollens, capítulo de livro organizado por F. Herrero e M. Niquet, no prelo.
[25]
Cf. KRUG, W.T. Gesammelte Schriften, 12 vol.
[26]
HEGEL, Werke. Ed. Suhrkamp, Wissenschaft
der Logik, vol. 6, p. 573.
[27]
Cf. a este respeito WANDSCHNEIDER,
D./ HÖSLE,V. Die Entäusserung
der Idee zur Natur und ihre zeitliche Entfaltung als Geist bei Hegel,
in: Hegelstudien 18 (1983) p.173-199.
[28]
Agradeço a E.Luft por ter me apontado a emergência,
neste exato lugar de meu raciocínio, de uma antinomia lógica. Agradeço
também a Thomas Kesselring pelas discussões, havidas há mais de uma
década, sobre este assunto, que à época ficaram inconclusas. Cf. sobre
o tema HEISS, R. Logik des Widerspruchs. Berlin/Leipzig: Gruyter, 1932. Cf. tb. KESSELRING,
T. Die Produktivität der Antinomie.
Hegels Dialektik im Lichte der genetischen Erkenntnistheorie
und der formalen Logik. [29] A theory of types é, em seu cerne, apenas uma distinção de níveis de linguagem.
[30]
Quando a solução para uma antinomia é apenas uma
construção lógica, sem que existam diferenças reais de níveis, toda
a estrutura antinômica fica circular e a antinomia, depois de percorrer
as etapas de sua circularidade, volta a seu começo meramente lógico,
continuando a ser, assim, um processo antinômico, ou seja, um processo
irracional. Os trabalhos de Blau mostram este ponto, embora ele não
se dê conta disso com clareza. Cf. BLAU, U. Die Logik der Unbestimmheitheiten
und Paradoxien. in: Erkenntnis 22 (1985) p.369-459.
[31]
Uma certa dose de casualidade (cf. mutação por
acaso) tem que ser admitida, pois a total ausência de acaso implica
um necessitarismo que exclui a contingência e, assim, a liberdade.
Outra questão consiste em saber se a mutação por acaso sozinha pode
explicar a velocidade com que a evolução se processa. Herman Weyl,
face à enorme improbabilidade de que o mero acaso provocasse, dentre
o número astronomicamente grande de possibilidades, a combinação que
permite a vida, postulou a existência de fatores imateriais, como
idéias ou planos de construção (cf. H. WEYL, Philosophy of Mathematics
and Natural Science, Princeton University Press, 1949). A maioria
dos cientistas recusou, à época, as sugestões feitas por Weyl porque
estas implicam a introdução na ciência de fatores imateriais. As tentativas
de resolver o problema, hoje, não implicam mais a postulação de fatores
imateriais (ou creacionistas); cf. E. LASZLO, The Whispering Pond.
A Personal Guide to the Emerging Vision of Science.
Element:
[32]
Para uma visão geral, cf. GLEICK, J. Chaos.
Making e New Science.
[33]
Cf. V.
ARNOLD et alii (editores). Mathematics
- Frontiers and Perspectives.
[34]
WILSON, E. O. Consilience. The Unity of Knowledge.
[35]
PRIGOGINE, I. The End of Certainty. Time, Chaos and the New Laws of Nature.
[36]
KAUFMANN, S. At Home in the Universe. The search for the Laws of Self-Organization
and Complexity. New York/Oxford:
[37]
DAWKINS, R. The selfish Gene. [38] BARROW, J.D. Teorias de Tudo. A busca da explicação final. Rio de Janeiro: Zahar, 1994, 292 p.
[39]
DEUTSCH, D. The Fabric of Reality.
[40]
SMOLIN, L. The Life of the Cosmos.
[41]
FICHTE, J. G. Fichtes Werke.
Ed. I. H. FICHTE, [42] Uma lista finita de números aleatórios, quando é repetida, deixa de ser aleatória. Isto é, quando se chega ao fim de uma lista finita de números aleatórios e se recomeça a contagem a partir do começo, entra-se em circularidade e elimina-se o elemento aleatório. Dependendo do tamanho da lista, um computador mais poderoso já na terceira ou quarta repetição pode engendrar um programa que tem menos bytes que o conjunto analisado de números, a saber, a lista finita multiplicada por três ou por quatro. A definição de aleatório, em informática, é de que a série de números não possa ser engendrada por um programa que seja menor ou do mesmo tamanho que ela mesma. A repetição da série de números originariamente aleatórios, num determinado momento do ciclo de repetições, torna a série conhecida e previsível, que, asim, deixa de ser aleatória. [43] Agradeço a meus colegas do GPI-Dialética, principalmente a E. Luft e Custódio Almeida, que, na reunião de maio de 2001 em Gramado/Canela, me alertaram para o modo como a metáfora da bicicleta – em sua primeira redação - estava claudicando. [44] Isto pode soar estranho num primeiro momento. Mas basta, como Agostinho diz, que olhemos para dentro para percebermos o fato de que em cada momento que vivemos estão presentes em nossa autoconsciência tanto as contingências de nossa vida temporal pregressa como também nossos projetos para o futuro. |