A FUNDAMENTAÇÃO DA ÉTICA E O  ABSOLUTO

                            

 

 

                                                                         Carlos Cirne-Lima (Unisinos, GPI-Dialética)

                                         

 

 

1. O ABSOLUTO

 

 

1. INTRODUÇÃO  -  OS DEUSES E O ABSOLUTO

 

 

Desde os primórdios de nossa civilização a fundamentação da Ética estava no centro de todo filosofar. A principal preocupação filosófica de Sócrates e de Platão trata do que é bom e do que é mau, do justo e do injusto. O pensamento crítico começa aí a dissociar a fundamentação da Ética do problema dos deuses, que desde os gregos até hoje para muitos, quando não para a maioria, é a fonte da moralidade. Este trabalho versa, por isso, também sobre os diversos conceitos de Deus, ou, em linguagem filosófica, do Absoluto.  É sobre estes ponto central de nossa cultura, que versam as reflexões filosóficas que aqui seguem. Vou analisar, primeiro, o conceito de Absoluto – e, portanto, de Deus – na estrutura da família grega antiga, isto é, nos primórdios de nossa civilização e em três sistemas filosóficos, apontando sempre para a fundamentação da Ética. Tratarei, em uma primeira parte, a) de Deus na família grega arcaica; b) tratarei do conceito de Absoluto nos filósofos neoplatônicos, principalmente em Aurélio Agostinho; c) do Absoluto em Tomás de Aquino e nos filósofos neotomistas; d) do conceito de Absoluto em Hegel.

 Na segunda parte deste trabalho, procuro articular de maneira especulativa  as partes do sistema que estou tentando desenvolver. Procuro aí apresentar minha teoria sobre a fundamentação da Ética, ou seja da passagem de proposições descritivas para proposições normativas.

 

Na família grega arcaica [1] deuses eram os antepassados já mortos, o pai, o avô, o bisavô, heróis de

 

muitos feitos e de muitas guerras. As pequenas estatuetas representando os antepassados mortos eram colocadas na beirada de pedra que cercava o fogo sagrado, que, roubado dos deuses do Olimpo por Prometeu, jamais podia apagar-se. Era este fogo, sempre ardendo na Hestia, centro da casa e da família, que tornava os homens diferentes dos animais: os animais comem os alimentos crus, os homens os assam no fogo da Hestia. Comer carne crua é característica dos animais selvagens, assar a carne no fogo roubado dos deuses, antes de comê-la, esta é a característica dos homens. As estatuetas dos deuses domésticos, os heróis antepassados, eram testemunhas protetoras deste começo de nossa civilização. Os heróis antepassados, deuses que eram, recebiam sempre a homenagem do primeiro bocado de comida e do primeiro gole de bebida. Partia-se o pão e o primeiro pedaço era posto nas chamas para satisfazer a fome e atrair as bênçãos dos deuses domésticos. Ao beber, o primeiro gole tinha que ser derramado no chão, em frente ao fogo da Hestia, para saciar a sede dos antepassados mortos. Até hoje, muitos de nós, dois mil e quinhentos anos depois, descendentes da civilização greco-romana, ao beber, fazemos a libação (libatio) e oferecemos o primeiro gole “para o santo”. Não sabemos mais que santo é esse, mas não esquecemos jamais de fazer o gesto de derramar, dizendo baixinho “O primeiro gole é para o santo”. Não sabemos mais o sentido do que fazemos, mas continuamos a venerar os deuses domésticos tão importantes para nossos ancestrais remotos. Eis nossos primeiros deuses, deuses que até hoje honramos e reverenciamos: o pai, o avô, o bisavô, nossos deuses domésticos. E se em certas casas, em cima da lareira, estão até hoje, solenes, os retratos de nossos pais e avós, é que estamos dando continuidade à velha tradição de gregos e romanos. Lareira vem de lares, lares é o nome latino de Hestia; e sobre a lareira, a Hestia, ali é o lugar das estatuetas dos deuses domésticos. Na falta de estatuetas, nossos pais e avós colocavam retratos e fotografias; na falta de lareira, acendia-se uma lamparina que, como entre os antigos, nunca podia ser apagada. Alguém ainda se lembra disso?

   Os deuses domésticos eram também chamados de deuses interiores, porque estavam bem no meio da murada de pedra que circundava o fogo sagrado da Hestia. À esquerda e à direita deles, para os lados, estavam as estatuetas dos deuses externos. Externos eram eles, porque não estavam no centro e sim aos lados. Externos eram eles também porque representavam, não membros da família, mas forças externas da natureza: a luminosidade do sol (Apolo), a fertilidade da terra (Ceres), as boas graças do mar (Netuno). Muitos eram os deuses externos e as famílias e as cidades os escolhiam dentre a multidão de deuses. Assim os atenienses, ao escolher – em eleições livres, é claro - o deus padroeiro da cidade, tinham de optar entre Pallas Atenas, a deusa da sabedoria, e Netuno, o deus do mar e das águas. Ambos se apresentaram, trazendo um presente, sinal de sua amizade. Netuno fincou seu tridente no chão seco da acrópole, fazendo dali jorrar uma fonte de água cristalina; ele ofereceu aos cidadãos de Atenas água, água pura, até hoje um bem escasso em toda a Grécia. Pallas Atenas fincou seu cajado no chão duro da acrópole e dele brotou a oliveira, dando aos atenienses o óleo de oliva, tempero de todas as iguarias, ungüento curativo de todas as feridas, óleo para tratar a pele e dar beleza a mulheres e guerreiros, deuses, semideuses e heróis. Pallas Atenas, como sabemos, foi escolhida e eleita pelos atenienses como deusa padroeira. E até hoje quem subir à acrópole verá, como que perdida entre templos, estátuas e as pedras onipresentes, uma árvore, uma única árvore. E o guia turístico ateniense, orgulhoso de sua tradição, vai confirmar ao turista tantas vezes desavisado: É, sim, esta é a árvore, a única árvore que existe aqui em cima da acrópole, esta é a oliveira que Pallas Atenas plantou e nos deu, a nós atenienses.  – Zeus, Juno, Atenas, Apolo, os deuses externos se multiplicaram e foram todos objeto de veneração e respeito. Quem iria desafiar os raios de Zeus? Quem iria se aventurar nos mares sem a proteção de Netuno? Como plantar e colher sem o beneplácito de Ceres? Nossos antepassados remotos tinham muitos deuses, alguns eram internos, outros eram externos, todos eram respeitados e invocados.

Aí surge, a partir de um povo então politicamente insignificante, o povo dos judeus, o     monoteísmo: Deus é um só, todos os outros são falsos deuses. A religião do deus único - no singular e em maiúscula – era inicialmente um fenômeno cultural restrito a um pequeno povo de nômades. Gregos e romanos, os senhores do mundo civilizado, toleravam o povo dos judeus com seu deus único. Os romanos, então, nem tiveram dúvida. No grande templo que reunia ecumenicamente todos os deuses de todos os povos, o Panteão, colocaram também uma estátua homenageando o deus dos judeus. Afinal, por que não? E assim surge a contradição de um deus, que quer ser único, posto no meio de um coletivo variegado de deuses oriundos de todas as partes e representando as mais diversas culturas. O deus dos judeus não era um deus universal, um deus a ser reverenciado por todos os povos, um deus que ditasse leis a todos os povos, um deus que fizesse justiça a todos os homens [2] . Não, o deus dos

 

judeus era deus somente dos judeus. Suas leis eram apenas para os judeus, seu povo escolhido; sua justiça e sua bondade valiam apenas para com os judeus. O deus dos judeus não reinava por sobre os outros povos, não, o deus uno e único do povo judaico, Javé, era um deus que numa contenda entre judeus e não-judeus estava sempre ao lado de seu povo e de seus adoradores contra todos os seus adversários, quaisquer que fossem eles. O deus dos judeus não era universal como o império romano com seu comércio, suas estradas e seu jus inter gentes, mas sim um deus particular de uma pequena tribo de nômades sem nenhuma importância política e militar. Mas era um deus uno e único, transcendente: surgia o monoteísmo.

Dentro do pequeno povo judaico, perdido na periferia do império e, portanto, da civilização, nasceu, então, uma seita político-religiosa menor ainda e ainda menos importante: os essênios. À beira do Mar Morto, uma das regiões mais inóspitas do mundo, de dentro da seita dos essênios nasce o germe intelectual que vai crescer, florescer, espalhar-se por todo o império, por todo o mundo civilizado, o cristianismo: a religião de um deus transcendente que, pela encarnação, se faz homem e assim se torna também imanente. Surge aqui o deus que é transcendente e imanente, quanto mais transcendente é pensado mais imanente ele fica. O cristianismo, totalmente judeu em sua origem, adepto, portanto, do deus que era só de judeus e só para judeus, foi colocado pelas circunstâncias históricas de sua inserção cosmopolita no  império romano diante de uma decisão fundamental: Continuar como uma seita religiosa particular, tribal, com um deus só dela e só para ela, ou transformar-se numa religião universal? Em outras palavras, o deus dos judeus – agora também Deus-Homem cristão - é deus só dos judeus e só para os judeus ou é o deus universal de todos os homens e para todos os homens? Esta questão, surgida entre os primeiros cristãos, foi decidida a favor de um deus universal [3] . Paulo de Tarso, o apóstolo, e Pedro, o primeiro

 

entre os doze apóstolos, realizaram a grande virada. Deus deixou de ser um deus particular, um deus só de judeus e só para judeus, e tornou-se o deus uno e único, transcendente, de todos os homens e para todos os homens. Quando, depois, o imperador Constantino tornou o cristianismo a religião oficial do império, o deus uno e único dos judeus essênios, o deus que se encarnara como Deus-Homem, passou a ser o deus uno e único, sim, mas universalíssimo, reinando sobre todos os povos e todas as tribos, sobre todas as culturas e sobre todas as leis locais. O deus cristão, uno e único, transcendente, deus de todos os homens e para todos os homens, mas ao mesmo tempo o deus que se fez homem e habitou entre nós passou a ser o ponto central de nossa civilização ocidental. Desaparecem, assim, pelo menos do primeiro plano, os deuses gregos e romanos, celtas e germânicos, e passa a imperar o deus único, que não permite outros deuses a seu lado, que, transcendente, reina sozinho sobre tudo e sobre todos, e que, enquanto imanente, é mediado por uma única religião, o cristianismo. Este é, até hoje, o deus de nossa civilização ocidental, de católicos, protestantes, ortodoxos gregos e russos, arianos, maronitas, anglicanos, metodistas, prebiterianos, calvinistas, hussitas, mórmons, adventistas e tantos outros mais. Os judeus, que continuam com seu deus particular, só deles e para eles, adoram, no fundo, o mesmo deus transcendente dos cristãos; a encarnação, isto é, a imanência do deus que se fez homem é por eles negada. O islamismo, que se desenvolveu a partir do monoteísmo judaico-cristão, tem como centro o mesmo deus uno e único, transcendente e não imanente.

 

                

2. O ABSOLUTO EM AGOSTINHO

 

   O sistema de Agostinho em sua positividade e universalidade é, nesta exposição, a tese. O sistema de Tomás de Aquino e dos neotomistas com sua theologia negativa é a antítese. A proposta a ser feita mais adiante, uma transformação corretiva da filosofia de Hegel, – síntese - pretende resgatar a universalidade e a positividade do sistema de Agostinho, mediatizada, porém, criticamente pela passagem através da negatividade do sistema de Tomás de Aquino.

   Em Aurélio Agostinho [4] , como em todos os pensadores neoplatônicos de Plotino até Hegel, o

 

sistema sempre tem três partes, tese, antítese e síntese. Em Agostinho, a primeira parte do sistema trata de Deus antes de criar o mundo, um Deus que é uno e único, mas que é articulado pela rede de três relações que o constituem. Do Pai, que é o início, procede o Filho, sua imagem e semelhança. Da tese, o Pai, sai e emerge a antítese, o Filho. Ao completar o círculo dialético na síntese, Pai e Filho se unem no amor de um para com o outro que se chama Espírito Santo. Pai, Filho e Espírito Santo são três relações, reais e necessárias, que em movimento dialético circular vivificam a unidade que se chama Deus. A tradição cristã vai utilizar a palavra latina substantia para designar a unidade de Deus e a palavra grega hipóstasis para designar as três pessoas divinas: três hipóstases em uma única substância [5] . Este

 

Deus, primeira parte do sistema, é uno e trino – o que vem diretamente da tríade dialética – e é também o Bem supremo – o que vem igualmente da tradição neoplatônica.

O Bem, no entanto, tem em si a tendência de difundir-se, bonum diffusivum sui, e por isso a bondade de Deus, o Bem supremo, como que transborda, sai de si em bondade e amor para como que se reduplicar e constituir-se como o universo criado. A criação é livre, sim, pois é um transbordamento do Bem e do amor; todo amor é livre. O fruto deste transbordamento chama-se Natureza e constitui a segunda parte do sistema. Deus antes de criar o mundo é a tese, a Natureza é a antítese. Assim como a primeira parte do sistema, Deus, se subdivide em três relações, as pessoas divinas, também a segunda parte do sistema se articula em tese, antítese e síntese. Do anorgânico, tese, emerge o orgânico, antítese, ambos sintetizados no homem, síntese na qual o anorgânico e orgânico se fundem para constituir o espírito. Síntese do mundo anorgânico e orgânico, o homem é a imagem de Deus. Há no homem, dentro dele, como uma réplica da trindade divina. O espírito, no homem, se compõe de três instâncias: a memoria sui, que garante a identidade e a permanência, pois conserva o passado no presente e projeta o futuro; o intellectus sui, que em correspondência ao Logos divino infunde no homem o conhecimento dos primeiros princípios que regem o Universo e constitui a autoconsciência; e finalmente a voluntas sui, o desejo de verdade e de amor mediante o qual o homem retorna a seu Deus Criador e se incorpora à Jerusalém Celeste.

O homem, porém, - aqui começa a História – o primeiro homem, Adão, pecou e nele todos os homens pecaram; tese e antítese – Deus Criador e a criatura - entram em conflito. O pecado de Adão jogou a Natureza contra Deus, a antítese contra a tese. O conflito entre Deus e o homem que pecou contitui-se em oposição excludente entre tese e antítese, só a conciliação da síntese pode superá-la.

A terceira parte do sistema trata, então, da síntese, da conciliação entre o Deus uno e trino e a Natureza decaída pelo pecado original. Esta conciliação se faz, de maneira dialeticamente circular, porque Deus se faz homem, engendrando o Deus-Homem, Jesus Cristo; e o Deus-Homem, continuando divino, levanta à divindade a Natureza caída, tornando-a partícipe de sua divindade. Na síntese, tese a antítese são conciliadas e se fundem numa unidade mais alta, categoria final do sistema. O divino, pela encarnação, é humanizado e naturalizado; a natureza e o homem, pela redenção, são divinizados e este fica partícipe, pela graça santificante, da natureza divina. Surge, aí, a Jerusalém Celeste, estágio final do sistema e da História da Salvação, na qual Deus e suas criaturas fruem do amor que os une e constituem como que a cúpula do sistema triádico neoplatônico-cristão de Aurélio Agostinho.

A primeira grande objeção contra o sistema neoplatônico-cristão de Agostinho, foi ele mesmo que a formulou: O conflito entre a predestinação e o livre arbítrio, entre a gratia efficax e a liberdade do homem. Segundo Agostinho, todo o curso do Universo, inclusive as decisões livres dos homens, são objeto da predestinação. O conceito de predestinação, oriundo da filosofia determinista e necessitária dos estóicos, de que tudo no mundo está desde sempre predeterminado na vontade eterna de Deus diz que todo o Universo é uma rede determinística de relações necessárias, em que cada elo se encaixa no outro, sem espaço para que o homem, em seu livre arbítrio, possa optar por uma alternativa e não por outra. Estar predestinado à salvação ou à danação eternas significa, para Agostinho, que o homem individual e concreto está desde sempre, desde antes de nascer, predeterminado para sua situação final: querendo ou não querendo, ele inevitável e inexoravelmente acabará lá onde a predestinação o colocou, no céu ou no inferno. E a livre vontade? E o livre arbítrio? Méritos e deméritos? Virtude e pecado? Agostinho quer defender ambos os lados, tanto a predestinação como o livre arbítrio. Ele sente a contradição excludente entre predeterminação e liberdade, ele luta com a  contradição, tenta conciliá-la, tenta superá-la, mas, até o fim de sua vida, não consegue fazê-lo. Este é o grande problema da filosofia e da teologia de Aurélio Agostinho: Predestinação e livre arbítrio, ambos dura e claramente afirmados, entram em contradição excludente. Se existe predestinação, então o livre arbítrio é impossível; se existe livre arbítrio, então predestinação é impossível.

A contradição entre predestinação e livre arbítrio não é uma questão isolada, como que um tumor localizado, que possa ser cirurgicamente extirpado sem afetar as outras partes do sistema. Não, o problema da predestinação e do livre arbítrio se espalha e penetra praticamente por todas as partes da doutrina agostiniana. Ele reaparece, por exemplo, na questão na presciência de Deus e na doutrina da graça eficaz. Se Deus é perfeitíssimo, então ele sabe desde sempre todas as coisas, inclusive os atos livres de nossas decisões. Ora, se, antes de nossa decisão atual, antes de nós mesmos sabermos, Deus já sabe o que vamos decidir, pode-se ainda, neste caso, falar de livre arbítrio? Como ser livre para escolher entre as diversas alternativas, se desde toda a eternidade Deus já sabe que vamos escolher esta alternativa específica e não as outras? Isso não constitui uma contradição? O mesmo problema retorna na doutrina da gratia efficax: A graça divina, que nos leva a fazer o bem ao invés de fazer o mal, é eficaz em si e de per si, independentemente de nossa vontade. Como, então, ainda falar de liberdade? Como decidir livremente, se a graça eficaz já decidiu por nós? As contradições a este respeito se acumulam. Agostinho, até morrer, lutou com o problema, mas não conseguiu solucioná-lo.

   O beco sem saída e a aporia sem solução podem ser expressos na linguagem do próprio Augustino, linguagem sempre eloqüente e em certos casos, como nestes, exata e rigorosa: A graça aniquila a vontade livre? De maneira nenhuma! A lei só pode ser cumprida mediante a vontade livre! Mas se a graça é eficaz independentemente da decisão do homem, para que serve esta decisão? No que influi? O segundo e o terceiro capítulo do tratado De libero arbitrio bem como muitos textos da maturidade e da velhice mostram como Agostinho lutou honestamente com o problema, mostram também que não encontrou solução.

Uma segunda objeção contra o sistema de Agostinho versa sobre a doutrina do pecado original e da concupiscência. Segundo Agostinho, o pecado original, que se propaga de homem para homem pela simples descendência biológica, consiste na concupiscência. Concupiscência – vamos ser claros - é aquilo que hoje chamamos de tesão e de prazer. Segundo Agostinho, se há tesão e prazer numa relação, estamos fazendo renascer em nós o pecado original cometido por Adão, estamos efetivando como pecado pessoal aquilo que existe dentro de todos nós como pecado original. Isso nos torna duplamente culpados: o pecado original como que renasce e é efetivado como um novo pecado, desta vez, como um pecado pessoal, de responsabilidade do indivíduo que o cometeu. – Esta doutrina agostiniana sobre a identidade entre pecado original e concupiscência, entre pecado e sexualidade, provocou estragos inimagináveis em nossa civilização. Afirmar a pecaminosidade do prazer sempre e em todas as circunstâncias – inclusive no âmbito do sacramento do matrimônio – é algo simplesmente imperdoável. Deveria existir uma predestinação – que não existe! – que impedisse grandes pensadores de afirmar semelhantes bobagens. A doutrina de Agostinho sobre o pecado original provocou, ao identificar pecado e sexo, sofrimentos e males durante mais de mil anos para milhões de cristãos. – Do ponto de vista meramente intelectual, entretanto, penso que este erro, em oposição ao que foi mencionado na primeira objeção, poderia ser expurgado do sistema, sem que este sofresse mudanças estruturais. Como a questão que aqui nos ocupa versa primeiramente sobre o conceito de Absoluto, podemos considerar este ponto da doutrina agostiniana como algo que deve e que pode ser corrigido e consertado.

A terceira grande objeção gira em torno de um tema bem mais sutil, mais difícil, cheio de meandros intelectuais, mas que me parece constituir-se na mais importante de todas as questões que levantamos a respeito do sistema de Aurélio Agostinho. Na filosofia de Agostinho, como nas filosofias neoplatônicas de Plotino e Proclo, o sistema é estritamente circular. A primeira parte do sistema, em Agostinho, é constituída por Deus uno e trino antes de criar o mundo; o que depois será chamado de natura naturans. A segunda parte do sistema é a Natureza, a natura naturata; aqui estamos incluídos todos nós, inclusive e principalmente – lá bem no começo - Adão e Eva e o pecado original, ou seja, a natureza decaída. A terceira parte do sistema é a síntese e a conciliação entre a primeira e a segunda parte: Em Jesus Cristo, o Deus que se torna Homem, abre-se o caminho para a História da Salvação, Historia salutis, no fim e no termo da qual está a Jerusalém Celeste, estágio em que todos – Deus, homens, animais, plantas e todas as coisas – seremos, mediante a graça santificante, partícipes gloriosos e radiantes da natureza divina. – Doutrina semelhante encontramos em Plotino [6] e em Proclo [7] . O

 

núcleo do sistema em Plotino é o Uno, que também é chamado de divino. Do Uno emerge o Nous, que é a presença intelectual e consciente do Uno em face de si mesmo. Do Nous emerge, então, a Alma do Mundo. Na Alma do Mundo fica visível a doutrina neoplatônica sobre a gênese das diferenças, especialmente sobre a gênese de coisas menos perfeitas que o próprio Uno. À medida que se afastam do Uno e do Nous, os seres vão perdendo unidade; ao perder unidade, perdem também perfeição. Ou seja, quanto mais longe estivermos do Uno, mais imperfeitos e carentes somos. É por isso que devemos, num movimento circular, voltar ao Uno. Só assim, voltando à perfeição da primeira parte do sistema, é que nós homens, habitantes da terceira parte do sistema, podemos adquirir perfeição. O êxtase neoplatônico, que depois entra nos místicos cristãos e influencia poderosamente algumas correntes do cristianismo, consiste exatamente neste retorno da terceira à primeira parte do sistema. A terceira parte do sistema se completa no retorno à primeira parte. – Em Proclo, a estrutura do sistema é semelhante, só que no centro temos, ao invés do Uno, o Universal. O que se afasta do Universal, e na exata medida deste afastamento, vai ficando particular e imperfeito. O homem que almeja a perfeição deve, portanto, retornar ao Universal do qual originariamente saiu. Também aqui a terceira parte é a operação sintética do retorno a si mesmo, da conciliação entre o começo e o fim do sistema. A terceira parte do sistema obedece à lei do distanciamento: Quanto mais distante, menos perfeitas são as coisas.

Agostinho, Plotino e Proclo – cada um à sua maneira – colocam um problema especulativo extremamente sério. Se os habitantes da segunda parte do sistema, como nós homens o somos em Agostinho, na medida de nosso distanciamento do centro, somos sempre afetados por imperfeição; se a busca da perfeição consiste exatamente no fechamento do círculo dialético, no retorno ao começo, ou seja, na terceira parte do sistema, que é a conciliação entre Deus e a criatura, entre a natura naturans e a natura naturata, então surge o problema: Não existem aí dois Deuses? O primeiro Deus é obviamente a primeira parte do sistema; o Deus uno e trino antes de criar o mundo em Agostinho, o Uno em Plotino, o Universal em Proclo. A segunda parte do sistema é a natureza, somos nós. Mas o que é, então, a terceira parte do sistema? O que é a Jerusalém Celeste em Agostinho? O êxtase em Plotino e Proclo? Deus, o Deus da primeira parte do sistema, está presente nesta terceira parte? Certamente que sim. O Deus uno e trino está no centro, melhor, constitui o centro da Jerusalém Celeste. O mesmo vale para Plotino e Proclo: o Uno e o Universal são como que o elemento central do êxtase; sem o Uno e o Universal ficamos olhando para o nada e somos sugados pelo vazio. Como se distinguem, então, se Deus está em ambas, a primeira e a terceira parte do sistema? Elas se distinguem porque na terceira parte nós homens e a natureza, divinizados que fomos, nos agregamos em torno do Deus uno e trino da primeira parte, nós somos, pela graça, partícipes de sua natureza. Ora, se ficamos partícipes de sua natureza, então na terceira parte do sistema o Deus uno e trino e nós homens constituímos juntos uma mesma natureza, um mesmo conjunto, a saber, a Jerusalém Celeste. Mas, então, a pergunta emerge, forte e violenta: Qual é o verdadeiro Deus, o Deus por assim dizer individual – fechado sobre si mesmo - da primeira parte do sistema? Ou o Deus por assim dizer coletivo – que trouxe todo o Universo para dentro de si mesmo - da terceira parte do sistema? Qual o Deus verdadeiro? Qual o Deus que realmente importa? O primeiro, individual e fechado sobre si mesmo? Ou o Deus que tem a seu lado o Deus-Homem e, na unidade do Espírito Santo, todos os homens, todas as criaturas, todo o Universo?

Em primeiro lugar, é preciso deixar bem claro que não se trata aqui de dois Deuses que sejam completamente distintos. Pelo contrário, o núcleo duro de ambos é exatamente o mesmo. O Deus uno e trino, individual, fechado sobre si mesmo, da primeira parte do sistema, que é a tese, está contido na terceira parte do sistema; a tese foi aufgehoben, foi superada e guardada na síntese. Foi superado o quê? Foi guardado o quê? Foi guardado tudo que de positivo se diz no Deus uno e trino. Foi superada a oposição excludente entre ele, o Criador, e a natureza criada; foi superada a oposição excludente entre tese e antítese. Na terceira parte, que é síntese e conciliação, Deus Criador e a natureza criada são conciliados e voltam à unidade. Não se trata, portanto, de dois Deuses, mas de um mesmo Deus em dois estágios dialéticos diferentes; uma vez tético, outra vez sintético. Até aqui nenhum problema maior nesta grandiosa visão do Universo que Agostinho e os filósofos neoplatônicos constroem em seus sistemas. Como Hegel diz em suas Preleções sobre História da Filosofia, a respeito dos neoplatônicos: Raramente o espírito humano se levantou a tal altura e atingiu regiões tão sublimes.

   A quarta objeção é uma continuação da terceira. Aceitemos a explicação acima dada de que o mesmo Deus se apresenta uma vez – na tese – como algo individual, sozinho, fechado sobre si mesmo,  uma outra vez – na síntese – como um universal concreto, um coletivo, no centro do qual está o mesmo Deus uno e trino da tese, só que agora como o Deus que traz e acolhe dentro de si os homens e as coisas da natureza, divinizados pela graça e pela redenção, o Deus que contém dentro em si a totalidade do Universo. Aceita esta tese, surge a pergunta: O Deus tético é mais pobre e menos perfeito que o Deus da síntese? Se a resposta for sim, então o Deus uno e trino da primeira parte do sistema não é perfeito. Algo lhe falta. A Natureza, por ele criada como segunda parte do sistema, vai lhe acrescentar algo que ele antes não tinha. Sendo assim, o Deus uno e trino do começo do sistema continua sendo o Deus cristão? – Deixemos esta pergunta no ar, por enquanto. Voltaremos a ela, quando tratarmos de Hegel e do sistema que estamos aqui propondo.

   A quinta objeção é de caráter não especulativo mas sim institucional: Este Deus da terceira parte do sistema, como foi acima descrito e determinado, não instala um panteísmo ou, ao menos, um panenteísmo? A síntese acima descrita entre o Deus Criador e a Criação, entre a natura naturans e a natura naturata, não implica que Deus é tudo e que tudo é Deus? Mesmo que se diga que isso ocorre por força da redenção e da participação na natureza divina mediante a graça, não temos aí um tipo de panteísmo ou de panenteísmo? Este Deus que acolhe todo o Universo em seu seio não é um Deus panteísta? Ou, ao menos, panenteísta? – Esta quinta objeção só é objeção em teologia, isto é, quando se pressupõe como proposições filosoficamente verdadeiras o que segue das condenações feitas por concílios e papas contra determinadas concepções de Deus. Isso é teologia, não é filosofia. Lembremos, entretanto, que Johannes Scotus Eriugena, o grande elo de ligação entre o sistema de Agostinho e a grande filosofia e teologia medievais, ele mesmo fiel discípulo de Agostinho, foi condenado por suas tendências panteizantes. – Para começo de resposta, é preciso definir panteísmo e panenteísmo. Panteísmo, segundo o dicionário de Aurélio, é a doutrina que afirma que “só Deus é real e que o mundo é apenas um conjunto de manifestações ou de emanações”, ou, na formulação oposta, “a doutrina segundo a qual só o mundo é real, sendo Deus a soma de tudo quanto existe” [8] . Panenteísmo, segundo o mesmo Aurélio, é um “sistema filosófico que vê todos os seres em Deus” [9] . Percebe-se, pelas

 

definições dadas, que todo cristianismo medianamente ancorado em suas tradições bíblicas e patrísticas tem que ser caracterizado como sendo panenteísmo. Qual cristão nega – ou poderia negar - que é preciso ver todas as coisas em Deus? Percebe-se, no entanto, que o termo panenteísmo foi criado com a finalidade específica de fugir das condenações eclesiásticas católicas, protestantes e judaicas. O termo panenteísmo a mim, me soa muito bem e me parece expressar bem aquilo que Agostinho e muitos outros, inclusive Schelling, Hegel, Teilhard de Chardin e eu próprio, dizemos sobre o Absoluto na terceira parte do sistema. -  Mas voltemos ao problema de forma filosófica. É certamente errado dizer que o Deus uno e trino, fechado sobre si mesmo, é um Deus panteísta. Mas não é isso que se afirma; a acusação é outra. A acusação de panteísmo dirige-se sempre contra o Deus da terceira parte do sistema, contra o Deus da Jerusalém Celeste. Scotus Eriugena, Giordano Bruno, Espinosa, Fichte, Schelling, Hegel, Goethe,  Pièrre Teilhard de Chardin e muitos outros foram acusados de panteísmo porque no Deus da terceira parte do sistema “todas as coisas estão contidas”, ou porque “todas as coisas emanam de Deus”. Vê-se com clareza que a confusão a este respeito é grande. A condenação do panteísmo estaria correta se panteísmo significasse que as coisas do mundo são uma emanação necessária de Deus; esta acusação estaria correta se e enquanto ela se dirige contra o necessitarismo, a doutrina das emanações como um processo necessitário. Mas, tirante o necessitarismo, qual a objeção contra o panteísmo, se o entendemos de acordo com as definições de panteísmo acima dadas por um autor insuspeito, por um dicionário contemporâneo, como é o Aurélio? Se tomarmos a doutrina de Agostinho, de Johannes Scotus Eriugena [10] , de Nicolaus Cusanus [11] e as cotejarmos com as definições de panteísmo acima dadas, somos

 

obrigados a dizer que eles todos são panteístas. – Por respeito à tradição das grandes religiões, abro mão do termo panteísmo (que não considero antipático) e utilizo o termo panenteísmo, que, não tendo sido condenado, manteve sua neutralidade conceitual. Nesta terminologia, Agostinho e todos os grandes autores cristãos acima citados, inclusive Hegel, Pierre Teilhard de Chardin e eu mesmo, somos panenteístas. Algo de errado nisso? Penso que não. Muito pelo contrário. Parafraseando Hegel: Poucas vezes o espírito humano se levantou tão alto. Esta quinta objeção – panteísmo -, a meu ver, não é objeção nenhuma.

 

3. O ABSOLUTO EM TOMÁS DE AQUINO

 

Com Alberto Magno e Tomás de Aquino [12] a filosofia, que havia sido cristianizada por Agostinho,

 

sofre o tremendo impacto da redescoberta dos escritos metafísicos de Aristóteles. A Lógica de Aristóteles, como sabemos, sempre esteve presente na consciência filosófica do mundo ocidental, a Metafísica, a Ética, a Política e a Estética, entretanto, embora fisicamente existentes nas grandes bibliotecas – Alexandria, Constantinopla – como que desapareceram. Até hoje não existe explicação plausível para este fenômeno. Como escritos tão importantes de um pensador tão conceituado, como foi Aristóteles, simplesmente desapareceram das discussões, sim, de toda a vida intelectual do ocidente filosófico? Como isso pôde acontecer? Não o sabemos. Mas sabemos, sim, como através dos árabes, já no século XIII, os escritos aristotélicos voltam a ser conhecidos. Alberto Magno e Tomás de Aquino, ao tomarem conhecimento da Metafísica de Aristóteles através de manuscritos vindos da universidade árabe em Granada, redescobrem a filosofia do Estagirita e, conscientes de sua importância, fazem dela a coluna vertebral de um novo tipo de filosofia cristã. Ao lado do neoplatonismo cristianizado por Agostinho surge, das mãos de Alberto Magno e do Aquinate, um aristotelismo cristianizado. A dialética neoplatônica, com seu jogo de opostos e com sua substância única em movimento circular, começa a ceder espaço e, logo depois, vai sendo substituída pela análise aristotélico-tomista, com seu movimento linear, com sua pluralidade de substâncias, com sua causa incausada.

A filosofia de Tomás de Aquino, no que concerne a Deus, é aristotelicamente simples e transparente. Aristóteles ensinava, tanto na Lógica como na Ontologia, que para não cair num processus ad infinitum, era preciso chegar a uma arkhé, a um começo que é princípio principiante mas não é, ele mesmo, principiado por outro princípio antes dele. Em Lógica, cada demonstração depende de premissas que, por sua vez, dependem de premissas a elas anteriores, e assim por diante. Para não haver um regresso infinito na cadeia de argumentação e de fundamentação – o que significaria que nem uma única argumentação seria fundamentada -, é preciso postular que exista como começo de toda e qualquer cadeia argumentativa um começo lógico, uma arkhé, que não precisa ser ulteriormente fundamentada. Este começo ou princípio fundante de todas as cadeias de argumentação é, segundo Aristóteles, o Princípio de Não-Contradição. Este princípio fundamenta todas as cadeias de argumentação e as legitima; ele mesmo não pode nem precisa ser ulteriormente fundamentado. Este princípio é fundante para todas as argumentações racionais e, quanto a ele mesmo, possui em si mesmo toda sua racionalidade: Ele não precisa nem pode ser fundamentado. Ele é um princípio fundante que não tem antes e fora dele nada que o fundamente, ele se basta a si mesmo. Ele é o lugar onde a pergunta “O que vem atrás? O que está fundando?” perde todo o sentido. – Qual a prova desta afirmação? [13] Qual a

 

justificativa deste postulado? Aristóteles e Tomás de Aquino sentiram, em toda sua profundidade, a dimensão do problema e a necessidade de uma justificação racional da arkhé. Aristóteles, no livro Gama da Metafísica, faz seis tentativas, quase heróicas, para demonstrar o Princípio de Não-Contradição. Mas demonstrar para quê? Se o Princípio de Não-Contradição não pode nem precisa ser demonstrado, como demonstrá-lo? Para que demonstrá-lo? O próprio Aristóteles não estava tão seguro de que a justificação da arkhé não fosse necessária. A argumentação, em meandros, do livro Gama da Metafísica é prova disso.

Exatamente em paralelo com o raciocínio feito acima, em Lógica, sobre a justificação das cadeias de argumentação corre, na Metafísica de Tomás de Aquino, o argumento para demonstrar a existência de Deus. Trata-se de uma análise regressiva tipicamente aristotélica, com a mesma estrutura básica do raciocínio acima exposto sobre a seqüência de apódeixis. Existem coisas contingentes; elas de fato existem. Ora, contingentes são os seres que podem existir e podem, por igual, não existir. Mas, estes seres contingentes para os quais aponto são existentes. Logo, é preciso admitir uma razão ou causa, antes deles, que justifique por que eles existem ao invés de não existir. Esta causa – existente -, que explica a existência destes seres contingentes para os quais aponto, é, por sua vez, contingente ou não. Se ela é contingentemente existente, é preciso admitir, antes dela, uma causa que justifique sua existência. E assim se remonta, indo para trás, toda a série de causas contingentes, que são causantes mas também são causadas. Enquanto não se chegar a uma causa não-contingente, não-causada, toda a série causal continua sem explicação bastante. Só há explicação quando se chega à primeira causa incausada, que é o princípio ontológico e o começo de toda a série de causas, a arkhé inicial. Esta causa incausada não pode ser contingente, senão remeteria novamente a uma causa a ela anterior. A esta primeira causa incausada, necessária em sua existência, absoluta porque não remete para nada que lhe seja ontologicamente anterior, Tomás de Aquino chama de Deus, o Absoluto. Deus, primeira causa incausada, necessária em sua existência, é condição ontológica de possibilidade de toda a série de causas contingentes. Aí temos, numa teoria aparentemente simples, o Deus de Tomás de Aquino e de todos aqueles que o seguem, tomistas e neotomistas.

Este Deus, continua Tomás de Aquino, afastando-se de Aristóteles, é substância não só necessária mas também simples. Se Deus fosse composto de ato e potência, ou de substância e acidente, ou de matéria e forma, ele não seria necessário e não poderia ser o fundamento ontológico último, a arkhé ontológica, de que precisamos. Este Deus, substância necessária e simples, - continua o Aquinate - cria por um ato livre de sua vontade o mundo em que vivemos. Deus é o criador, a natureza é uma criatura, nós todos somos criaturas, fomos criados pelo Deus, que é incriado, que é causa não-causada. – Tomás acrescenta: Deus é perfeição perfeitíssima, completa, acabada, absoluta, porque ele e uma substância sem acidentes, um ato puro sem nenhuma potência que o restrinja, uma forma pura sem matéria que a constranja. Perfeição perfeitíssima, ilimitada, infinita, eis o Deus de Tomás de Aquino.

Mas como pensar uma perfeição perfeitíssima, infinita, sem limites? O que não possui limite nenhum não possui nenhuma determinação. Como, então, pensar um Deus que não possui nenhuma determinação? Ele é um indeterminado vazio? Tomás responde que, de fato, primeiro afirmamos uma perfeição de Deus: Deus é bom. Mas, logo depois, precisamos usar a negação: Mas ele não é bom como os homens são bons, pois nele a bondade não está limitada. Mas se primeiro afirmamos (via affirmationis) e depois negamos (via negationis) os predicados de Deus, afinal qual o predicado determinado e específico que pode ser a ele atribuído? Tomás de Aquino, procurando sair do impasse de uma teologia meramente negativa, tenta seguir o caminho indicado pelo Pseudo-Dionísio – que ele chama de conhecimento por analogia – e afirma que predicamos a bondade de Deus primeiro pela afirmação, depois corrigimos esta afirmação pela negação, para finalmente dizer – por analogia – que Deus é superbom, ou seja, é bom de uma maneira infinita, na qual a bondade não mais se opõe às outras determinações.

E aqui temos, já agora, a primeira grande objeção contra o Deus de Tomás de Aquino. A teoria tomista da analogia entis [14] , a rigor, não resolve nada, pois

 

determinações que não mais se opõem a outras determinações são predicados totalmente vazios: Tais determinações que não se opõem também não se diferenciam. Dizer, por conseguinte, que Deus é bom não se opõe nem se distingue de dizer que Deus é justo, e assim por diante. Tudo que se diz de Deus é apenas um predicado absolutamente vazio de conteúdo, que não diz nada porque não contém (e não pode conter) nenhuma determinação. O conceito de Deus do Aquinate revela-se, assim, como um conceito totalmente vazio e sem conteúdo. A determinação daquilo que é Deus, depois da afirmação e da negação iniciais, torna-se um conceito que, por sua própria estrutura, não pode jamais possuir uma determinação. Assim sendo, não podemos nem mesmo dizer com propriedade que Deus é a primeira causa de toda a série causal. Como podemos atribuir a Deus a determinação de ser causa, um conceito determinado, se Deus é um conceito totalmente vazio? O conceito de Deus de Tomás de Aquino desemboca, assim, em uma teologia estritamente negativa, ou, na linguagem de outra tradição, na noite escura em que todas as vacas são pretas. Esta a primeira grande objeção.

Mas há uma segunda objeção contra o Deus do Aquinate pelo menos tão séria como a primeira. Deus é uma substância simples, não há e não pode haver nele acidente ou potência de qualquer tipo. Assim sendo, o ato livre mediante o qual Deus decidiu criar este mundo é absolutamente idêntico à substância divina. Ora, a substância divina é necessária. Logo, o ato livre de criar deixa de ser livre – poder ser e poder, por igual, não ser -, para tornar-se um ato necessário. O ato livre de criação, no Deus assim pensado, jamais pode ser livre, porque é, em si, tão necessário quanto a essência divina da qual ele não se distingue. – A resposta usual dos filósofos neotomistas a esta objeção, ao invés de resolver o problema, torna a contradição existente na teoria ainda mais visível. O ato mediante o qual Deus decide livremente criar este mundo seria, segundo estes autores, necessário ad intra e contingente e livre ad extra. Deus, dentro em si, seria pura necessidade, o ato contingente de escolha mediante o qual cria este mundo determinado seria algo ad extra. Mas a questão permanece sem solução e a contradição fica mais evidente: Como distinguir no ato livre de criação, que está dentro da substância de Deus, uma interioridade (ad intra) e uma exterioridade (ad extra)? Interior e exterior são, no mínimo, aspectos. E a doutrina de Tomás de Aquino sobre a simplicidade de Deus não permite que se façam distinções no que é absolutamente simples. Mas, poderiam contra-argumentar os neotomistas, a interioridade está dentro de Deus, a exterioridade está fora dele. Neste caso a situação fica ainda pior. Pois a liberdade de Deus naquilo que ela tem de importante, a saber, escolher dentre vários mundos possíveis a serem criados, estaria somente fora de Deus. Deus, a rigor, seria pura necessidade, e a liberdade de escolha vagaria, como um fantasma, fora dele. As contradições, aqui, se acumulam, os problemas não resolvidos se somam, e isso torna esta segunda objeção extremamente pesada, sim, decisiva.

Uma terceira objeção, tão pesada quanto a segunda, emerge da doutrina de Tomás de Aquino sobre as relações entre Deus Criador e as criaturas. Existem dentro de Deus, diz Tomás, relações reais, ou melhor três relações reais, que são idênticas à substância divina e por isso necessárias e eternas. São as três pessoas da Trindade. Existem também relações reais das criaturas para com o Deus Criador. As criaturas, isto é, todos os seres contingentes existentes no Universo são marcados por uma relação de dependência causal para com Deus, o Criador. Mas – e aqui o ponto chave desta objeção – Deus não possui nenhuma relação real para com suas criaturas, nem relação causal nem relações reais de qualquer outro tipo. Uma tal relação significaria sempre, segundo Tomás de Aquino, segundo os tomistas e neotomistas, uma forma de dependência e imperfeição, e, como Deus é perfeitíssimo, ele não pode ter tais relações ad extra que sejam reais. A relação do Criador para com a criatura seria, assim, uma relação tão somente pensada, um mero ens rationis. – Como pensar racionalmente a relação causal do Criador para com sua criatura apenas como um ens rationis? Como um ens rationis – o Deus enquanto creante - pode atuar como uma verdadeira causa e produzir um efeito? Como algo pode ser atuante, causante, producente, sem que isso se concretize numa relação real? Pensar a causa causante sem nenhuma relação real para com seu efeito parece ser simplesmente um non sense, uma contradictio in adjecto. E mais. A objeção fica mais pesada ainda, quando se procura pensar racionalmente a encarnação: Significa isso que, quando Deus se faz homem em Jesus Cristo, não há relação real de Deus Filho – que é uma relação real interna à tríade necessária existente dentro de Deus - para com sua natureza humana? Isso pode ser pensado sem contradição? [15] Mais. E entramos agora no kérigma:

 

Isso significa que quando se diz que Deus nos ama, estamos, a rigor, apenas dizendo que existe amor real de nós para com Deus, mas não vice-versa, pois o amor de Deus para conosco não é uma relação real e, sim, um ens rationis. Também aqui as contradições se acumulam e ficam a exigir soluções que sejam bastantes. Pode alguém admitir que o princípio cristão que afirma “Deus ama os homens” significa apenas que nós homens temos, sim, uma relação real de amor  para com Deus, mas que Deus não tem nenhuma relação de amor para conosco que seja real? Dá para pensar, sem contradição, um tal Deus? A tentativa de síntese filosófica feita por Tomás de Aquino, toda ela centrada sobre o conceito de Deus acima exposto, face às objeções acima formuladas, há que ser posta em dúvida. Um tal Deus pode ser pensado sem contradição? Sem uma contradição violentamente destrutiva, sem que todo o projeto de sistema entre em implosão? Tudo indica que não. Mas, lembremos, este é o Deus dos filósofos e teólogos tomistas dos séculos XIX e XX.

Olhando com certa distância e relevando as contradições e as questões especulativas não resolvidas, percebe-se que este Deus asim conceituado por Tomás de Aquino e dos neotomistas tem muito pouco a ver com o Deus dos evangelhos, com o Deus de Agostinho e da tradição neoplatônica cristã, como logo abaixo veremos. Este Deus tomista é, antes, um Deus judaico. Ele não tem nome, dele não se podem fazer estátuas ou representações, ele habita atrás nas nuvens, isto é, ele é transcendente e apenas transcendente. Os neotomistas me desculpem, mas penso que o Deus que propõem, além de cheio de contradições não resolvidas, é totalmente judaico e muito pouco cristão. A encarnação, como pensá-la a sério, se a relação de Deus Filho para com sua natureza humana não é algo real mas apenas um ens rationis? Ou a união hipostática seria algo real? Neste caso Deus teria relações reais ad extra, e a construção se esboroa pelo outro lado, pois Deus, então, não seria simples. Mas, sem a encarnação, este conceito de Deus deixa de ser cristão para ficar um conceito judaico. Bem diferente é a situação em Agostinho e na tradição neoplatônica cristã.

O Deus de Tomás de Aquino está errado? Tomás de Aquino está errado? O espírito decididamente ecumênico da Filosofia neoplatônica que defendo não me permite dizer de um grande filósofo que ele está errado. Como se vê claramente em Plotino, em Nicolaus  Cusanus e em Hegel, o filósofo dialético tem que ser ecumênico, pois a verdade sempre é o todo. Hegel jamais diz de Espinosa ou de Kant que eles estão simplesmente errados. As teorias por eles propostas estão, sim, erradas, se e enquanto permanecemos nelas sem ir mais adiante. Mas o erro consiste exatamente nessa fixidez, nessa imobilidade, nesse recusa de entregar-se ao movimento que anima a dialética. Espinosa e Kant estão errados, sim, se ficarmos só neles que são apenas parte e não o todo. Mas Espinosa e Kant tornam-se verdadeiros, se percebemos que devemos, sempre em busca do todo, ir mais adiante. O mesmo eu diria com respeito a Tomás de Aquino. O Aquinate está errado, se vemos nele uma doutrina completa e acabada; mas o Aquinate está certo se o consideramos com a a negatividade de uma antítese a ser superada, como uma negação através da qual precisamos passar para chegar à positividade.

 

4. O ABSOLUTO EM HEGEL

 

O Absoluto na filosofia de Hegel [16] , síntese da universalidade positiva de Agostinho e da teologia

 

negativa de Tomás de Aquino, está simplesmente em todas as partes do sistema. Como em nenhum outro autor, o Absoluto na filosofia neoplatônica de Hegel perpassa todo o sistema, permeia todas as argumentações, marca as linhas de fuga de todas as perspectivas. Não fosse Hegel tão objetivo, tão alheio a qualquer entusiasmo religioso, tão distante de qualquer devoção sentimental ou arroubo místico, dele deveria dizer-se que é o pensador religioso por excelência, o pensador que, mais que todos os outros, soube encontrar Deus em todos os lugares, em todas as suas manifestações e sob todos os disfarces. O sistema de Hegel, entretanto, é racional, é objetivo, é seco. Há uma explicação para este paradoxo: A religião em Hegel ficou tão universal, o Absoluto está de tal maneira presente em todas as coisas que não há por que dar destaque e privilegiar esta ou aquela forma de presença, pois todas elas são religiosas. O sistema de Hegel é tão profundamente religioso, está tão impregnado de Absoluto, a religião está tão onipresente que ela desaparece como que por falta de contraste. Como Deus está em todos os lugares, ele não está em nenhum lugar específico. Não há por que separar e dar destaque especial a algo que perpassa tudo e tudo determina. Os temas realmente importantes estão tão presentes e elaborados que não precisam ser expressos em terminologia religiosa, que não precisam de destaque sob a forma de religião. Religião é uma figuração do Absoluto, como a Arte e a Filosofia o são. À diferença das religiões, como o judaísmo e como o catolicismo neotomista, que separam o Absoluto do mundo, das coisas e de nós homens, o sistema de Hegel encontra e expõe o Absoluto em todos os pontos chaves do sistema. Todas as categorias da Lógica são predicados que atribuímos ao Absoluto: O Absoluto é ser, o Absoluto é nada, é devir, é estar-sendo-aí, é qualidade, quantidade, boa infinitude, medida etc. O Absoluto é essência e aparência, é identidade, diferença e contradição; o Absoluto é efetividade, ele é possibilidade absoluta, contingência absoluta, necessidade absoluta, ele é a liberdade do conceito. O Absoluto é conceito, é universal, particular e singular. O Absoluto é vida, é conhecer, é a idéia absoluta. Mas o Absoluto também é Natureza e, de maneira toda especial, o Absoluto é Espírito, é Eticidade, é Estado, é o curso e o julgamento da História. É na terceira parte do sistema – na Filosofia do Espírito -, que o Absoluto de Hegel – como em Agostinho – adquire maior esplendor e riqueza; na idéia que, saindo de sua alienação na Natureza e retornando à sua unidade, se reencontra consigo mesmo como Espírito, lá está o Absoluto. Este é o espírito absoluto, este o Absoluto em seu sentido pleno.

O sistema de Hegel, como todas as filosofias neoplatônicas, estrutura-se em três partes. Em Hegel, as três partes são a Lógica, a Filosofia da Natureza e a Filosofia do Espírito. A Lógica trata de Deus antes de criar o mundo; a Filosofia da Natureza trata do transbordamento da Lógica que, saindo de dentro de si mesma, engendra a Natureza, dentro da qual o Logos da Lógica fica como que alienado; ao sair da Natureza e retornar à identidade consigo mesmo, o Logos da Lógica transforma-se em Espírito e constitui a Eticidade, o Estado, o curso da História e, finalmente, o julgamento da História. A figuração em que culmina o sistema, o saber absoluto, contém, dentro em si, toda a riqueza do percurso que se desenvolveu a partir do ser vazio do início da Lógica, passando pelas figurações que adquiriu na Natureza e, depois, no Espírito. A última figuração do sistema é o saber absoluto. Este saber é chamado de Absoluto, porque ele é a totalidade em movimento, porque é o Universo vivente e vivificante em sua totalidade circular. Ele é determinado como saber, porque todos os seres e entidades, tudo que existe neste Universo, são formas mais ou menos elaboradas de saber, isto é, de conhecimento. O Universo inteiro, segundo Hegel, em todos os seus desdobramentos, é  vida, é conhecimento, é liberdade. Esta é a tese central do idealismo objetivo de Hegel.  Até as pedras, à maneira delas, são uma forma – muito alienada, é verdade – de conhecimento, de um conhecimento que saiu de si, perdeu-se na exterioridade e está como que à espera que o movimento circular da dialética o faça retornar ao aconchego de si mesmo, onde, então, volta a ser espírito.

O Absoluto, no sistema de Hegel, está em toda parte, em todas as categorias e em todas as figurações (as figurações são na Filosofia da Natureza e na Filosofia do Espírito a contrapartida daquilo que as categorias são na Lógica, a saber, predicados do Absoluto; figurações, na Filosofia Real, são as formas sob as quais o Absoluto se manifesta). Todas as categorias e todas as figurações são formas de expressão – e de ocultamento [17] – do Absoluto. Em dois lugares do sistema, entretanto, o Absoluto

 

aparece de forma privilegiada, na idéia absoluta, última categoria da Lógica, e no saber absoluto, última figuração da Filosofia do Espírito e, assim, figuração final de todo o sistema. A idéia absoluta é, de maneira toda especial, Deus, ela é o Deus antes de criar o mundo, como na primeira parte do sistema de Agostinho. O saber absoluto também é Deus, desta vez como o Deus no fim da terceira parte do sistema, como o Deus que acolheu dentro de si e interiorizou todo o curso da História, ou, usando os termos de Agostinho, como o Deus que é o centro da Jerusalém Celeste.

Temos aqui em Hegel, como em Agostinho, o mesmo Deus em dois estágios dialéticos diversos. O Deus no estágio tético e o Deus no estágio sintético. O primeiro, por absoluto e perfeito que seja, é mais pobre em determinações; na primeira parte do sistema, as determinações do Absoluto são apenas as categorias lógicas atemporais, que não incorporaram e por isso não contêm a História. O segundo, o saber absoluto, contém dentro em si – aufgehoben, superadas e guardadas – não só todas as categorias lógicas mas também todas as figurações da Natureza e do Espírito nas quais o Absoluto se expressou e concretizou. O Absoluto de Hegel neste segundo estágio dialético, no saber absoluto, é idêntico ao Deus da Jerusalém Celeste, em Agostinho. Em Hegel a conciliação e por isso a identidade mediatizada entre a natura naturans e a natura naturata está formulada de maneira mais conceitual, mais científica, com menos metáforas, com menos conteúdo histórico, sem terminologia religiosa. Nem por isso há grande diferença, a meu ver, entre o Deus hegeliano do saber absoluto e o Deus agostiniano da Jerusalém Celeste.

Diferença grande há, no entanto, entre o Deus da idéia absoluta, na Lógica de Hegel, e o Deus uno e trino antes de criar o mundo, na primeira parte do sistema de Agostinho. O Deus uno e trino de Agostinho é perfeitíssimo, é o bem supremo; a criação que engendra a segunda parte do sistema ocorre por liberdade, por amor, porque o bem é tão rico e exuberante que ele como que transborda e, ao sair de si e de seus limites, se consubstancia como natureza criada. O princípio platônico bonum est diffusivum sui é, aqui, a chave conceitual que permite, em Agostinho, a compreensão do nexo entre a primeira e a segunda parte do sistema, entre o Deus criador e a natureza criada. Em Hegel, este nexo não está tão claro. Hegel, no fim da Lógica, no capítulo sobre a idéia absoluta, também usa a expressão “a idéia deixa a natureza sair de si em liberdade”; para ser mais exato: “a idéia, absolutamente segura de si e repousando em si, liberta-se a si mesma”  (dass die Idee sich selbst frei entlässt, ihrer absolut sicher und in sich ruhend [18] ): e assim esta idéia, que era lógica, se transforma em Natureza. Tomando

 

estas as expressões ao pé da letra, não haveria nenhuma diferença relevante entre a idéia absoluta de Hegel e o Deus criador de Agostinho. Mas a arquitetônica de ambos os sistemas mostra que há uma diferença. A primeira parte do sistema de Agostinho trata do Deus uno e trino e da criação num plano claramente lógico-ontológico; Deus – o Deus da primeira parte - é ontologicamente perfeitíssimo, e a segunda parte do sistema nada lhe acrescenta de novo, nada lhe dá que ele já não tenha. O Deus da primeira parte se enriquece, sim, mediante a passagem pela segunda parte; mas este enriquecimento é apenas amor, é fruto do amor. E o enriquecimento de amor e por amor não é algo que pressuponha uma carência ou deficiência de parte de quem ama; este enriquecimento não torna rico quem antes era pobre, ele torna ainda mais rico quem já era plenamente rico, ele é aquilo que Agostinho chama de superabundância. Esta riqueza adicional, por se tratar de amor, é um transbordamento em que o amante fica mais rico, não em si mesmo, mas no outro: o amante enriquece, não em si mesmo, mas porque o outro, o amado, fica mais rico. Assim, em Agostinho, Deus ao criar o mundo fica mais rico, não por ser ainda imperfeito, mas porque sua perfeição superabundante transbordou, ou seja, porque a Natureza e o homem ficaram mais ricos.

Em Hegel, a Lógica, primeira parte do sistema, - me parece - não possui a riqueza da Natureza e do Espírito. As categorias, ao serem ampliadas como figurações da Natureza e do Espírito, se enriquecem e adquirem algo de novo, algo que elas antes não tinham. A Lógica de Hegel, embora não seja uma lógica formal, não possui a riqueza que se encontra na Filosofia da Natureza e, especialmente, na Filosofia do Espírito. – Estou lendo Hegel de forma rigorosa demais? Talvez. Mas, se a interpretação correta é esta que estou dando, então o Logos da Lógica, ao alienar-se na Natureza e voltar a si mesmo como Espírito, no começo, na primeira parte do sistema, é lógica e ontologicamente mais pobre do que no fim do sistema. A idéia absoluta, na Lógica, nesta interpretação, é menos perfeita que o saber absoluto, no fim da Filosofia do Espírito. E, se isto, é verdade, o Deus da idéia absoluta, em Hegel, é diferente do Deus da primeira parte do sistema, em Agostinho.

Seria equivocado chamar a Lógica de Hegel de algo formal, degradando, assim, a idéia absoluta a algo meramente formal. Em tal interpretação – a meu ver, equivocada – a idéia absoluta da Lógica, o Deus na primeira parte do sistema, seria meramente formal, o Deus do saber absoluto seria a síntese, muito mais rica, do formal (Lógica) e do material (Filosofia Real). O Deus do saber absoluto seria, ele sim, semelhante ao Deus agostiniano da terceira parte do sistema, da Jerusalém Celeste. Mas o Deus da idéia absoluta não poderia, nesta hipótese, ser identificado ao Deus agostiniano da primeira parte. O Deus da idéia absoluta precisa libertar-se, sair de si e engendrar a Natureza. Em Hegel, não obstante o termo liberdade que ocorre no texto citado, o processo é necessário e inexorável, ele é um notwendiger Fortgang des Gedankens, “a marcha inexorável do pensamento”. – Em Agostinho o mesmo processo, exatamente no mesmo ponto de articulação sistemática, na passagem da primeira para a segunda parte do sistema, a palavra chave é gratuidade, amor, superabundância. Há, portanto, uma diferença entre Agostinho e Hegel que não pode ser relegada a um segundo plano.

A primeira grande objeção contra Hegel refere-se ao próprio método dialético. Hegel afirma que a contradição é o motor da dialética. Deus, o saber absoluto, é, pois, fruto de uma longa série de contradições. É, ele mesmo, o saber absoluto algo contraditório? - Como conciliar esta doutrina sobre a contradição como motor da dialética, absolutamente central na Lógica de Hegel, com a validade universal do Princípio de Não-Contradição, princípio de toda e qualquer racionalidade? Com levar o sistema de Hegel a sério, se ele, ao dizer, está sempre se desdizendo? O problema da compatibilidade do método dialético com o Princípio de Não-Contradição é uma questão que analisei e, penso eu, resolvi em outro trabalho. Penso que o sistema de Hegel, por este lado, não pode ser atacado. Pois, quando Hegel fala de contradição, ele quer dizer sempre contrariedade. Se tese e antítese fossem realmente proposições contraditórias (no sentido técnico do termo), uma seria verdadeira, a outra, falsa; e toda a dialética – que pressupõe que tese e antítese são ambas falsas - entraria em colapso. Trendelenburg e Karl Popper teriam razão em suas objeções. Mas é fácil demonstrar que contradição no sistema de Hegel não significa contradição e sim contrariedade. Proposições são contraditórias se, partindo de uma proposição afirmativa universal, a transformamos em uma proposição negativa particular; a introdução da negação e a mudança do quantificador (de universal para particular) são essenciais. Em proposições contrárias, no entanto, parte-se de uma proposição afirmativa universal e constrói-se a proposição oposta mediante a introdução da negação, sem alterar o quantificador, que continua universal. Sobre isso há consenso entre os Filósofos, desde Aristóteles e Teofrasto até Frege e Bertrand Russel. Ora, analisando os primeiros passos da Lógica de Hegel, ser, nada, devir etc., verificamos que o sujeito da predicação e seu quantificador estão sempre ocultos. Ser, ser indeterminado, ser sem nenhum conteúdo é um anacoluto. A proposição está incompleta, falta-lhe algo. O que falta? Ser, neste anacoluto, é sujeito? Ou é predicado? Hegel mesmo, na Enciclopédia, afirma e repete que ser, nada, devir (todas as categorias lógicas) são predicados. É o sujeito lógico que está faltando, é o sujeito lógico que está oculto: Alguém é ser, alguém é nada, alguém é devir. Qual é este alguém? Qual o sujeito oculto que falta? Nos parágrafos 28 e 29, e principalmente no Zusatz do parágrafo 86 da Enciclopédia, Hegel nos diz com toda a clareza: O sujeito lógico das categorias elaboradas na Lógica é sempre o Absoluto (Das Absolute ist das Sein). Assim devemos completar as proposições, explicitando o sujeito oculto, e dizer: O Absoluto é ser, o Absoluto é nada, o Absoluto é devir [19] . - Ora, como o sujeito lógico é o mesmo na tese, na antítese e

 

na síntese, como não mudou nem o sujeito (o Absoluto) nem o quantificador (que é universal), trata-se, no jogo dialético de tese, antítese e síntese, de proposições contrárias e não de proposições contraditórias. Proposições contrárias, entretanto, podem perfeitamente ser ambas falsas; nisso, novamente, há unanimidade entre os Lógicos de Aristóteles até hoje. A dialética, ao articular tese e antítese como duas proposições falsas, não contraditórias, mas sim contrárias, não é mais atingida pelas objeções levantadas pelos Lógicos. A dialética não nega o Princípio de Não-Contradição, pelo contrário, nele se baseia. Esta primeira objeção, respondida plenamente como acima foi mostrado, não é mais objeção, nem contra o método dialético, nem contra o Absoluto de Hegel.

A segunda grande objeção contra o sistema e o Absoluto de Hegel refere-se ao necessitarismo que caracteriza o sistema e, como conseqüência, refere-se a um conceito de liberdade que não permite a livre escolha entre diferentes alternativas. Hegel utiliza o termo liberdade com grande desenvoltura e – mais – coloca a liberdade como o centro de seu sistema. A pergunta que se põe – e que muitas vezes foi de fato posta - é qual o conceito de liberdade de Hegel. Liberdade em Hegel sempre supõe a ausência de coerção externa; isto está perfeitamente claro. Mas é preciso ir adiante e perguntar: A liberdade em Hegel é, como em Espinosa, em Karl Marx e nos estóicos da Antigüidade, a aceitação de uma necessidade cósmica que vem de dentro de nós mesmos? Ou liberdade é a faculdade de, em face de alternativas diversas, escolher uma delas e não as outras? Hegel não é claro a este respeito. Em alguns lugares ele usa o termo liberdade no segundo sentido – que é o sentido de livre arbítrio em Agostinho, o significado de liberdade na filosofia moral de Kant e dos éticos contemporâneos -, mas na maioria das vezes liberdade em Hegel significa a aceitação da necessidade sistêmica que vem de dentro do próprio eu. Em minha opinião, Hegel queria, sim, pôr contingência e liberdade dentro do sistema. Este é, aliás, o grande projeto filosófico de sua vida: conciliar a substância de Espinosa com o eu livre de Kant. Mas penso que, na execução de seu projeto, Hegel não conseguiu o que queria. Pois cada parte do sistema, à medida que avança, vai gradativamente eliminando tanto a contingência como a liberdade no sentido de livre escolha. Cada parte do sistema começa com vasto espaço para a contingência e para a liberdade, mas este espaço vai sendo eliminado, de sorte que no fim de cada parte a pura necessidade se instala, e liberdade torna-se a aceitação da necessidade que rege o Universo. Assim, tanto a idéia absoluta como o saber absoluto estão impregnados de necessitarismo. Não se trata aqui de amor, de gratuidade, de superabundância, como em Agostinho, mas de necessidade – sem nenhuma contingência -, como em Espinosa. Se esta interpretação for verdadeira – temo que seja – o Deus de Hegel fica bem diferente do Deus de Agostinho e, em geral, do Deus das grandes religiões ocidentais.

Corrigir o sistema de Hegel neste ponto não seria difícil. Parece que Hegel – como Espinosa e Kant, entre os filósofos, Newton, Laplace e Einstein, entre os físicos – não consegue conceber racionalidade exceto como uma rede conceitual (causal) necessitária, que não tem furos ou lacunas, e que por isso não permite nunca a existência de alternativas contingentes; contingência, em tais teorias, é sempre tão somente um déficit subjetivo e momentâneo de racionalidade que o progresso da ciência fará desaparecer. – A evolução da própria física e, de maneira especial, as Teorias dos Jogos (Game Theories) mostram claramente que racionalidade pode e deve ser pensada de maneira diferente, de maneira que não só a necessidade mas também a contingência sejam nela incluídas e conciliadas. Um simples jogo de xadrez demonstra a possibilidade de conciliar movimentos necessários (movimentos que seguem as regras sem as quais não há xadrez) e movimentos contingentes (que podem ser assim mas podem ser também diferentes, de acordo com as táticas e estratégias aplicadas). Espinosa certamente nunca percebeu isso. Hegel, embora jogasse freqüentemente xadrez, provavelmente nunca pensou nisso. Se Kant tivesse percebido isso, não teria inventado a pseudo-solução de separar dois mundos, o mundo fenomênico do determinismo causal férreo e o mundo dos númenos onde reina a liberdade. -   A segunda grande objeção contra Hegel, a respeito do necessitarismo do sistema, da eliminação do livre arbítrio e, conseqüentemente, da concepção necessitária do Absoluto, revela-se procedente. Hegel, neste ponto – se estou correto em minha interpretação – errou. O sistema hegeliano pode ser corrigido? Penso que sim; aliás minha proposta, em outro capítulo deste mesmo livro, é uma tentativa de reconstruir o sistema hegeliano, corrigindo este erro.

A terceira grande objeção contra a teoria do Absoluto em Hegel gira em torno do panteísmo ou panenteísmo. Vimos, já em Agostinho, que esta objeção precisa ser analisada com cuidado. Toda e qualquer boa teoria sobre o Absoluto tem que conter algumas, pelo menos algumas, migalhas de panteísmo; na realidade, penso que não se trata de migalhas, mas de bocados bem grandes. Hegel, como não podia deixar de ser, foi ainda em vida acusado por vários autores de defender com sua doutrina sobre o saber absoluto uma forma moderna de panteísmo. Os trabalhos de E. H. Weisse (publicados em Leipzig, 1829), e de K. E Schubarth e L.A. Carganico (publicados em Berlim, 1829), que acusam Hegel clara e expressamente de panteísmo, foram respondidos pelo próprio Hegel em artigos que estão, hoje, publicados na edição Suhrkamp Werkausgabe da obra completa [20] . Hegel como polemista, na minha

 

opinião, deixa muito a desejar; a argumentação é tópica demais e, muitas vezes, apenas “ad hominem”. A verdadeira resposta de Hegel à acusação de ateísmo e de panteísmo – esta, sim, bem escrita,  soberana, abrangente e muito esclarecedora – encontra-se no Zusatz do parágrafo 573 da Enciclopédia [21] .

 

Hegel, neste texto, faz una análise conceitual do problema que por seu rigor especulativo merece ser lida na íntegra. Ele distancia-se de diferentes formas de ateísmo e panteísmo que considera erradas - e diz sempre por quê, trazendo as razões filosóficas – e termina distinguindo sua doutrina sobre o saber absoluto de um panteísmo chocho (schaler Pantheismus [22] ). A leitura cuidadosa deste texto, no qual

 

 

o próprio Hegel distingue o exotérico do esotérico [23] , me leva a crer que, considerando as observações

 

que fizemos sobre Agostinho e face às definições ali estabelecidas, Hegel deveria, como Agostinho, ser caracterizado de panenteísta. Isso, dito por mim, não significa um erro ou um déficit, mas sim um louvor. Um louvor a ambos, a Agostinho e a Hegel.

Encerro estas considerações sobre o Absoluto em Hegel com as mesmas palavras que ele disse sobre os filósofos neoplatônicos: Raramente, em sua História, o espírito humano se levantou tão alto.

 

 

 

II. A FUNDAMENTAÇÃO DA ÉTICA

 

 

1. PROPOSTA DE UM SISTEMA NEOPLATÔNICO

 

   Os sistemas aristotélicos e tomistas, ao adotarem a análise como único método de trabalho, cometem um erro que vai viciar todas as tentativas de articular uma filosofia que seja realmente universalíssima. Aristóteles e o Aquinate queriam, sim, uma filosofia universalíssima, mas o método – o método determinante – que adotam em seus sistemas, ao invés de conduzir a uma ciência que compreenda e abarque todas as outras ciências, leva à dispersão, leva à multiplicidade de ciências justapostas, leva à fragmentação do conhecimento e da razão. O método dialético, na síntese, junta, congrega, concilia. O método analítico abre, corta, separa, põe em separado. O método analítico é excelente, sim, é indispensável como um submétodo do método dialético; quando usado sozinho, leva a uma grande distorção intelectual. O conhecimento, quanto mais analisado, mais particular e especializado fica. As teorias, quanto mais analíticas forem, menos abrangentes se tornam. O método analítico, quando usado como método autônomo e único, ou seja, sem sua inserção no método dialético sintetizante e universalizante, leva a uma multiplicidade sempre maior de conhecimentos e teorias particulares. As concepções e teorias de quem usa exclusivamente o método analítico ficam, assim, cada vez mais estreitas, mais particulares, mais especializadas. Surgem, assim, as ciências particulares em sua multiplicidade, o que é ótimo. Mas surge, com isso, também a chamada pós-modernidade como visão do mundo, surge a fragmentação da razão, a incapacidade de formular uma ciência que seja universal, e isso leva à morte da filosofia como ciência universalíssima, o que é péssimo. O horizonte amplo de uma ciência universalíssima, este foi perdido para sempre. Eis por que, a filosofia analítica de Aristóteles, de Alberto Magno e de Tomás de Aquino – especialmente na forma nominalista e empirista que se desenvolveu na Inglaterra - teve o mérito de ser o berço da Física de Newton e de todas as ciências particulares da Modernidade, mas teve também o demérito de pensar o Absoluto como uma transcendência meramente negativa, como um conceito vazio e sem determinação, como um Deus que é tão transcendente que, a rigor, ele não poderia ser onipresente, não poderia estar entre nós, não poderia nem mesmo, na encarnação, fazer-se o Deus-Homem, pois não podendo ter relações reais ad extra, está sempre prisioneiro de sua transcendência. Em termos filosóficos: todas as proposições sobre o Absoluto são incorretas, todas as determinações que lhe atribuímos são sempre falsas. A solução proposta, a doutrina sobre a analogia, não funciona; exceto é claro, se abandonamos a unicidade do método analítico e retornamos ao uso do método dialético que, mais amplo e mais alto, contém dentro de si, como um submétodo, o método analítico.

    Conjugando ambos os métodos, como fazem os filósofos neoplatônicos (Agostinho, Cusanus, Espinosa, Schelling, Hegel), o sistema filosófico [24] é articulado em torno de uma

 

substância única, que, ao desdobrar-se plica por plica, é passível de ex-plicação num sistema racionalmente uno. Na dialética ascendente, parte-se da pluralidade das coisas concretas para subir, degrau por degrau, conhecimento por conhecimento, teoria por teoria, de forma sempre mais abrangente e universal até chegar à teoria geral do Universo, aos primeiros princípios que regem todos os seres e entidades. Na dialética descendente, faz-se o caminho inverso. Partindo dos primeiros princípios, que são universalíssimos, é preciso reconstruir a Universo em sua pluralidade variegada. Na Lógica, primeira parte do sistema, é elaborado e formulado o primeiro princípio lógico e ontológico, que se desdobra em três subprincípios (identidade, diferença e coerência) e constitui as grandes leis que regem o Universo. Na Filosofia da Natureza, segunda parte do sistema, esta ex-plicação se apresenta como um longo processo de evolução, em que a partir do ovo inicial – explicatio ab ovo -, isto é, a partir dos primeiros princípios, todos os seres e entidades, todas as multiformes e variegadas coisas do Universo, dobra por dobra, plica por plica, se desenvolvem. Na Filosofia do Espírito, o Logos que já está na primeira parte, na Lógica, ou seja, nos primeiros princípios, e que passou pelas figurações da Natureza, na segunda parte, volta e reencontrar-se consigo mesmo na figura de Espírito, que constitui a terceira e última parte. No espírito absoluto, que é a última figuração desta terceira parte, que é síntese de todo o sistema, todas as etapas de sua trajetória estão superadas mas também guardadas. O espírito absoluto guarda e contém todas as categorias e figurações naquilo que elas têm de positivo, ele superou tudo que apenas dividia, apenas travava, era apenas empecilho.

   Começo, numa primeira parte, com uma análise metalógica daquilo que é sempre pressuposto em todo e qualquer discurso, a saber, a Identidade, a Diferença e a Coerência, ou seja, o Princípio de Não Contradição, que, juntos, constituem o primeiro grande princípio do sistema. Numa segunda parte, verifico o que acontece quando o grande princípio metalógico, elaborado na primeira parte, é traduzido, com os três momentos que o compõem, para a linguagem das ciências da natureza e é a estas aplicado. Na terceira parte, traço as linhas mestras de uma Filosofia do Espírito, especificamente de uma Ética Geral, que brota como que ao natural da primeira e da segunda parte.

 

 

                                                       1.1. METALÓGICA

 

   Coloco como começo, como fundamento, de minha demonstração a proposição tautológica A = A . Poderia utilizar aqui qualquer outra tautologia, como B = B, ou Sócrates = Sócrates, Universo = Universo etc. Interessa, aqui, ao argumento a tautologia perfeita, pois a proposição tautológica é sempre e necessariamente verdadeira. Ninguém jamais discordou disso, ninguém consegue pôr isso em dúvida. Eis o primeiro princípio que levanto: a identidade expressa na proposição tautológica A = A . Denomino-o Princípio da Identidade; veremos, logo depois, que o Princípio da Identidade, a rigor, é um subprincípio que, junto com Diferença e Coerência, constitui o único e uno grande princípio do sistema.

   O Princípio da Identidade, assim formulado, é sempre verdadeiro e pressupõe como condição necessária de sua possibilidade dois elementos que estão nele contidos de maneira implícita. A identidade simples do A e a iteração deste A, de sorte que possamos colocá-lo uma vez à esquerda, a outra vez à direita do sinal de igualdade. Podemos iterar novamente a operação toda, construindo assim a série A = A = A ... Explicitando os elementos necessários nele contidos, o Princípio da Identidade se desdobra, pois, em três subprincípios: identidade simples, identidade iterativa, identidade reflexa.

 

              PRINCÍPIO DA IDENTIDADE

                  - Identidade simples: A

                  - Identidade iterativa: A, A, A ...

                  - Identidade reflexa: A = A

 

   O Princípio da Identidade, que eu saiba, jamais foi por alguém negado, pois quem o pretende negar sempre o pressupõe de novo. A identidade simples e a identidade iterativa são condições necessárias de possibilidade da proposição tautológica e possuem, portanto, igual verdade e necessidade. Este é o primeiro subprincípio da Metalógica de toda e qualquer linguagem.

   O segundo subprincípio da Metalógica diz que, além do A, identidade simples, identidade  iterativa e identidade reflexa, há na linguagem outras entidades como o B, o C, o D..., como a disjunção, a conjunção, a implicação etc., como as varáveis lógicas. Há também, inarredável e irremovível, o ato de fala. O segundo subprincípio diz apenas que, além da proposição tautológica A = A, existe algo mais, uma alteridade, uma diferença, que aparece sob a forma de signos semântico-lingüísticos, como B, C, D... e de conexões sintático-lingüísticas, como implicação, disjunção etc., como varáveis lógicas, bem como de atos de fala, a base pragmática de toda e qualquer linguagem. Sem isso, não há fala, não há linguagem, não há possibilidade de argumentação. O Princípio da Diferença - assim o chamo - expressa também condições necessárias de possibilidade de toda e qualquer fala que vá além da mera tautologia. Ele expressa e explicita - e isto é aqui de grande importância - a necessidade do ato de fala, que, embora em si contingente, é condição necessária de possibilidade da linguagem. A necessidade lógica da proposição tautológica, para ser expressa em linguagem, pressupõe sempre, como condição necessária, a existência contingente de algum ato de fala. A necessidade, aqui, pressupõe como seu fundamento a facticidade do ato de fala contingente. Em outras palavras e com rigor ainda maior: A existência contingente do ato de fala é condição necessária de possibilidade para que a necessidade lógica da proposição tautológica venha a ser expressa em linguagem. A necessidade, aqui, depende da facticidade contingente; como, aliás, nos primeiros axiomas das lógicas modais, onde a possibilidade e a necessidade de p são derivadas da facticidade de p. O Princípio da Diferença introduz, para além da identidade de A, isto é, da tautologia, uma diferença, uma alteridade, algo que não é A e sim B, ou C, ou D etc.

 

                  PRINCÍPIO DA DIFERENÇA

                     -Emergência da alteridade: B, C, D...

                             -outros operadores lógico-semânticos (implicação, disjunção, etc.)

                             -as variáveis lógicas

                             -o ato contingente de fala (facticidade)

 

Pergunta-se, agora, se esta diferença, se esta alteridade pode ser derivada de A por dedução rigorosa. Ou, em outras palavras: B, a diferença, está pré-programada em A, ou na série iterativa de A, A, A ... ou na tautologia A = A ? Muitas entidades podem certamente ser derivadas da tautologia, mas a pergunta aqui é dura e cabal: Pode-se deduzir toda e qualquer diferença existente no universo da tautologia inicial? Tudo, toda a Lógica, todo o Universo, todas as coisas, inclusive nosso ato contingente de fala está pré-programado na tautologia inicial? Que eu saiba, nenhum lógico jamais afirmou isso; para fazer Lógica são precisos, além da tautologia, outros axiomas, as variáveis e os atos de fala. Mas, quanto à natureza e ao universo, há, sim, na História da Filosofia, autores que pensavam poder deduzir tudo de um ou dois primeiros princípios. Platão, Fichte, Schelling e talvez Hegel podem ser aqui citados como defensores da tese de que tudo está pré-programado no primeiro princípio. O ovo inicial conteria, como implicatum, tudo o que depois dele se desenvolveria necessariamente como explicatum. A Filosofia seria a ciência que faz a explicatio ab ovo, que reconstrói a partir do ovo inicial, plica por plica, dobra por dobra, todo o desenvolvimento do Universo. Todo o universo com a multiplicidade das coisas e entidades que o constituem, inclusive nosso ato de fala, estaria assim pré-programado no primeiro subprincípio; quem conseguisse captar e decodificar esta programação inicial poderia predizer todos os acontecimentos que ocorreram, que ocorrem e que irão ocorrer no curso do desenvolvimento do universo. Temos aqui o determinismo radical e o necessitarismo total, que eliminam a contingência do sistema e tornam assim a liberdade de escolha impossível. Estes pensadores negam o Princípio da Diferença, pois toda e qualquer diferença seria apenas um ulterior e necessário desenvolvimento do primeiro subprincípio, que é a identidade. Repito a pergunta: Está tudo pré-programado no primeiro subprincípio? Ou existem entidades, seres, coisas, que não estão pré-programados e se constituem assim em diferença real, em alteridade verdadeira, em facticidade de um B que se opõe à necessidade do A = A e a esta não se deixam reduzir? Quem diz que tudo está pré-programado não precisa do Princípio da Diferença, mas fica com o ônus da prova: ele precisa deduzir realmente tudo, todo o universo, a partir de A = A . O Senhor Krug [25] , como sabemos, exigia de Fichte que deduzisse a pena com a qual ele

 

estava escrevendo. Isso é possível? Isso foi tentado; tentativas existiram, mas há hoje entre os filósofos unanimidade sobre o fato de que todas elas fracassaram. Além disso, temos hoje a demonstração feita por Goedel: Foi demonstrado com exatidão e rigor que há, em qualquer sistema axiomatizado, proposições verdadeiras que não podem ser nele deduzidas. Além do argumento de Goedel, há a facticidade indedutível do ato contingente de fala. O ato contingente de fala, se realmente dedutível, deixaria de ser contingente e tornar-se-ia necessário; contingência e dedutibilidade não são co-possíveis. Concluo, pelas razões expostas, que o Princípio da Diferença é verdadeiro e como tal o introduzo, dando ênfase especial à facticidade do ato de fala: pelo menos meu ato de fala, em sua facticidade contingente, não está pré-programado no Princípio de Identidade, A = A, não é dele dedutível, não é conseqüência necessária de um princípio necessário e necessitante.

   Em face da radical facticidade, da existência contingente de meu ato de fala (e de tantas outras coisas mais), concluí acima que nem tudo está pré-programado na identidade primeira, sendo assim necessário introduzir como verdadeiro o Princípio da Diferença, que para além do A, introduz um B, um C, um D etc. Observe-se aqui que isto, a facticidade específica do ato de fala, não é mais algo a priori, e sim algo a posteriori. Aqui temos, numa análise metalógica dos atos de fala, no elemento pragmático da linguagem, a raiz da contingência e da historicidade. Uma metalógica que contemple a pragmática - e hoje não pode deixar de faze-lo - introduz contingência e facticidade no sistema. Superamos com isso, como veremos no final deste trabalho, a raiz mais profunda do erro sistêmico cometido por Fichte, Schelling e Hegel.

   A diferença, ou seja, a emergência do novo cria uma nova situação na qual vige o Princípio da Coerência. Além da identidade tautológica do A = A, há um B, um C, um D etc., que não são o A nem estão nele pré-programados. Duas coisas podem, então, ocorrer. Pode ocorrer, primeiro, que um dos pólos anule e elimine o outro, isto é, pode ocorrer que um dos pólos seja verdadeiro e o outro seja falso. Aqui surgem e atuam as regras lógicas de inferência, segundo as quais, por exemplo, se uma proposição A (afirmativa universal) é verdadeira, a correspondente proposição contrária E (negativa universal) é necessariamente falsa. Nestes casos, a diferença que emergiu e se opôs à Identidade do A é logicamente eliminada; a emergência do novo, neste caso foi extremamente fugaz, pois as regras de coerência, face à verdade de A, eliminaram, com necessidade lógica, as proposições a ela contrárias (E) e contraditórias (O). A coerência, neste primeiro caso, se faz por eliminação de um dos dois pólos que entram em contradição. Percebe-se, entretanto, de imediato que tal maneira de estabelecer a coerência não contribui em nada para o surgimento da variedade e da multiplicidade, pois a anulação não constrói e sim destrói.

   Esta primeira maneira de restabelecer a coerência é aquela que conhecemos e utilizamos na Lógica contemporânea: a eliminação de um dos dois pólos em contradição. Há, ainda, uma segunda maneira de restabelecer a coerência, hoje não mais utilizada em Lógica matemática, que consiste na velha e tradicional regra que manda, se e quando necessário, fazer as devidas distinções. Por exemplo: Sócrates é maior e menor do que 1,60 m. Ambas as proposições podem ser mantidas como verdadeiras, se e quando se fizerem as devidas distinções: Sócrates, enquanto está de pé, é maior que 1,60 m, Sócrates, enquanto está sentado, é menor que 1,60 m. O Princípio de Coerência, neste segundo caso, ao invés de eliminar um dos dois pólos em contradição, conserva ambos os pólos opostos, o que é logicamente possível pela reduplicação feita no sujeito lógico da proposição mediante a introdução das devidas distinções. Aqui se abre o espaço para a emergência da multiplicidade e da variedade. Observemos aqui a novidade: Esta segunda maneira de resolver as contradições emergentes se formula como um princípio deôntico: É preciso fazer as devidas distinções, deve-se fazer as distinções sem as quais a contradição explode em nossa cara e destrói a racionalidade. O Princípio de Não-Contradição, quando anula lógica e necessariamente um dos dois pólos opostos, é um princípio necessário e necessitante. O Princípio de Não-Contradição em sua segunda forma, mais ampla e mais construtiva, é um princípio deôntico. Temos aqui, na própria formulação do Princípio de Não-Contradição o fundamento último do dever-ser. Muito antes da Ética propriamente dita, já agora, na Metalógica, temos a emergência e a fundamentação do dever-ser como operador modal do Princípio da Coerência. Ou, invertendo a posição, já estamos em território da Ética, pois o operador lógico que utilizamos no âmago da Metalógica é o dever-ser. A passagem de proposições descritivas e lógico-necessárias para proposições normativas faz-se já aqui, na Metalógica, mediante a autofundamentação do Princípio de Não-Contradição, que, para ter validade universal, precisa ser formulado com o operador deôntico. A Ética propriamente dita é apenas uma ulterior expansão da Metalógica.

 

      PRINCÍPIO DA COERÊNCIA

             - eliminação de um dos dois pólos opostos

             - introdução de novos aspectos pela elaboração das devidas distinções

 

      Existem outras proposições, outros princípios de Metalógica? Existem, sim, mas aqui não precisamos deles; eles são introduzidos quando da elaboração ulterior dos diferentes subsistemas lógicos. Sintetizando, os três subprincípios são os seguintes:

 

 

Subprincípios da Metalógica         

1. Identidade

    - simples  A

    - iterativa  A,A,A ...

    - reflexa  A = A                      

 

2. Diferença

     o novo, o diferente   B

                                                  

 

3. Coerência

  - eliminação de um dos pólos  

  - fazer as devidas distinções   

 

 

 

Os três princípios metalógicos elaborados acima se imbricam, um com o outro, e constituem o único e uno grande princípio da Filosofia; eles são, como veremos, fundamento bastante para construir uma Filosofia da Natureza e umd Filosofia do Espírito, especificamente de uma teoria geral do dever-ser. O dever-ser é, aqui, introduzido e fundamentado  como o operador modal do Princípio da Contradição a ser evitada, da contradição que deve ser evitada (ou, como diz Apel, das Prinzip des zu vermeidenden Widerspruchs). A questão que, em face das posições de Apel, Habermas, Höffe e tantos outros, aqui surge é a seguinte: Pode-se desta Metalógica ir direto para a Ética Geral, sem passar por uma Filosofia da Natureza?  A Ética do Discurso faz isso. Habermas e Apel partem da contradição performativa a ser evitada e constroem, de imediato, a Ética Geral, introduzindo já aqui os princípios D e U. Não há, para eles, nenhuma mediação através da Natureza, não há para eles nada que se interponha entre a Metalógica e a Ética Geral. Mais, para eles o discurso filosófico se concentra apenas em dois pontos, uma Filosofia da Linguagem e uma Ética Geral. A Filosofia da Natureza para eles, bons kantianos que são, desapareceu, o estudo da natureza é entregue às ciências empíricas, à Física e à Biologia. Seja-me permitido discordar e fazer a mediação através de uma Filosofia da Natureza. No projeto de sistema que proponho, depois da Metalógica coloco uma Metafísica e uma Metabiologia, para só depois chegar à Ética Geral, ou, na terminologia de Hegel, à Filosofia do Espírito. Restabeleço assim a seqüência hegeliana: Lógica, Natureza e Espírito.

 

 

                                                           1.2. METAFÍSICA

 

 

            A passagem da primeira parte do sistema, da Metalógica, para a segunda parte, a Natureza, sempre foi uma construção intelectual extremamente delicada, complexa e prenhe de graves conseqüências. Em Hegel, a última categoria da Lógica, a idéia absoluta, "deixa sair de si, livremente," a Natureza. Nas exatas palavras de Hegel: A passagem aqui deve ser entendida de tal maneira que a idéia se deixa sair de si mesma, segura absolutamente de si própria e repousando em si mesma" (das Übergehen ist hier vielmehr so zu fassen, dass die Idee sich selbst frei entlässt, ihrer absolut sicher und in sich ruhend) [26] . A Natureza, segundo


as palavras de Hegel, seria algo que emana livremente da Lógica; Natureza é a Lógica que saiu de dentro de si mesma e está agora fora de si, está alienada. Sabemos, entretanto, que a dinâmica interna do sistema de Hegel não permite esta leitura contingente e libertária; liberdade, em Hegel, é um processo necessário e necessitante, pois a contingência vai sendo gradativamente eliminada do sistema. A Lógica engendra necessariamente a Natureza e, já por isso, esta Natureza não tem espaço para a contingência e a verdadeira historicidade, tornando todo o sistema uma construção determinista e necessitária. A passagem da Lógica para a Natureza é um movimento logicamente necessário, pensa e diz Hegel, de sorte que a Natureza assim originada é, ela mesma, produto necessário de um processo inexorável. Hegel, neste exato lugar, errou, e errou muito, pois as conseqüências sistêmicas são enormes. Se esta passagem é necessária e necessitante [27] , todo o sistema se fecha, o


sistema torna-se necessitário e exclui, assim, a contingência e a liberdade no sentido contemporâneo do termo. Liberdade transforma-se, assim, para Hegel, em consciência da necessidade. Hegel errou, sim, então o que fazer? Perguntamos aqui: É possível fazer esta passagem de outra maneira? É possível fazer esta passagem de sorte que a Natureza não fique, em si mesma, necessária? Como fazer esta passagem de maneira que o sistema fique um sistema aberto, aberto para as contingências e para os atos de livre escolha, aberto para o exercício da liberdade e da responsabilidade no sentido contemporâneo da palavra? Cientes das questões cruciais que cercam esta passagem da Lógica para a Natureza, voltemos um passo para trás e recomecemos o raciocínio a partir dos três princípios da Metalógica.

   Princípios, para serem verdadeiramente princípios, devem ser universalíssimos. Para serem universalíssimos, os primeiros princípios devem valer para todas as coisas e entidades, devem ser aplicados a todas as coisas, inclusive a si mesmos. Princípios universalíssimos devem ser, pois, também aplicáveis a si mesmos, devem valer de si mesmos. O único e uno grande princípio elaborado na Metalógica é aplicável a ele mesmo? A resposta é decididamente positiva. O grande princípio se aplica a si mesmo de forma geral e, moduladamente, a cada uma de suas três partes, ou seja, a seus subprincípios. Quanto ao Princípio da Identidade e ao Princípio da Coerência, não há problemas. A Identidade é sempre idêntica a si mesma, a Coerência é sempre coerente consigo mesma. O primeiro e o terceiro subprincípios são, como de imediato se vê, auto-aplicáveis e podem, sob este aspecto, ser considerados como momentos de um princípio universalíssimo. Mas, vale o mesmo para o segundo subprincípio? Ou surge, aqui, uma antinomia lógica? O Princípio da Diferença que emerge sem estar pré-programada na Identidade que a antecede, este Princípio da Diferença é diferente de si mesmo? A Diferença é diferente dela mesma? Se ela é diferente dela mesma, então, ela não é diferença e, não sendo diferença, ela é identidade. Se ela é identidade, então ela não é diferença: a diferença não é diferença e sim identidade. Este é o primeiro lado da antinomia. O segundo lado da antinomia é o seguinte: Mas, se a diferença é idêntica a si mesma, então, ela, por isso mesmo, é diferença e exige ser vista e tratada como tal. A diferença é diferença e não identidade. Este, o segundo lado da antinomia. Vê-se claramente que a diferença, quando aplicada a si mesma, se torna uma antinomia lógica estrita [28] .

Sendo diferente, ela é idêntica; sendo idêntica, ela fica diferente. E assim aqui, como em todas as antinomias estritas, oscilamos entre uma proposição e a outra, movidos por uma tremenda força lógica que não nos permite parar.

    Temos aqui, no Princípio da Diferença, exatamente o mesmo problema que Frege e Bertrand Russell tinham com a classe vazia; temos o movimento incessante que nos joga da verdade para a falsidade, de um lado da antinomia para o outro lado, sem jamais parar. Não há por que se admirar. Qualquer princípio autoflexivo, se e enquanto negativo, fica antinômico. O que não podemos, sem perder a racionalidade, é ficar no vaivém da antinomia. Sabemos, desde Bertrand Russell, que a solução para a antinomia consiste na distinção entre níveis de linguagem [29] ; engendrando novos níveis de linguagem, podemos e devemos evitar a

antinomia. Em nosso caso, aqui, no que toca o Princípio da Diferença, o problema é o mesmo e a solução parece ser a mesma. Também aqui podemos e devemos engendrar níveis diversos de linguagem. A Diferença é necessária e idêntica a si mesma enquanto ela é princípio principiante de uma Metalógica, mas ela é contingente enquanto é engendrada como diferença, enquanto é principio principiado. A diferença é necessária como principium principians, é contingente como principium principiatum. Ou, na terminologia de Espinosa, a diferença é necessária enquanto natura naturans, é contingente enquanto natura naturata. O impetuoso movimento, ínsito em todas as grandes antinomias, ocorre também aqui, no Princípio da Diferença. Desencadeia-se, aqui, uma força metalógica, um movimento primevo e poderoso, que, num primeiro momento parece fazer tudo implodir, mas, num segundo momento, quando se engendra a solução da antinomia mediante a introdução de diferentes níveis, constitui-se no próprio motor de desenvolvimento do sistema dialético. Pois o movimento engendrado pelo Princípio da Diferença faz surgir a multiplicidade de níveis, ou seja, a diferença entre eles. Num primeiro nível, o Princípio da Diferença é idêntico a si mesmo e necessário, num segundo nível, ele é, embora idêntico a si mesmo, diferente de si mesmo. O engendramento da diferença, que aqui aflora, é, em dois momentos consecutivos, antinomia e solução da antinomia. O vigoroso movimento de um lado para o outro faz, aqui, que a diferença seja engendrada como algo que é, embora idêntico a si mesmo, diferente de si mesmo. Esta é a Diferença primeva, que é, primeiro, uma antinomia estrita, logo depois, a solução de uma antinomia.

   Impõe-se, agora, a pergunta: Quando a Diferença é apenas antinomia? Quando, solução de antinomia? A resposta é clara, certa e decidida: Se a multiplicidade de níveis ou aspectos é engendrada, então a antinomia está resolvida; isso sabemos desde Bertrand Russell. Se não é engendrada a multiplicidade de níveis, então não há solução. Ficar na antinomia é, não apenas incômodo, mas também irracional. Pois, desde sempre estamos, em nosso discurso real, fora da antinomia, sabendo e aceitando a multiplicidade ínsita na diferença que permeia nossos atos de fala e que os determina como contingentes e históricos. A Diferença, além de ser um subprincípio do primeiro princípio,  é um fato real existente, ela é e existe como a realidade a partir da qual construímos toda a Metalógica. Conclui-se que a Metalógica, desde sempre, pressupõe uma Natureza, uma Natureza real e contingente como nossos atos de fala [30] . A

estrutura lógico-semântico-pragmática do primeiro grande princípio da Metalógica e de seus três subprincípios nos leva, através de uma antinomia básica existente no segundo subprincípio, a postular e a introduzir a existência de uma Natureza que, diferentemente da Metalógica, é em si contingente e histórica. A força e a violência do pulsar antinômico não leva, aqui, a uma explosão, mas a uma solução: A Metalógica deixa sair de si, livremente, a Natureza. A Natureza, contingente e histórica como nossos atos de fala, existe como algo diferente e distinto da Metalógica. A primeira parte do sistema engendrou a segunda parte, sim, mas esta passagem não se fez de maneira necessitária. A Natureza, aqui, é contingente e o espaço para a liberdade e a responsabilidade estão, assim, abertos. A Natureza aparece aqui sob seu duplo aspecto: Ela é necessária enquanto condição necessária de possibilidade de nosso pensar, ela é contingente, ou seja, não necessária, enquanto existe de fato como algo contingente. Disso decorre algo de suma importância para o método do filosofar: Esta Natureza, sendo contingente, não pode ser deduzida de maneira lógica e a priori. A mesma análise lógico-semântico-pragmática que nos levou aos primeiros princípios da Metalógica nos leva agora a uma Natureza que se desenvolve contingentemente, a uma Natureza que se desdobra
em História Natural. O conhecimento analítico a priori abre, agora, espaço para que o conhecimento seja também a posteriori. A Filosofia da Natureza - em oposição clara a Schelling e a Hegel - é uma disciplina em que o a priori não reina sozinho, não, ele se concatena com o a posteriori, formando uma tessitura racional, sim, mas contingente. Quais, então, os princípios de uma tal Filosofia da Natureza? Quais os princípios que regem seu desenvolvimento contingente e histórico?

   Se a segunda parte do sistema se engendra a partir da primeira; se o único e uno grande princípio com seus três subprincípios são verdadeiramente princípios que regem todas as coisas, então também a Natureza tem que ser regida pelos Princípios da Identidade, da Diferença e da Coerência. Os princípios têm que ser os mesmos; isto é a priori. É isso que ocorre? É, de fato, assim, a posteriori?  Verificamos, olhando para a Natureza, a posteriori, pois, que é de fato assim. Podemos, a partir dos três  subprincípios da Metalógica, construir de imediato uma Metabiologia. Pois, desde Charles Darwin, praticamente todos os biólogos concordam em dizer que a Natureza se faz e desenvolve segundo certos princípios. Quais os primeiros princípios de uma tal evolução contingente e histórica? Se estamos corretos em nossa visão, eles devem ser os mesmos que mapeamos na Metalógica. Coloquemos, para verificar, os princípios da Metalógica e os de uma Metabiologia, como os biólogos hoje a concebem, lado a lado. Disso resulta o seguinte quadro de correspondências:

 

 

                                  METABIOLOGIA

 

Subprincípios da Metalógica      Princípios da Metabiologia     

1. Identidade

    - simples  A                             indivíduo                              

    - iterativa A, A, A ...                 reprodução, família                                                            

    - reflexa  A = A                        espécie                                 

 

2. Diferença

     o novo, o diferente   B            emergência do novo,

                                                    mutação por acaso              

 

3. Coerência

  - eliminação de um dos pólos   morte = seleção natural

  - fazer as devidas distinções    adaptação = seleção natural

 

 

A passagem da Metalógica para as múltiplas Lógicas formais e para as Matemáticas se faz a priori pela introdução paulatina de novos axiomas lógicos que se somam aos três princípios metalógicos antes elaborados. Lógica formal e Matemática são ciências que trabalham de modo estritamente a priori, nelas não há facticidade nem existências contingentes. Nas ciências formais tudo que pode ser necessariamente é o que é. Aqui existem apenas os dois operadores modais clássicos, possibilidade e necessidade. O que é possível é necessário de maneira positiva, o que não é possível, o impossível, também é necessário só que de maneira negativa. A passagem para a Natureza, como vimos, não é assim. O movimento antinômico do segundo grande princípio, do Princípio da Diferença, é resolvido e superado pela introdução da multiplicidade fática de diversos níveis; a facticidade real, a existência contingente de diversos níveis é o elemento que permite que os três primeiros princípios deixem de operar no vazio, no vácuo, como uma engrenagem meramente formal, na qual a multiplicidade emerge de dentro da identidade para logo depois nela desaparecer de novo. Este foi o erro que Hegel cometeu e que nós, hoje, queremos todos evitar. A facticidade do ato de fala, que existe como algo contingente, é o elemento modal em que surge a Natureza. Determinada e entendida assim, a Natureza não pode nem deve ser uma ciência formal e a priori, como a Lógica e a Matemática. Sendo uma ciência que lida com fatos contingentes, que podem ser e podem não ser mas que de fato são, a Filosofia da Natureza tem que ser uma ciência parcialmente a priori, parcialmente a posteriori, na qual o surgimento e o desenvolvimento das coisas contingentes são entendidos e compreendidos como uma História Natural [31] . O curso do


desenvolvimento dos seres naturais, a partir de seu primeiro começo - ab ovo - até a multiplicidade que conhecemos do mundo em que vivemos, é um processo de evolução regido por leis que, desde o começo, o determinam e dirigem. Quais são estas leis? Se estamos corretos no que afirmamos acima, os princípios necessariamente têm que ser o mesmos, os Princípios de Identidade, de Diferença e de Coerência. E de fato, o são. A  estrutura da Metabiologia é exatamente a mesma da Metalógica. O que os Biólogos chamam de darwinismo, ou seja, a Teoria Geral da Evolução é, na realidade, uma velha teoria neoplatônica sobre a explicatio mundi, sobre o desenvolvimento das coisas a partir de um ovo inicial (explicatio ab ovo).

   O Princípio da Identidade, em Metabiologia, fundamenta o indivíduo e, como Subprincípio de Iteração marca profundamente toda a Biologia. Biologia explica os seres vivos, e seres vivos são aqueles que possuem a incrível capacidade de reproduzir-se. A reprodução, no âmbito macro, e a replicação no âmbito celular são características absolutamente centrais da Biologia. Em nosso século a Teoria do Caos Determinístico, iniciada por David Ruelle e Robert May, e a geometria dos fractais, principalmente em Mandrebrot [32] , abriram espaços para

enormes progressos na ciência. Observemos, aqui, que tanto a Teoria do Caos Determinístico como a geometria dos fractais possuem como núcleo duro cálculos iterativos e sempre e necessariamente neles se apóiam. A multiplicidade das formas da Natureza viva, determinada pelo Caos Determinístico e expressa em geometria fractal é a concretização, na Natureza, de processos iterativos. Também a Teoria de Auto-organização, de enorme importância em nossos dias, fundamenta-se no subprincípio da Identidade Iterativa. O movimento circular de auto-organização, que é filosoficamente uma forma de autocausação, é uma forma de concretização da Identidade que se organiza como tal e se repete. - Só que estes processos, para poderem perdurar, são objeto da seleção natural: aqui entra e atua, o Princípio da Coerência.

   Como passar da Metabiologia para a Metafísica? A elaboração de uma Metafísica hoje ainda não está disponível, porque os Físicos, como sabemos, ainda não conseguiram elaborar a grande teoria sintética em que estejam compatibilizadas tanto a mecânica clássica e a teoria da relatividade como também a mecânica quântica. Mas muitos esforços são feitos nesta direção e a grande teoria, síntese da relatividade e da mecânica quântica, ainda não está disponível mas já desponta no horizonte. Se as teses acima expostas sobre Metalógica e Metabiologia estão certas, as leis da Metafísica têm que ser as mesmas, a saber, Identidade, Diferença, e Coerência. A mecânica clássica e a teoria geral da relatividade, em sua concepção geral, apontam para o núcleo necessitário da Identidade e da Coerência dura. As incertezas, a lógica e o cálculo probabilísticos, as variáveis aleatórias, a vaguidade de situações caóticas e difusas, típicos da mecânica quântica, tudo isso aponta para o Princípio da Diferença.

  A Matemática do século XXI, diz David Munford num artigo que faz o elenco dos problemas matemáticos pendentes de solução - em livro publicado por autores conhecidos, como M. A . Tiyha, V. Arnold, P.Lax e B. Mazur [33] -, deverá substituir a lógica clássica, núcleo duro da

matemática tradicional, por uma lógica soft, isto é, probabilística, com múltiplos graus de contingência e de liberdade. Isto permitirá, então, em futuro próximo, como diz W. Witten, no mesmo livro, a elaboração da assim chamada Teoria M (de mãe, mistério ou mágica), na qual estarão conciliadas as teorias da relatividade e da mecânica quântica, especificamente, as teorias das cordas e das supercordas. A existência e a repetição dos mesmos padrões e dos mesmos princípios básicos em todas as grandes teorias da Física e da Biologia está levando os cientistas mais e mais a procurar aquilo que E. Wilson [34] , num livro que não pode ser

 

bastante encomiado, chama de Consilience. Sejam aqui citados, além de Wilson e de Witten, Ilia Prigogine [35] , Steven Kaufmann [36] , Richard Dawkins [37] , John D. Barrow [38] , David

 

Deutsch [39] , Lee Smolin [40] e tantos outros.  Esta convergência marcante de pontos de

 

vista e esta coerência de estrutura e de princípios - este o sentido da palavra do inglês antigo consilience -, apontam para uma teoria geral da Natureza, que, se estão corretas as teses acima de Metalógica e de Metabiologia, deverá girar em torno de Identidade, Diferença e Coerência.

 

                            

                                              1.3. FILOSOFIA DO ESPÍRITO

 

   A passagem da Filosofia da Natureza para a Filosofia do Espírito, ou seja, para uma Ética Geral, se faz como que ao natural. Ao transliterar os três primeiros princípios da

linguagem lógica, em que originariamente estão, para uma linguagem ética, surge o seguinte quadro:

 

 

Subprincípios da M-Lógica               Princípios da M-Física     Princípios da M-Ética

 

1. Identidade

    - simples  A                             indivíduo                                homem

    - iterativa  A,A,A ...                  replicação, reprodução         família, educação            

    - reflexa  A = A                        espécie                                  sociedade, cultura

 

2. Diferença

     o novo, o diferente   B            emergência do novo,           criatividade do ato

                                                    mutação por acaso               livre, invenção, arte

 

3. Coerência

  - eliminação de um dos pólos   morte=seleção natural          o mal - quando há                                   

                                                                                                  incoerência

  - fazer as devidas distinções    adaptação=seleção natural   o bem - quando há coerência

 

 

 

   O dever-ser, em sua estrutura, foi introduzido e justificado já na Metalógica como a formulação universalíssima do Princípio de Não-Contradição, da contradição a ser evitada. O dever-ser já vale como lei na Metalógica e diz tanto aos filósofos analíticos como também aos dialéticos o que fazer quando surgir uma contradição. O mesmo princípio reaparece na Natureza como a lei de seleção natural, que elimina os não-coerentes ou os obriga a fazer as devidas distinções, no caso, as adaptações. Na Ética Geral este Princípio da Coerência surge, de novo, como aquele dever-ser que nos diz o que deve ser feito e o que não deve ser feito. O bem moral e mal moral são o que são por força da coerência ou não-coerência do agente moral consigo mesmo, com o outro eu, com o meio ambiente, com o Universo. A característica, pois, do bem moral é a coerência universal. Se e quando a regra que determina uma ação pode ser universalizada, isto é, se está em coerência universal, então estamos fazendo o bem e não o mal. Kant tem razão, Apel e Habermas têm razão: Universalização é o critério de eticidade. E é preciso que esta coerência surja num discurso real e concreto, pois, como os homens são contingentes e históricos, a coerência deve se realizar também nesta realidade histórica concreta. Por isso e para isso tem que haver o discurso real, no qual antecipando a situação ideal do discurso, buscamos o consenso. Apel e Habermas, aqui, têm toda a razão.

   Só que, em oposição a eles, construímos uma Ética que se apóia sobre uma Filosofia da Natureza, que por sua vez se apóia sobre uma Metalógica que se baseia sobre um único e uno grande princípio que se articula em três subprincípios. Não precisamos, por isso, para além dos princípios U e D, de um Princípio G (Gründe), pois o dever-ser na teoria proposta já emerge de dentro da Natureza. Há aí uma superação e uma conciliação dos núcleos duros do naturalismo e do contratualismo. Família, Sociedade e Estado são não só naturais como também contratuais. O contrato aqui surge de dentro da natureza e a determina ulteriormente. Não há, entretanto, falácia naturalista, porque o dever-ser não é ancorado apenas na Natureza e sim na Metalógica. Além de dispensar o uso de um terceiro princípio, o princípio G (Gründe), a solução proposta apresenta, em oposição à Ética do Discurso, duas grandes vantagens: fundamenta com rigor as regras do bem-viver (des guten Lebens) e serve de base teórica para toda uma Ecologia.

   À guisa de conclusão deste ponto, seja-me permitido dizer o seguinte: Apel e Habermas têm toda razão no que dizem de positivo, não têm razão - me parece -, quando excluem a Filosofia da Natureza do interior da Filosofia. As controvérsias sobre a existência de um terceiro princípio, Gründe, além dos princípios D e U, apontam para este déficit. As dificuldades que encontram em justificar regras do bem viver e em fundamentar a Ecologia são prova disso. A solução aqui proposta, embora semelhante à Ética do Discurso em alguns pontos, consiste numa transformação dos sistemas neoplatônicos de Espinosa, Fichte Schelling e Hegel. O sistema neoplatônico foi aberto, já na Metalógica, pela introdução da facticidade e, correlativa a esta, pela introdução do dever-ser como Princípio da Coerência. O sistema aqui proposto é claramente monista. Pergunta-se: Materialismo ou Idealismo? Embora muitos materialistas possam, talvez, identificar-se com tudo ou quase tudo que foi dito, prefiro chamar o sistema de idealismo. Pois, antes da Natureza, há e vige uma Metalógica. Os três primeiros princípios, Identidade, Diferença e Coerência, apontam para a idealidade, para o dever-ser,  não para o que de fato é, para o mundo empírico. Não se trata, pois, daquilo que hoje chamamos de materialismo empiricista. Estamos apresentando aqui uma Filosofia idealista, um idealismo que foi corrigido, sim, que foi "aggiornato", que ficou contemporâneo, que contém contingência, que contém historicidade, que abre espaços para a liberdade e a responsabilidade, que é um sistema que é parcialmente a priori e parcialmente a posteriori.

 

2. O ABSOLUTO NO SISTEMA NEOPLATÔNICO PROPOSTO

 

   As linhas básicas acima esboçadas são, como se vê, uma tentativa contemporânea de armar um sistema de filosofia a partir de Platão, dos neoplatônicos e de Hegel. É evidente que uma tal tentativa, hoje, precisa desde seu primeiro começo levar em conta as grandes objeções que foram feitas contra os pensadores acima referidos e seus sistemas. Ou seja, é preciso, já ao esboçar o desenho da planta baixa do sistema, levar em conta uma série de questões: 1) o problema da racionalidade necessitarista e o problema da contingência, 2) o problema da liberdade como livre arbítrio e o problema da verdadeira historicidade, 3) o problema, que decorre do anterior, da impossibilidade de deduzir de maneira meramente a priori as categorias e as figurações, 4) o problema do esmagamento do indivíduo pelo universal, 5) o problema da conciliação da circularidade do sistema com a verdadeira historicidade, 6) o problema da verdadeira determinação do que sejam o saber absoluto e a idéia absoluta. Todas as grandes objeções levantadas contra Hegel têm que estar contempladas e resolvidas já no primeiro esboço do sistema, já no primeiro Ansatz. Acredito que todas as questões referidas foram consideradas no projeto de sistema acima exposto, pelo menos de maneira implícita. Façamos agora um esforço de explicitação, voltando a cada uma das perguntas feitas e verificando qual a solução que é proposta.

   A objeção relativa à conciliação entre o método dialético e o Princípio de Não-Contradição, considero-a plenamente resolvida: A dialética trata de opostos contrários e não de opostos contraditórios; o termo contradição, em Hegel, significa, contrariedade. Com isso desaparecem as dificuldades.

   1) A objeção referente ao necessitarismo, ou seja, à gradual eliminação da contingência atinge realmente a filosofia do Hegel histórico, mas, a meu ver, pode ser totalmente resolvida numa reconstrução corretiva do sistema. Em oposição a Newton, Laplace, Kant e Hegel, que provavelmente nunca se deram conta de uma alternativa à razão necessitária, sabemos hoje pela Teoria dos Jogos que é perfeitamente possível admitir uma racionalidade na qual esteja conciliada tanto necessidade como também contingência. A racionalidade do jogo de xadrez mostra claramente que as jogadas necessárias (sem as quais o jogo não seria mais xadrez) e as jogadas contingentes (fruto de táticas e estratégias) convivem pacificamente umas com as outras, sim, são indissociáveis, são complementares. Disso se conclui que, em princípio, pode haver uma razão em que necessidade e contingência, conciliadas uma com a outra, se imbriquem, constituindo assim uma totalidade que é em parte necessária, em parte contingente. Isso, em princípio, é possível; uma tal racionalidade pode existir e, pelo menos em jogos, ela realmente existe. Não será esta a razão que vige no Universo? Não é esta a razão que deve ser elaborada e exposta no sistema? Penso que sim. Penso, aliás, que Hegel chegou bem perto disso, que Hegel errou por não ser suficientemente conseqüente consigo mesmo. Quando, na segunda parte da Lógica, na dialética das modalidades, Hegel afirma como síntese uma necessidade absoluta que é idêntica à contingência absoluta, o que quer ele dizer? O que significa necessidade absoluta, se ela é idêntica à contingência absoluta? Uma tal entitade, afinal, é necessária ou contingente? A resposta de Hegel, em minha opinião, só poderia ter sido uma única, aquela que ele realmente deu: a necessidade, sendo absoluta, é a contingência absoluta. Mas o que isso significa? Exatamente aquele tipo de síntese entre necessidade e contingência que foi acima exposto a partir das Theories of Games, no jogo de xadrez. Necessidade absoluta, em Hegel, se e enquanto ela é sempre idêntica à contingência absoluta, nunca pode ser pensada como a necessidade da lógica formal. Esta é sempre necessária: não pode não ser. A necessidade que também é contingência é aquela síntese que vemos no jogo de xadrez: Nela existem regras necessárias, mas nela existem também movimentos contingentes, como existe também a necessidade fraca (deôntica) do dever-ser que caracteriza as táticas e estratégias. A necessidade absoluta de Hegel, que é sempre também contingência absoluta, só pode ser isso. Entender a necessidade absoluta, em Hegel, como uma necessidade lógica, no sentido moderno do termo, como uma necessidade que exclui contingência, é negar o próprio conceito hegeliano de necessidade absoluta que é contingência absoluta. – Por que Hegel não disse tudo isso que acabo de expor? Por que ele não é claro? Por que ele fala de notwendiger Fortgang des Gedankens? Como explicar os incontáveis textos em que Hegel defende o necessitarismo? Só pode haver uma explicação: Ele não conseguiu ser fiel a si mesmo, não conseguiu ser conseqüente com seu conceito de necessidade absoluta, ele nunca percebeu que ele tinha feito uma grande descoberta – a necessidade conciliada com a contingência – e continuou na trilha batida de seus antecessores neoplatônicos, especialmente de Espinosa. O necessitarismo de Hegel, visível em toda a sua obra, mostra que ele estava meio cego, que ele não conseguiu ver com clareza o conteúdo e a importância de um conceito que ele mesmo havia elaborado: a necessidade absoluta que é a contingência absoluta. – Corrigir, pois, o necessitarismo do sistema é tarefa, se não simples, pelo menos, perfeitamente factível. Basta ter sempre ante os olhos o tipo de racionalidade que rege o jogo de xadrez e muitos outros jogos. O Universo não se rege apenas por leis necessitárias, o Universo não é determinista como pensava Laplace. O Universo é regido por leis mais flexíveis, mais fracas, que conciliam, como no jogo de xadrez, necessidade e contingência. Não é só o filósofo que, para abrir espaços para a liberdade, postula isso. Não, a própria pesquisa de ponta em Física e Biologia (por exemplo, os sistemas dissipativos de Prigogine) exige que se tome este tipo de racionalidade e não a razão determinista como a razão que rege o Universo

   Resolvida, da maneira acima exposta, a questão do necessitarismo, estão também resolvidas as questões referentes à existência da contingência, que constitui o espaço lógico-ontológico em que surgem as alternativas dentre as quais o livre arbítrio escolhe uma e não as outras. O tipo de racionalidade que foi acima exposto e introduzido abre os espaços para a contingência como o espaço para o exercício do livre arbítrio

   2) Resta a ser resolvido o problema da predeterminação causal do ato de livre arbítrio. O ato livre de decisão, exatamente por ser livre, é contingente, isto é, pode ser assim e pode ser diferente. O problema consiste no seguinte: se ele é de fato assim, tem que existir antes e fora dele uma causa eficiente que explique por que ele existe assim ao invés de não existir e de existir de outro modo; ora, existindo uma tal causa eficiente anterior, o ato livre deixa de ser livre por estar predeterminado na causa eficiente que o explica e traz à luz da existência; logo, o ato livre não é livre e sim predeterminado. – Esta objeção, antiga, clássica, causou muitas dores de cabeça a praticamente todos os filósofos, de Agostinho até Apel e Habermas. Lembremos apenas o asinus Buridani do célebre Reitor da Universidade de Paris: um asno, colocado entre dois montes de feno exatamente iguais, por não possuir livre arbítrio, por não poder decidir-se, vai morrer de fome. A solução para o problema da predeterminação causal do ato livre de decisão, só a encontramos num caminho, trilhado aliás pelo próprio Hegel, no conceito de autocausação. É errado dizer que todo o efeito tem que ter sempre uma causa a ele externa e anterior. O erro aqui consiste nos termos externo e anterior. É claro que, havendo efeito, tem que haver causa. Mas causa, nos sistemas neoplatônicos, é sempre e primeiramente um movimento circular de autocausação, causa é antes de mais nada causa sui. Ela não é externa, mas sim interna; ela não é anterior, mas sim simultânea. Plotino sabia isso, Espinosa também, Hegel explica e demonstra esta tese. A causa separada de seu efeito é algo derivado, posterior; uma tal causa existe, sim, na Natureza, aliás com muita freqüência. Mas esta causa exterior a seu efeito é algo secundário, algo derivado. Causa, primeiramente, é um movimento circular de autocausação. Só quando, por abstração, cortamos este círculo em duas metades, é que causa e efeito se separam. Os neoplatônicos sabiam disso; as ciências contemporâneas tiveram que redescobrir isso e introduziram o conceito de auto-organização, que não é nada mais nada menos que a formulação contemporânea da autocausação dos neoplatônicos. O problema da prederminação causal do ato livre para os filósofos analíticos é algo insolúvel; para os neoplatônicos, isso nem se constitui em problema: O ato livre é uma forma de autocausação como muitas outras que existem na natureza, como, por exemplo, a vida nos organismos, como os processos de auto-organização que ocorrem inclusive na natureza inanimada.

   3) Levar a contingência a sério significa, num sistema filosófico, lançar os fundamentos para a verdadeira historicidade. Um sistema necessitário, isto é, sem nenhuma contingência tem que pensar a história como o perpétuo retorno do sempre mesmo. A teia de ligações necessitárias permite, como na série numérica, andar para frente e para trás. Num mundo totalmente necessitário, como por exemplo Laplace o desenha, tudo se transforma numa teia atemporal em que os processos são todos em princípio reversíveis. Não há, num mundo necessitário, a flecha do tempo que impede a reversibilidade. A Física de Newton e Laplace, necessitárias, não tem espaço para a flecha do tempo, para verdadeira historicidade; todos os processos seriam, segundo a mecânica determinística, reversíveis. Quando, então, na termodinâmica se descobre a lei da entropia, surge, pela primeira vez depois de Newton, a flecha do tempo como algo que constitui verdadeira historicidade, ou seja, que não permite a reversibilidade dos processos. É com as pesquisas de Prigogine – hoje, portanto - que se aprofunda a convicção de que há uma flecha do tempo, que os processos no Universo não são reversíveis, que há verdadeira historicidade e não apenas o eterno retorno do sempre mesmo. Isso nos ensinam a Física e a Química contemporâneas. A Biologia, cem anos antes, já nos havia ensinado a existência de verdadeira historicidade, pois evolução por mutações ao acaso só pode existir onde há verdadeira historicidade, isto é, onde a emergência do novo que não está pré-programado no que vem antes introduz claramente a flecha do tempo. Mas nós filósofos não havíamos levado a Biologia e a Teoria da Evolução de Charles Darwin suficientemente a sério e, por isso, ainda hesitávamos quanto à verdadeira historicidade. É mérito de Dilthey, de Droysen e de Heidegger ter posto a historicidade como processo irreversível no centro das discussões filosóficas. A entropia da termodinâmica e os sistemas dissipativos de Prigogine vieram comprovar empiricamente a irreversibilidade do tempo, a verdadeira historicidade.

   A admissão – que hoje todos fazemos – da irreversibilidade do tempo e da verdadeira historicidade tem pesadas conseqüências filosóficas, que muitas vezes passam despercebidas. A mais importante delas bate de frente contra uma antiga pretensão filosófica, a saber, a pretensão de deduzir a priori todo ou quase todo o sistema. Não só autores medievais, mas – sob a influência de Kant – todo o idealismo alemão brincou com a idéia de fazer uma dedução a priori de todas as coisas existentes no Universo. Fichte, em seu grande projeto filosófico, exposto no livro Über den Begriff der Wissenschaftslehre [41] de 1794,

 

desenha com clareza a estrutura de uma filosofia que, a partir do ápice da pirâmide, de primeiros princípios, deduz (herleiten) tudo, absolutamente tudo. O mesmo ideal de deduzir tudo a priori encontramos na Filosofia da Identidade do jovem Schelling e na Ciência da Lógica de Hegel, onde tudo que foi pressuposto (das Vorausgesetzte) tem que ser reposto (setzen). O repor, aqui, o setzen, significa exatamente esta dedução com a pretensão de  determinar a priori todo o Universo. Tudo isso caiu por terra, tudo isso acabou. Sabemos hoje, inclusive pelas ciências naturais como a Biologia, a Química e a Física, que esta pretensão de deduzir tudo a priori é algo impossível. A flecha do tempo permite, sim, que expliquemos um fenômeno para trás, não permite, porém, que façamos uma dedução para frente. Laplace (e muitos outros) pensavam que podíamos extrapolar tanto para frente como para trás. Conhecidas todas as leis que regem o Universo e conhecida a situação do sistema em qualquer ponto da linha do tempo, poderíamos – pensavam e diziam eles – extrapolar tanto para frente como para trás. Se de fato não o podemos, diz Laplace, é porque ainda não conhecemos todas as leis, ou porque nosso conhecimento da situação do sistema no ponto do tempo que escolhemos não é suficientemente completo. Erro, muito erro. Erro que embaraçou profundamente Kant e todo o idealismo alemão, erro que continua a atormentar quem ainda não entendeu o que significa historicidade verdadeira. A flecha do tempo, isto é, a entropia e a irreversibilidade dos processos dissipativos nos mostram um Universo em que existe tanto a tendência irreversível para uma desordem sempre maior, a morte pelo frio, como a tendência igualmente irreversível dos sistemas dissipativos, que, sem negar a entropia, colocam ao lado dela a tendência para formas sempre mais complexas de auto-organização. A tese determinista de um mundo sem história e evolução foi amplamente refutada pelas próprias ciências naturais. Física, Química e Biologia não são mais ciências atemporais, como a Lógica e a Matemática. As provas empíricas impedem que vejamos o mundo, como os gregos, como o perpétuo retorno do sempre mesmo. Estamos sendo chamados a respeitar a verdadeira história com sua flecha do tempo, estamos sendo chamados a olhar para o Universo como um processo em evolução contingente. Nem tudo é conseqüência necessária de premissas anteriormente dadas; existe a emergência do novo e a mutação por acaso.

   Por conseguinte, nós filósofos não podemos mais acalentar a pretensão de construir o sistema filosófico mediante uma dedução a priori. Os tempos mudaram. Novos conhecimentos se impuseram. Ciências formais, como Lógica e Matemática, podem sim ser deduzidas a priori; este é o método a elas adequado. As ciências, entretanto, que tratam do mundo real em seu processo histórico de evolução, como a Física, a Química, a Biologia e a própria Filosofia enquanto Filosofia do Real, não podem mais trabalhar apenas com o método a priori. A emergência do novo, que caracteriza o processo evolutivo e marca a direção de flecha do tempo, obriga a todos, também a nós filósofos, a utilizar também o método a posteriori. Só a posteriori podemos constatar e dizer: eis algo novo que emerge. O método dialético, portanto, numa filosofia que se queira contemporânea, precisa utilizar tanto o a priori como o a posteriori. O sonho de uma dedução a priori de todo o sistema, não era sonho; hoje o sabemos: era um pesadelo. Nem o físico, nem o biólogo e muito menos o filósofo podem hoje abrir mão do método que utiliza, conciliado um com o outro, tanto o a priori como o a posteriori.

   Figurações e mesmo as categorias da Lógica não podem, pois, ser objeto de uma mera dedução a priori. O sistema dialético daqui para diante tem que saber conciliar a Fenomenologia do Espírito e a Ciência da Lógica. Uma não existe sem a outra. Tanto a Analítica com seu a priori como a Fenomenologia e a Hermenêutica com seu a posteriori são submétodos, são elementos constitutivos da Dialética como o método mais alto que contém e concilia ambos. Aqui temos uma grande mudança, uma radical transformação, uma profunda diferença entre o que estamos propondo e o que o idealismo alemão tinha como projeto de sistema.

    4) Resolvidos, em princípio, os problemas da contradição, do necessitarismo, isto é, da contingência, da autocausação do ato livre de decisão, há que se resolver ainda a questão do esmagamento do indivíduo pelo universal e a questão de conciliar a circularidade do sistema com a verdadeira historicidade.

   O esmagamento do indivíduo pelo coletivo constitui uma objeção clássica contra os sistemas neoplatônicos, desde a Politéia de Platão até Hegel e Karl Marx. Penso, entretanto, que esta questão pode agora ser resolvida com relativa facilidade. A ênfase exagerada no universal corresponde à ênfase exagerada – sim, exclusivista – no método a priori. Ao corrigirmos o déficit existente no método, ao tratar a priori e a posteriori como elementos complementares, colocâmo-nos num novo patamar filosófico. O indivíduo, agora, não pode ser esmagado, nem corroído, nem diluído. O universal não reina mais sozinho e soberano. Voltamos, assim, à doutrina de Hegel, expressa no começo da Lógica do Conceito, de que só conhecemos o individual e o universal num movimento constante que do individual nos leva, pelo particular, ao universal e, imediatamente, nos traz de volta, mediante o particular, ao individual. Universal, particular e individual se determinam mutuamente de tal maneira que não pode haver esmagamento de um pelo outro. O que, na História real, aconteceu, o esmagamento do indivíduo, foi evidentemente um erro cometido por quem não entendeu a dialética hegeliana do conceito. 

   5) A mais séria e difícil questão que encontro na reconstrução do sistema neoplatônico é a da conciliação entre a circularidade do sistema e sua historicidade. Circularidade é sempre atemporal, sem história. História verdadeira, que contém a emergência do novo e é contingente, simplesmente não pode ser circular. Abordemos a questão de frente, com toda a honestidade, sem rodeios.

   Todos os sistemas neoplatônicos de Plotino e Proclo, passando por Agostinho, até Schelling e Hegel são sempre circulares. A terceira parte do sistema desemboca sempre num movimento de retorno à primeira parte. Em Plotino e Proclo, do Uno e do Universal (primeira parte do sistema) se origina o Nous (segunda parte), deste se origina a Alma do Mundo que dá vida e existência aos homens e as coisas do mundo (terceira parte), que num movimento circular retornam, pelo êxtase, ao Uno e ao Universal da primeira parte; para nós homens o bem viver consiste exatamente neste retorno ao Uno e ao Universal. Em Agostinho, o Deus uno e trino (primeira parte) cria o homem e a natureza (segunda parte); como o homem em Adão pecou, Deus para restabelecer a unidade e a harmonia quebradas se faz homem. Pelo Homem-Deus (terceira parte) Deus se faz homem e é trazido para entre nós; Deus é naturalizado, a natureza é divinizada; a Jerusalém Celeste é o último estágio – Hegel diria, a última figuração – desta terceira parte do sistema. Nela o fim se reencontra com seu começo, a criatura, pela graça, fica partícipe da natureza divina: Deus em nós, nós em Deus. Em Hegel, mais claro e mais expresso que em todos os outros, o sistema é caracterizado como um movimento circular, como o círculo dos círculos. Ao chegarmos à última figuração do sistema, ao saber absoluto, este nos remete de volta à primeira categoria. E assim se começa tudo de novo.

   Esta é aqui a pergunta central: O movimento circular do sistema implica num perpétuo retorno do sempre mesmo? Se o sistema, ao chegar ao fim, sempre e necessariamente nos põe de volta no primeiro começo, significa isso que estamos sempre de novo percorrendo o mesmo curso circular? Círculo não significa exatamente isso? Sem começo e sem fim, o movimento percorre sempre os mesmos pontos pelos quais já passou e pelos quais continuará sempre a passar; não é isso o círculo? – Ora, exatamente este concepção de movimento circular, de perpétuo retorno de sempre o mesmo, é absolutamente inconciliável com o movimento que mais acima chamamos de verdadeiramente histórico, que é contingente, que abre espaços para a emergência do novo, que – por ser novo - não é dedutível a priori, que – por ser contingente - não é previsível. Verdadeira historicidade nunca se repete num movimento circular, pois se o fizesse, o curso dos eventos tornar-se-ia necessário e absolutamente previsível. História e circularidade, como se vê com clareza [42] ,


estão em oposição excludente. Se o sistema é histórico, ele não pode ser circular; se é circular, não pode ser histórico. Eis a oposição entre tese e antítese.

   Não podemos, entretanto, num sistema filosófico que se queira moderno e atualizado abrir mão da historicidade contingente, isto é, da flecha do tempo. As pesquisas das ciências de ponta não no-lo permitem; o Zeitgeist, aliás, também não. Significa isso que temos que abrir mão da circularidade? – Certamente que não. Se abrirmos mão da circularidade, entramos em problemas insolúveis. Na teoria da fundamentação, caímos no trilema de Münchhausen e ficamos num beco sem saída. Na teoria de liberdade, perdemos o conceito de autocausação e não conseguimos mais explicar o que é liberdade; perdemos também os conceitos de vida e de auto-organização. Na teoria do espírito, não conseguimos mais explicar o que é o bei-sich-sein da autoconsciência. E assim os problemas se avolumam num crescendo. A conclusão é uma só: também não podemos abrir mão da circularidade. O que fazer? Fazer o quê? A única solução é conciliar a linearidade, sem qual não pode ser pensada a verdadeira historicidade, e a circularidade, sem a qual problemas centrais ficam insolúveis. Conciliar, sim, mas como?

   Avancemos com prudência, passo a passo, pois o terreno é, se não movediço e traiçoeiro, ao menos desconhecido. Terreno desconhecido, que por ninguém foi trilhado, exige cautela em dobro. – A linearidade que há no curso de eventos históricos é chão firme. A verdadeira historicidade, que permite a emergência do novo, por isso mesmo é algo que nunca se repete, nunca volta ao mesmo lugar; a flecha do tempo o impede. Isso significa que este movimento, que caracteriza a historicidade, não pode ser circular. Agarremos, pois, esta tese com firmeza: historicidade tem que ser linear e não pode jamais ser circular; de maneira mais exata: não pode jamais ser perfeitamente circular. Por outro lado, o sistema precisa da circularidade em todas as suas articulações básicas. Como conciliar, então, linearidade e circularidade? Exatamente como fazemos quando andamos de automóvel ou de bicicleta. No automóvel não nos damos conta, pois estamos fechados na cabine. Pensemos, pois, na bicicleta. Nós todos, ciclistas que somos, vemos diante de nossos olhos a roda da bicicleta que é circular e que, quando andamos, gira em círculo sobre si mesma e traça uma linha reta no chão. A roda de nossa bicicleta é um círculo e seu movimento é estritamente circular. No entanto, a roda e seu movimento circular se efetuam sobre a superfície linear da rua. A roda circular gira sobre si mesma em círculo, a bicicleta, porém, movimenta-se em linha reta para frente. Circularidade e linearidade, aqui, no movimento da bicicleta, estão perfeitamente conciliadas. Um movimento constitui o outro, um não pode ser pensado sem o outro. Logo, ao menos na bicicleta, é possível conciliar no melhor sentido dialético do termo circularidade com linearidade. E no sistema filosófico? É possível? Não só é possível, é necessário que seja assim.

   Que existam na filosofia estruturas atemporais – sem a flecha do tempo – é algo que ninguém jamais pôs em dúvida. Todas as ciências formais, como Lógica, Matemática, Geometria e grandes partes da Física, são atemporais. Sendo atemporais, estas ciências podem conter estruturas circulares, pois o que impede estritamente a circularidade é apenas o movimento linear da flecha do tempo. Há circularidade em Lógica? Em enormes quantidades e em quase todos os lugares, a começar pelo movimento circular da tautologia. Há circularidade em Matemática? É evidente, basta lembrar que toda a Matemática se baseia no sinal de igualdade, onde o que está de um lado aponta circularmente para o que está do outro lado do sinal. Há circularidade em Física? É claro, em todos os processos reversíveis. Há, pois, circularidade nas mais diversas áreas e em diversos níveis. – A pergunta decisiva com referência ao sistema é a seguinte: O movimento do sistema é um círculo que contém também alguns movimentos lineares? Ou o sistema é um movimento linear que contém círculos? Como pensar isso: uma linha constituída por pequenos círculos? Penso que não. Continuo achando que a bicicleta explica melhor o problema. O sistema se constitui por um movimento circular que, ao girar, traça uma linha reta. A linha reta, aqui, não é a rua mas sim a linha traçada pela roda em movimento sobre a rua. Esta linha reta que a roda traça é a própria roda, apenas em outro formato. A roda é circular, a linha traçada é reta. Mas sem a roda não existiria a linha, sem a linha a roda não giraria.

   A introdução da linearidade como elemento indispensável para a estrutura da contingência do mundo nos coloca, entretanto, um novo e grave problema. Pois a linha reta, enquanto linearidade que se opõe à circularidade, pressupõe um começo e um fim. Começo e fim, porém, quando postos num sistema filosófico, acarretam, como sabemos, problemas insolúveis. Pois o Antes e o Depois da linha reta não podem, por sua vez, voltar a ser lineares. A linha reta pode e deve ser aberta para o futuro, sim, sem o que não haveria contingência e historicidade. Mas ela tem que começar e terminar em uma circularidade; numa circularidade que sempre de novo possibilita e engendra linearidades contingentes. A metáfora da bicicleta tem que ser, aqui, continuada e complementada. O ciclista, ao girar a roda da bicileta engendra a linha reta no chão; mas essa linha não é geometricamente reta, ela não pode ser tracejada ad infinitum para frente e para trás. Isso nos levaria a um sistema da má infinitude. Num tal sistema, a má infinitude conteria a boa infinitude, o que é um absurdo; o correto é exatamente o contrário: a boa infinitude tem que conter, superada e guardada, a má infinitude. Para que a metáfora funcione, temos que pensar o ciclista andando em círculos que não coincidem exatamente uns com os outros. A linha assim traçada é meio reta e meio torta: ela sai do círculo, para dentro ou para fora, e sempre de novo volta para o círculo. O ciclista, pois, anda em círculos. Como os círculos traçados no chão não são geometricamente iguais, ele está sempre a desenhar linearidades, que possuem começo e fim e que portanto são contingentes, mas que nascem do círculo e sempre a ele voltam. A circularidade engendra aqui a linearidade, só que a linearidade sempre se origina do círculo e a ele sempre volta, sem por isso perder seu caráter contingente de linearidade. Não há começo nem fim do sistema como um todo. O sistema como um todo é circular. Mas há, sím, dentro do sistema circular começo e fim de tempos lineares, que começam sempre no círculo e nele desembocam, que, por isso, são contingentes e absolutamente imprevisíveis, que são caracterizados pela linearidade irreversível da flecha do tempo. É por esta razão que o ciclista precisa andar em círculos. Assim, e só assim, o círculo engendra linhas que não têm nem começo nem fim, mas que apesar disso são lineares e abertas para o futuro [43] .

  



Mas a metáfora da bicicleta ainda não está completa; falta algo importante. Para que ela não seja falha  e consiga expressar o que queremos dizer, é preciso pôr em cima da bicicleta, que é um ser anorgânico e sem consciência, um ciclista, uma autoconsciência pensante. A bicicleta, sendo matéria anorgânica, não possui consciência, não tem memória do passado nem projetos para o futuro. A bicicleta, só ela, sem o ciclista autoconsciente, não sabe de onde vem nem para onde vai; a bicicleta, sozinha, com o traçado irregularmente circular de seu percurso ainda não contém consciência, autoconsciência e espírito. O passado e o futuro dos movimentos lineares não foram unificados num momento sintetizador. Isso é péssimo, isso mostra que ainda não estamos na síntese que procuramos. Por isso devemos acrescentar um elemento: o ciclista, montado na bicicleta, que dirige, que possui em sua memória todo o percurso passado e projeta o percurso futuro. O começo, que já passou no tempo, continua presente na memória do ciclista; o futuro, o ponto de chegada, está igualmente presente, sem o que ele não teria rumo. Como passado e futuro, tanto o começo como o fim do percurso linear, estão presentes no momento presente, é este que se constitui em síntese: o eterno momento presente que contém todo seu passado e antecipa seu futuro. No eterno momento presente, que é autoconsciente, está superada a má infinitude do percurso linear, mas estão guardadas todas as determinações positivas do percurso que assim deixa de ser uma pura linearidade.

   6) A roda girando é a primeira parte do sistema que aqui proponho, ela é a Lógica hegeliana, por mim corrigida, e a correspondente idéia absoluta, ela é o Deus uno e trino antes de criar o mundo de Agostinho. A linha reta que a roda com seu movimento circular traça no chão é a natureza histórica, somos nós, a natura naturata, a segunda parte do sistema. E qual é a terceira parte do sistema? A terceira parte do sistema é exatamente a síntese da primeira com a segunda parte. Ela não pode ser pensada temporalmente, ela não vem depois da segunda parte. A terceira parte do sistema, o saber absoluto, a Jerusalém Celeste, é o eterno momento presente, autoconsciente, é o saber que sabe e está consciente de que a linha reta é traçada por um movimento circular. – Pergunta-se agora: O Absoluto é, então, o movimento circular? O movimento circular, a roda em seu giro, é sim a idéia absoluta que é a última categoria da Lógica, é o Deus uno e trino da primeira parte do sistema. Mas a roda circular não é o sistema inteiro, é apenas a Lógica, a primeira parte. A linha traçada é a segunda parte do sistema, ela constitui nosso mundo em evolução histórica, em movimento não reversível de tempo histórico. Qual, então, a terceira parte do sistema? Qual é o saber absoluto e a Jerusalém Celeste? Evidentemente é o eterno momento presente, é o saber que sabe e está consciente tanto da circularidade da roda quanto da linearidade da linha concreta que está sendo traçada pela roda. – Temos aqui, como aliás em Agostinho e em Hegel, o Absoluto em dois estágios dialéticos diferentes: o Absoluto como tese é a circularidade do sistema ainda sem historicidade contingente, o Absoluto como síntese é o movimento circular, eterno momento presente, que engendra, constrói e é, sem deixar de ser ele mesmo, a linha reta.

   O que contém o quê? Qual conjunto contém o outro? O círculo contém a linha reta? Ou é a linha reta que tem que conter o círculo? Esta segunda hipótese é impossível. A primeira hipótese – o ciclista que anda em círculos -  explica como o círculo pode conter linearidades. A categoria que aqui nos serve é a síntese clássica utilizada pela velha e veneranda dialética. A síntese contém tese e antítese, sim, mas superadas e guardadas. Circularidade e linearidade são superadas se e enquanto se opõe. São guardadas naquilo que têm de positivo. O que é isso? O ciclista no movimento circular que contém linearidades. Tornando a metáfora mais abstrata: a síntese é o ponto inextenso – nem circular, nem linear -, que ao pôr-se em movimento, traça não só a circularidade da roda como também a linearidade do trajeto histórico. O ponto em movimento, este é a síntese entre tese e antítese. Este ponto tem que ser pensado como o eterno momento presente, porque assim ele resgata todo seu passado e antecipa todo o futuro. O eterno momento presente, inextenso e atemporal, guarda dentro em si – aufghehoben - toda as contingências da história que já passou [44] e as potencialidades do

 

futuro que está por vir. O ponto em movimento que é o eterno momento presente, esta é a síntese do sistema.

   O Absoluto, então, em seu sentido pleno, no sentido do saber absoluto e da Jerusalém Celeste é o ponto em movimento, o eterno momento presente, que constitui ao mesmo tempo linearidade e circularidade, tempo histórico e eternidade. O ponto em movimento, eis o Absoluto em seu sentido pleno.

 

3. CONCLUSÃO

 

  O conceito de Absoluto no sistema neoplatônico que está sendo aqui proposto apresenta semelhanças e dissemelhanças com a idéia absoluta e com o saber absoluto de Hegel. Ambos os sistemas são semelhantes e aparentados, é claro, e estão, assim, muito próximos um do outro. Mas num ponto eles diferem profundamente, porque o de Hegel é necessitário, o que estou propondo contém contingência e liberdade no sentido contemporâneo do termo. Isso tem influência decisiva no conceito de Absoluto de ambos os sistemas. Na filosofia de Hegel, a necessidade, que perpassa todo o sistema, vincula de forma dura a idéia absoluta com o saber absoluto. Afinal, o saber absoluto decorre necessariamente da idéia absoluta, ele é apenas uma ampliação desta (Erweiterung). Um não é o outro, mas o nexo entre ambos é, pela estrutura do sistema, o de uma ampliação necessária. Desta maneira, em Hegel, a idéia absoluta e o saber absoluto – Lógica e Espírito -, embora diferentes, estão muito próximos. Ambos são, no fundo, necessários e estritamente circulares. Idéia absoluta e saber absoluto, resumo e condensação máxima da filosofia hegeliana, são conceitos que estão impregnados da necessidade do sistema e são, como este, rigorosa e exclusivamente circulares. Isto significa que – como Hegel mesmo diz -, ao chegarmos no fim do sistema, devemos começar tudo de novo, pois o último elo da cadeia está ligado ao primeiro. Isso significa que o enriquecimento havido entre a idéia absoluta e o saber absoluto – o curso da História -, na segunda rodada se repete exatamente igual ao que era na primeira rodada. E assim na terceira, na quarta rodada etc. Com isso, todo o sistema se transforma no perpétuo retorno do sempre mesmo e a verdadeira historicidade, que Hegel tanto queria resgatar, é diluída pela lógica do sistema. Hegel queria, sim, fazer uma filosofia que fosse Filosofia da História; o que conseguiu fazer, no entanto, ao incorporar a História ao sistema, foi exatamente o oposto. Ao entrar no sistema, a História perde sua historicidade contingente e torna-se um nexo lógico-necessário. Ao invés da Lógica e da Ontologia tornaram-se históricas, a História torna-se lógica. Este é o erro que afeta o sistema e, assim, também o conceito de Absoluto de Hegel. O Absoluto da primeira parte do sistema, a idéia absoluta, e o absoluto da terceira parte, o saber absoluto, são como que irmãos muito parecidos, porque a história que se desenvolve na segunda parte, não é contingente, não é nada de novo, não é verdadeira historicidade mas sim desdobramento necessário e ampliação da idéia absoluta. O Deus do começo e o Deus do fim do sistema, em Hegel, são idênticos, porque a Natureza e o Espírito não possuem espessura própria, nem lógica nem ontológica, onde possam ser ancoradas a História e a contingência.

   No sistema que estou propondo não é assim. A primeira parte do sistema consiste de um único princípio formal que se desdobra em três momentos: identidade, diferença e coerência. Pode-se, é claro, agregar em torno deste primeiro princípio muitas, sim, quase todas as categorias da Lógica de Hegel. Fiz uma opção pelo despojamento, reduzi a Lógica a seu núcleo duro, a um primeiro princípio, para que sua estrutura básica ficasse mais clara e mais expressa. Em Hegel, a primeira parte do sistema, que é a Lógica, desemboca na idéia absoluta; no sistema aqui proposto, a primeira parte do sistema, a Lógica, é um único princípio, formal, ainda vazio de ulteriores conteúdos fáticos, que se desdobra e se desenvolve em três momentos, identidade, diferença e coerência. A passagem da primeira parte do sistema para a segunda parte faz-se através da resolução da antinomia que o primeiro princípio - que é a primeira parte do sistema - contém. O momento da diferença, nele contido, ao aplicar-se a si mesmo, aparece como sendo antinômico. Ora, antinomias, só se resolvem pela distinção de aspectos ou níveis. A antinomia ínsita no primeiro princípio exige, pois, que ele deixe de ser apenas princípio formal, princípio principiante, e se torne também material, ou seja, princípio principiado: a emergência de diversos aspectos realmente existentes é o que resolve a antinomia da diferença. Isso confere ao primeiro princípio um dinamismo todo especial; ele precisa engendrar novos aspectos lógicos e ontológicos, sob pena de entrar em colapso, se não o fizer. O primeiro princípio, para poder resolver a antinomia nele contida, precisa sempre estar saindo de si e engendrando algo outro, a saber, a natureza e, depois, o espírito, a natura naturata. A esta necessidade de engendrar alteridades, que há no âmago do primeiro princípio, primeira parte do sistema, não corresponde um necessitarismo da natureza e do espírito, segunda  e terceira partes do sistema? A resposta a esta pergunta decisiva é dura e clara: Não. Por que não? Porque a antinomia se resolve quaisquer que sejam os aspectos engendrados. A solução da antinomia exige, sim, necessariamente, o engendramento de aspectos. Mas esta necessidade não determina – como no sistema de Hegel – quais os aspectos que serão engendrados. Estes aspectos podem ser assim e podem ser diferentes. Quaisquer que eles sejam, a existência de aspectos diversos por si só já resolve a antinomia. – Temos, então, por um lado, a necessidade do primeiro princípio de engendrar novos aspectos; eis o motor que move a Dialética, eis o motor que com energia e força primevas move a evolução do Universo. Mas, a esta  necessidade geral não corresponde a necessidade determinada de que este aspecto tenha que ser assim, aquele outro aspecto necessariamente tenha que ser assado; não, isso é contingente, isso é história, história verdadeira. A passagem, pois, da primeira parte para a segunda parte do sistema, do primeiro princípio para a natureza, é necessária sob um aspecto (ela deve existir), mas é não-necessária sob outro aspecto (os aspectos podem ser os mais variados possíveis, eles não estão pré-programados no primeiro princípio).

   O primeiro princípio (identidade, diferença e coerência) é absoluto? Ele é o Absoluto? Ele pode ser chamado de absoluto, porque não é condicionado por nenhum princípio que seja a ele anterior. Neste sentido bem estrito, o primeiro princípio pode ser chamado de absoluto; se alguém quiser, de Absoluto. Mas este Absoluto, incondicionado para trás – em análise regressiva -, é condicionado para frente: ele precisa engendrar alteridades, senão implode. Se utilizarmos a terminologia da Filosofia da Religião, este Deus – se é que ele pode ser chamado de Deus – é absoluto, porque não há nada antes dele que o condicione logicamente ou o efetive de maneira causal, mas ele é um Deus que precisa engendrar outras realidades. Se essas outras realidades, como estamos todo o tempo tacitamente supondo, são a natureza e o espírito, então este Deus precisa criar a natureza e o espírito. A criação, aqui, não é fruto de um ato livre, não é a superabundância do amor que transborda, como no sistema de Agostinho, mas uma necessidade lógico-ontológica. – Quanto ao Deus na terceira parte do sistema, quanto ao Absoluto na terceira parte do sistema, não há grande diferença – eu diria até, não há nenhuma diferença – com relação ao Deus  e à Jerusalém Celeste de Agostinho.

   Como filósofo não vejo como possa ultrapassar os limites do que foi acima dito e exposto. O Deus, na terceira parte do sistema que estou propondo, é – penso eu - igual ou, ao menos, muito semelhante ao Deus agostiniano da Jerusalém Celeste; a segunda parte do sistema, a natura naturata, em minha proposta é contingente, como o é no sistema de Agostinho. A diferença, pois, entre o sistema que estou propondo e o sistema de Agostinho está na primeira parte. Eu estou propondo um princípio uno e trino, incondicionado, e, neste sentido, absoluto, mas que é formal e que precisa engendrar alteridades sob pena de entrar em colapso. Este Absoluto, sendo formal e precisando engendrar alteridades, difere do Absoluto da primeira parte do sistema de Agostinho. Eu, como filósofo, não vou adiante. Não vejo como possa provar mais do que isso.

   Mas, se alguém, cristão convicto, defender o Deus uno e trino de Agostinho, perfeitíssimo, que, na superabundância de seu amor, transborda e deixa livremente sair de si a natureza e o espírito, há nisso uma contradição? Não vejo contradição nessa construção. Se alguém, por motivos outros que o raciocínio filosófico estrito, houver por bem defender – como religião - uma tal concepção de Deus uno e trino antes de criar o mundo, penso que não está incorrendo em contradição interna. Eu faria, apenas, duas observações críticas. A primeira refere-se ao conceito de criação que de maneira nenhuma pode excluir o conceito de evolução, daquela evolução que perpassa e molda tanto natureza como espírito. A segunda diz respeito às razões argumentativas que levam a admitir um tal Absoluto já na primeira parte do sistema. Estas razões, que não são filosóficas – isto é, parece-me que não estão baseadas em raciocínios sistemáticos cogentes -, convém que elas sejam explicitadas como tais.

   Do que acima foi exposto seguem duas conclusões fortes. Uma negativa, a outra positiva. A conclusão negativa é de que o conceito de Deus das grandes religiões ocidentais, nestes últimos séculos, está mais e mais se afastando daquilo que em boa filosofia chamamos de Absoluto; lamentavelmente o pensamento mágico está voltando a prevalecer sobre o pensamento racional, o Deus da magia e da superstição está voltando a prevalecer sobre o Deus pensado pela razão. A conclusão positiva é de que, com algum esforço intelectual, é possível, sim, neste começo do século XXI, falar sensata e racionalmente do Absoluto, ou seja, do Deus de nossa tradição, do Deus de Agostinho, do Deus de Nicolaus Cusanus, do Deus de Schelling e Hegel, apontando tanto erros como acertos.

   Dialética, quando verdadeira, não termina nunca numa resposta e sim numa pergunta. A pergunta aqui é: Se o Universo todo é, já agora, neste eterno momento presente que resgata todo o passado e projeta todo o futuro, o Absoluto mesmo, então todos nós, enquanto partícipes do Absoluto, somos deuses. Mas, se é assim, por que a unidade lógica e ontológica do Universo como que se esvai por entre nossos dedos? Por que a razão está fragmentada e ninguém mais consegue ver a unidade que se constitui como totalidade em movimento? Esta é a pergunta com que se encerra o que, embora pronto e acabado como eterno momento presente, ainda está em curso como a não-identidade e a dispersão que há no espaço e no tempo. Se o Uno é Múltiplo e o Múltiplo sempre é também o Uno, por que estamos sempre nos perdendo no Múltiplo? O poeta do morro talvez tenha encontra a solução quando disse: Quem acha, vive se perdendo.

 

 

 

 

 



[1] Cf.  FUSTEL DE COULANGES. A cidade antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1981.

[2] Existem, é claro, indícios de universalismo já no judaísmo antigo; já no livro Gênese Deus aparece como criador dos céus e da terra, como um princípio universalíssimo. Na história do judaísmo, apesar da predominância do particularismo, há sempre de novo algumas tendências universalizantes. Até no estado de Israel contemporâneo, em que o particularismo teológico se encarnou num estado nacional particular, existem por vezes lampejos de universalismo.

[3] A verdade é o todo, dirá Hegel mais tarde. A universalidade de Deus corresponde à totalidade sem a qual não há verdade.

[4] AURELIUS AUGUSTINUS, MIGNE, J.P. Patrologiae Cursus Completus. Patres Latini. Paris, vol. 32 – 47, col. 1835 ss. Especialmente De Trinitate, 9, 2, 2 ss.;  vol. 42, col. 961 ss. De Civitate Dei, 8, 8; vol. 41, col. 233 ss., cf. tb. De Civitate Dei, 9, 23, 1 ss.; vol. 41, passim.

[5] Etimologicamente substantia e hypóstasis significam a mesma coisa: o que está subjacente. Não conseguindo articular dialeticamente a unidade que é síntese de tese e antítese; não conseguindo conciliar a determinação da unidade com a determinação da tríade, os pensadores católicos da Antigüidade se dividiam entre os que acentuavam a unidade de Deus e os que davam ênfase às três pessoas. Assim surge a formulação que permitiu o consenso: Deus é uno em latim (uma substância) e trino em grego (três hipóstases).

[6] PLOTINUS. Ennead. Edição bilíngüe, grego e inglês. Loeb Classical Library, Cambridge Mas. : Harvard University Press, 1966, 5 vol. Cf. Tb. LLOYD P. GERSON (org.), The Cambridge Companion to Plotinus. Cambridge : Cambridge University Press, 1996.

[7] PROCLUS, The Elements of Theology, a revised text with translation, introduction and commentary, by E. R. DODDS, Oxford, 2 edit. 1963. Cf. t. W. BEIERWALTES. Proklos. Grundzüge seiner Metaphysik. Frankfurt am Main : V. Klostermann, 1979. W. BEIERWALTES. Denken des Einen. Studien zur neuplatonischen Philosophie und ihrer Wirkungsgeschichte.  Frankfurt am Main : V. Klostermann, 1985.

[8] AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA FERREIRA. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2 ed. Rio de Janeiro : Editora Nova Fronteira, s.d., p. 1258.

[9] Ibdem, p. 1256. Aurélio acrescenta aqui “Forma particular que deu ao panteísmo o filósofo alemão Krause  (1781-1832).

[10] Cf especialmente JOHANNES SCOTUS ERIUGENA. De divisione naturae. In: Patrologiae Cursus Completus, J.P.MIGNE, Paris, 1853, vol. 122, col. 439-1022. 

[11] NICOLAI DE CUSA. De docta Ignorantia. Die belehrteUnwissenheit. Ed. latim-alemão. Hamburg : Felix Meiner. 1977, 3 vol.

[12] TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, 2.ed. bil. latim-português, R.COSTA / L.A. DE BONI, Caxias do Sul: ESR, Sulina, UCS, 1980, 11 vol.

[13] Cf. CIRNE-LIMA, C. Dialética e liberdade – Razões, fundamentos e causas. In: Veritas 43 (1998) p.795-816.

[14] Minha análise, muitos anos atrás, do problema da analogia foi me conduzindo lentamente ao abandono do tomismo e à adesão à dialética neoplatônica. Cf. CIRNE-LIMA,C. Realismo e Dialética. A Analogia como Dialética do Realismo. Editôra Globo: Porto Alçegre, 1967.

[15] Há uma solução em Tomás de Aquino, que não seja apenas verbal, para a assim chamada união hipostática? Penso que não.

[16] HEGEL, G.W.F. Werke. (Ed. Theorie Werkausgabe E. MOLDENHAUER / K. M. MICHEL), Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1971, 20 vol.

[17] Também de ocultamento, pois a verdade é sempre o somente o Todo.

[18] HEGEL, Werke. Ed. Suhrkamp, vol. 6, p. 573.

[19] Na Ciência da Lógica o sujeito lógico, sempre oculto no texto, está explicado e expresso no capítulo sem número Womit muss der Anfang der Wissenschaft gemacht werden? (cf. HEGEL, Werke. Ed. Suhrkamp, vol. 5, p. 65-79). O sujeito lógico é tudo aquilo que foi pressuposto (das Vorausgesetzte) – quando não se pressupõe nada, então se pressupõe tudo - e que precisa agora ser reposto pela ciência (Setzen). Esta totalidade, que é o Universo, é o sujeito lógico que está oculto no anacoluto inicial da Lógica (ibidem, p.82: Sein, reines Sein – ohne alle weitere Bestimmung).

[20] Cf. HEGEL, Werke. Ed. Suhrkamp, vol. 11, p. 390-466.

[21] Cf. HEGEL, Werke. Ed. Suhrkamp, vol. 10, p. 379-393.

[22] Ibidem, p. 391.

[23] Ibidem, p. 393.

[24] Cf. CIRNE-LIMA,C. Dialética para Principiantes. 2 ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. Cf. tb. CIRNE-LIMA, C. Ética de Coerência Dialética, in: Veritas 44 (1999) p. 941-964; CIRNE-LIMA, C. Zu einer Analytik des Sollens, capítulo de livro organizado por F. Herrero e M. Niquet, no prelo.

[25] Cf. KRUG, W.T. Gesammelte Schriften, 12 vol. Leipzig, 1830-1841; cf. vol. IX, p. 349-382, 383-434. HEGEL. Werke. Ed. Suhrkamp, vol. 2. p. 164s., p. 188-207. Cf.  tb.  HOESLE, V. Hegels System. Der Idealismus der Subjektivität und das Problem der Intersubjektivität. Hamburg: Felix Meiner, 2 vol., vol. 1, p. 88ss.

[26] HEGEL, Werke. Ed. Suhrkamp, Wissenschaft der Logik, vol. 6, p. 573.

[27] Cf. a este respeito WANDSCHNEIDER, D./ HÖSLE,V. Die Entäusserung der Idee zur Natur und ihre zeitliche Entfaltung als Geist bei Hegel, in: Hegelstudien 18 (1983) p.173-199.

[28] Agradeço a E.Luft por ter me apontado a emergência, neste exato lugar de meu raciocínio, de uma antinomia lógica. Agradeço também a Thomas Kesselring pelas discussões, havidas há mais de uma década, sobre este assunto, que à época ficaram inconclusas. Cf. sobre o tema HEISS, R. Logik des Widerspruchs. Berlin/Leipzig: Gruyter, 1932. Cf. tb. KESSELRING, T. Die Produktivität der Antinomie. Hegels Dialektik im Lichte der genetischen Erkenntnistheorie und der formalen Logik. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1984. WANDSCHNEIDER, D. Grundzüge einer Theorie der Dialektik. Stuttgart: Klett-Cotta, 1995. Cf. tb., contra a posição de Wandschneider, PUNTEL, L.B. Dialektik und Formalisierung. Discussion. In: Journal for General Philosophy of Science 2 (1997) p.1-17. Penso que a objeção de Puntel atinge, sim, a teoria de Wandschneider, mas não aquela por mim aqui proposta.

[29] A theory of types é, em seu cerne, apenas uma distinção de níveis de linguagem.

[30] Quando a solução para uma antinomia é apenas uma construção lógica, sem que existam diferenças reais de níveis, toda a estrutura antinômica fica circular e a antinomia, depois de percorrer as etapas de sua circularidade, volta a seu começo meramente lógico, continuando a ser, assim, um processo antinômico, ou seja, um processo irracional. Os trabalhos de Blau mostram este ponto, embora ele não se dê conta disso com clareza. Cf. BLAU, U. Die Logik der Unbestimmheitheiten und Paradoxien. in: Erkenntnis 22 (1985) p.369-459.

[31] Uma certa dose de casualidade (cf. mutação por acaso) tem que ser admitida, pois a total ausência de acaso implica um necessitarismo que exclui a contingência e, assim, a liberdade. Outra questão consiste em saber se a mutação por acaso sozinha pode explicar a velocidade com que a evolução se processa. Herman Weyl, face à enorme improbabilidade de que o mero acaso provocasse, dentre o número astronomicamente grande de possibilidades, a combinação que permite a vida, postulou a existência de fatores imateriais, como idéias ou planos de construção (cf. H. WEYL, Philosophy of Mathematics and Natural Science, Princeton University Press, 1949). A maioria dos cientistas recusou, à época, as sugestões feitas por Weyl porque estas implicam a introdução na ciência de fatores imateriais. As tentativas de resolver o problema, hoje, não implicam mais a postulação de fatores imateriais (ou creacionistas); cf. E. LASZLO, The Whispering Pond. A Personal Guide to the Emerging Vision of Science. Element: Boston, 1996, p. 84ss. Cf. a este respeito o importante trabalho de B.O. KÜPPERS, Information and the Origin of Life, Cambridge Mas.: MIT Press, 1990, p. 88.59, onde teorias contemporâneas são expostas e fundamentadas criticamente.

[32] Para uma visão geral, cf. GLEICK, J. Chaos. Making e New Science. New York: Penguin Books, 1988, 354 páginas.

[33] Cf. V. ARNOLD et alii (editores). Mathematics - Frontiers and Perspectives. Providence: American Mathematical Society, 2000, 459 páginas. Cf. a resenha de N. C. da Costa, em Folha de São Paulo, 9 de julho de 2000, caderno MAIS, p.13.

[34] WILSON, E. O. Consilience. The Unity of Knowledge. New York: Random House, 1999, 367 p.

[35] PRIGOGINE, I. The End of Certainty. Time, Chaos and the New Laws of Nature. New York: Free Press, 1997, 228 p.

[36] KAUFMANN, S. At Home in the Universe. The search for the Laws of Self-Organization and Complexity. New York/Oxford: Oxford University Press, 1995, 321 p.

[37] DAWKINS, R. The selfish Gene. Oxford: Oxford University Press, 1976.

[38] BARROW, J.D. Teorias de Tudo. A busca da explicação final. Rio de Janeiro: Zahar, 1994, 292 p.

[39] DEUTSCH, D. The Fabric of Reality. New York: Penguin, 1998, 390 p.

[40] SMOLIN, L. The Life of the Cosmos. Oxford: Oxford University Press, 1997, 358 p.

[41] FICHTE, J. G. Fichtes Werke. Ed. I. H. FICHTE, Berlin : Bruyter, 1971, vol. 1, p. 27-81.

[42] Uma lista finita de números aleatórios, quando é repetida, deixa de ser aleatória. Isto é, quando se chega ao fim de uma lista finita de números aleatórios e se recomeça a contagem a partir do começo, entra-se em circularidade e elimina-se o elemento aleatório. Dependendo do tamanho da lista, um computador mais poderoso já na terceira ou quarta repetição pode engendrar um programa que tem menos bytes que o conjunto analisado de números, a saber,  a lista finita multiplicada por três ou por quatro. A definição de aleatório, em informática, é de que a série de números não possa ser engendrada por um programa que seja menor ou do mesmo tamanho que ela mesma. A repetição da série de números originariamente aleatórios, num determinado momento do ciclo de repetições, torna a série conhecida e previsível, que, asim, deixa de ser aleatória.

[43] Agradeço a meus colegas do GPI-Dialética, principalmente a E. Luft e Custódio Almeida, que, na reunião de maio de 2001 em Gramado/Canela, me alertaram para o modo como a metáfora da bicicleta – em sua primeira redação - estava claudicando.

[44] Isto pode soar estranho num primeiro momento. Mas basta, como Agostinho diz, que olhemos para dentro para percebermos o fato de que em cada momento que vivemos estão presentes em nossa autoconsciência tanto as contingências de nossa vida temporal pregressa como também nossos projetos para o futuro.